Crime de guerra

Polícia carioca é infratora impassível dos direitos humanos

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13 de novembro de 2007, 23h01

O governo Sérgio Cabral tem se notabilizado pelas violentas ações policiais nas favelas cariocas. Da mais recente, levada a cabo no dia 17 de outubro, junto à favela da Coréia, restaram 12 mortos, dos quais uma criança de quatro anos, um policial e dez supostos criminosos.

A opção é pelo confronto aberto e deliberado. Uma verdadeira declaração de guerra. Basta observar a grande quantidade de policiais envolvidos, as táticas utilizadas e o grosso calibre do armamento empregado, com destaque para o Fuzil Automático Leve (FAL) 7,62 mm.

O FAL tem projeto belga e já foi considerado o melhor fuzil de assalto, mas perdeu o título para os russos da família AK. Sua principal característica é a robustez, sendo que é o fuzil adotado pelos exércitos de muitos países, inclusive pelo Exército Brasileiro. Seu principal defeito, contudo, é o calibre da munição, 7,62 mm, considerado excessivo para as modernas técnicas de combate. É que atualmente existe uma tendência mundial para a adoção de calibres menores como o 5,56 mm dos EUA ou 5,45 mm russo, pois essas munições apenas ferem o inimigo que necessitará de outros dois combatentes para tirá-lo do combate. Desse modo, serão três inimigos sem condições de combater (5.56mm), em vez de apenas um (7.62mm).

É de causar espanto que esse tipo de armamento seja utilizado pela polícia carioca em meio a comunidades repletas de civis, inclusive crianças. Dirão que os traficantes usam armamento equivalente ou até mesmo superior e que, enfim, guerra é guerra!

Nesse sentido, o chefe do executivo estadual disse após a ação na favela da Coréia que “A Secretaria de Segurança tem carta branca para agir contra os traficantes. Ela tem o meu estímulo para trabalhar nessa direção”. O secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, por sua vez, defendeu a violência da ação, apesar das mortes de inocentes. “Mesmo morrendo crianças, não há outra alternativa. Esse é o caminho”, afirmou.

Ocorre que, mesmo em tempos de guerra declarada, existem regras mínimas de civilidade que devem ser observadas. Essas regras foram estabelecidas pelas Convenções de Genebra e estabelecem os direitos e deveres dos indivíduos, combatentes ou não, em tempo de guerra e consistem na base dos direitos humanitários internacionais.

Os tratados foram elaborados durante quatro Convenções realizadas em Genebra no período de 1864 a 1949.

Além de constituírem graves violações aos direitos humanos e ao ordenamento jurídico pátrio, as ações da polícia carioca vêm infringindo várias disposições de tais convenções. Senão vejamos.

Segundo o artigo 51, 5, “b”, do Protocolo I às Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949, relativo à proteção das vítimas dos conflitos armados, são proibidos os ataques indiscriminados, entendidos como tais aqueles “dos quais pode-se esperar que causem, incidentemente, perdas em vidas humanas na população civil, ferimentos às pessoais civis, danos aos bens de natureza civil, ou uma combinação dessas perdas e danos, que seriam excessivos em relação à vantagem militar concreta e direta que deles se espera”.

Os confrontos levados a cabo pela polícia em meio às comunidades cariocas expõem a população civil a risco de morte e de ferimentos, assim como causam danos aos seus bens. Tanto que o secretário da segurança assume publicamente a possibilidade de tais ações resultarem na morte de inocentes, inclusive crianças!

A desproporção entre a força empregada — com a utilização de armas que vêm sendo abandonadas até mesmo por exércitos regulares — e os resultados efetivos das incursões é flagrante, pois após o confronto, as forças públicas se retiram e o tráfico volta a suas atividades corriqueiras.

Especialistas em segurança pública têm apontado que o combate à atividade ilícita somente será eficaz se forem eliminadas as fontes de sustentação financeiro-econômica das organizações criminosas. Nessa linha, é imprescindível o trabalho de inteligência e a presença permanente do Estado nas comunidades tomadas pelo tráfico.

Os danos decorrentes de tais ações revelam-se “excessivos em relação à vantagem militar concreta e direta que delas se espera” e, portanto, constituem infrações explícitas a disposição convencional citada.

Ainda segundo as Convenções de Genebra, é “proibido matar alguém que tenha se rendido”. As imagens do helicóptero da polícia atirando em supostos traficantes em fuga, bem como as execuções reveladas pelas investigações sobre a invasão ao Complexo do Alemão em maio passado, revelam que o governo fluminense não tem apreço por tal espécie de norma.

O artigo 13 da Convenção III, sobre o tratamento dos prisioneiros de guerra, dispõe que esses devem “ser protegidos a todo tempo, de modo especial, contra todo ato de violência ou intimidação, bem como contra os insultos e a curiosidade pública”. Estabelece ainda que os prisioneiros de guerra “não podem ser espancados ou utilizados com interesses propagandísticos”.

Novamente a polícia carioca se revela infratora impassível das regras mais elementares do direito internacional humanitário. Os presos nas suas operações, muitas vezes feridos, são expostos em júbilo à imprensa e à curiosidade pública, como prêmios que minimizariam a barbárie.

Ao violar as Convenções de Genebra, as condutas citadas constituem verdadeiros crimes de guerra e, como tal, são passíveis de punição perante o Tribunal Penal Internacional. O artigo 8º do seu tratado de criação determina que “o Tribunal terá jurisdição sobre os crimes de guerra, em particular quando cometidos como parte de um plano ou política ou como parte da prática em grande escala de tais crimes”.

O mesmo dispositivo estabelece que entendem-se por crimes de guerra as “violações graves das Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949”, em especial:

— o homicídio doloso;

— lançar ataque intencional, sabendo que incidentalmente causará perdas de vidas, lesões em civis ou danos a bens de caráter civil ou danos extensos, duradouros e graves ao meio ambiente que sejam claramente excessivos em relação à vantagem militar geral, concreta e direta prevista;

— causar a morte ou lesões a um inimigo que tenha deposto as armas ou que, por não ter meios para defender-se, tenha se rendido;

— cometer ultrajes contra a dignidade de indivíduos, em particular tratamentos humilhantes e degradantes.

Se o Governador Cabral e o Secretário Beltrame, chefes do executivo e responsáveis pelas ações da polícia fluminense, buscavam eliminar a ilicitude de sua conduta sob a justificativa de que se trata de uma guerra, saibam que existe um sistema internacional de proteção aos direitos humanos a partir do qual suas atitudes poderão ser penalizadas.

É o que se espera!

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