Sem destino

Dia 8 de dezembro, as portas se abrem para Champinha

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9 de novembro de 2007, 23h00

Roberto Aparecido Alves Cardoso, o Champinha, internado na Fundação Casa pelo assassinato de um casal de adolescentes, completa 21 anos no dia 8 de dezembro. Esgota-se, assim, o tempo de cumprimento da medida sócio-educativa que lhe foi imposta pelo crime que cometeu como menor de idade. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, neste dia os portões da Fundação se abrem e Champinha volta para sua casa. Caberá então ao sistema garantir a segurança do jovem e da população. Mas, pelo andar do camburão, isso não deverá acontecer.

Champinha está internado na Unidade Experimental de Vila Maria da Fundação Casa na Zona Norte de São Paulo. Casa é o novo nome da velha Febem. Ele foi levado para o local após uma decisão do juiz Trazíbulo José Ferreira da Silva, da 1ª Vara da Infância e da Juventude, que determinou que o adolescente, considerado perigoso, recebesse tratamento diferenciado no local.

Champinha cumpre medida protetiva (modalidade não prevista no ECA) e não é o único. Mais dois jovens lhe fazem companhia porque já completaram três anos de internação. Outros dois jovens, que passaram pela mesma situação, já estão nas ruas. Estaticamente, 50% dos jovens que saem das unidades de internação de menores voltam a cometer crimes. A Casa não tem nenhuma informação se os dois ex-colegas de Champinha na Vila Maria voltaram a delinqüir.

Uma vez cumprida a medida sócio-educativa ou o limite de idade para que o menor fique internado, ele é solto no mundo. Nenhum acompanhamento é feito, nenhuma obrigação permanece, nenhum vínculo é mantido. Mesmo que o egresso seja alguém como Champinha, pintado como um monstro em corpo de gente.

O caso Champinha revela a fragilidade do Estado em responder o clamor público com eficiência e dentro da legalidade. O ECA determina que a internação de um menor de idade não pode exceder três anos. Quando o limite estabelecido for alcançado, o adolescente deve ser ou libertado, ou colocado em regime de semi-liberdade ou de liberdade assistida. Não pode ser imposta outra “pena”, por não haver previsão para isso. Outra previsão do ECA é a que afirma que a liberdade do jovem será compulsória aos 21 anos de idade (artigo 121, parágrafo 5º).

Champinha já passou da primeira previsão do ECA e está a caminho da segunda regra. E, pela lei, não se poderia aplicar as duas previsões do ECA para o mesmo caso. Ou uma, ou outra. Agora, o processo caminha de novo para o território da ilegalidade.

Segundo o defensor público de Champinha, Flávio Frasseto, se a lei não foi respeitada no primeiro momento, quando o jovem completou três anos de internação, não será agora que isso vai acontecer. “O que está sendo levado em consideração é o clamor público e não o que determina a lei”, afirma.

De acordo com o defensor público, quando o ECA foi criado, em 1990, o legislador não previu situações excepcionais, como a do jovem que matou duas pessoas com requintes de crueldade. Quando estabeleceu os três anos e internação, a lei previu que a Administração Pública seria capaz de, neste período, aplicar medidas que garantissem a segurança dos menores e da população.

“No caso do Champinha, o tempo para o sistema se preparar para recebê-lo foi ainda maior. O jovem já está há quatro anos na Fundação Casa. Mas a menos de um mês do prazo limite para sua libertação, não se sabe o que será feito com ele. O infrator, que já cumpriu a internação, não pode ficar a mercê da incapacidade do Estado em gerir o problema”, diz Frasseto.

Para o defensor, o possível transtorno de comportamento de Champinha é apenas uma desculpa do Estado, que transferiu o problema para o Poder Judiciário, com o propósito de mantê-lo longe dos olhos da sociedade. “Qualquer menor infrator tem desvio de comportamento. Nem por isso ficam internados mais do que a lei prevê”, alerta.

“Todo esse clima que se construiu em volta de Champinha, de que ele é um monstro, um louco que se for solto, voltará a cometer crimes bárbaros, é pura mistificação. Exploração. Informações incompletas fornecidas por quem não se conforma com a lei, de quem quer resolver o problema da criminalidade escondendo o criminoso”, diz.

Um juiz ouvido pela revista Consultor Jurídico confirmou que o caso Champinha é uma “aberração jurídica”. Segundo ele, Poder Judiciário e Administração Pública protelaram o desfecho do caso para que ele se torne um problema de saúde pública e não mais de segurança pública. O juiz explica que há uma tendência na Justiça brasileira de, considerando o menor infrator incapaz de responder positivamente ao tratamento sócio-educativo, mandar que ele seja tratado com técnicas da medicina. Então, passa a ser um problema de natureza civil, na ótica do Direito Civil.

Alternativa

Saída legal para o caso Champinha e dos outros dois jovens infratores internados na Fundação Casa além do previsto em lei existe. É só a Administração Pública criar mecanismos de monitoramento dos jovens infratores em liberdade. Até porque, essa é uma das regras do ECA. Está escrito na lei que é papel das unidades de atendimento de crianças e adolescentes oferecer ao menor apóio educativo e psicológico para que o jovem que acabou de sair de uma internação não volte a delinqüir.

Segundo Frasseto, essa rede de ajuda ao menor infrator não é criada simplesmente porque não se pensa no bem-estar dos jovens. “A grande questão ainda é o inconformismo da gravidade do crime cometido versus o tempo de internação e o prognóstico de periculosidade para justificar o não cumprimento da lei”.

“Infração à lei é sempre crime, independentemente do autor do delito”, completa o juiz ouvido pela ConJur.

Histórico

Liana Friedenbach e Felipe Caffé desapareceram no dia 31 de outubro de 2003, depois de terem mentido para os pais sobre a viagem que planejavam. Liana disse que iria para Ilhabela (litoral norte de São Paulo), com adolescentes da comunidade israelita. Felipe contou que iria acampar, mas a família acreditava que ele iria com amigos.

Os dois acampavam em uma região isolada de Embu-Guaçu quando foram seqüestrados e mantidos em um sítio. Felipe foi morto com um tiro na nuca. Liana foi violentada todos os dias em que esteve com os criminosos e morta a facadas cinco dias após o seqüestro. Os corpos do casal só foram encontrados no dia 10 de novembro de 2003.

Em julho do ano passado, a Justiça paulista condenou três dos cinco acusados de seqüestrarem e matarem o casal de adolescentes. A condenação somou mais de 169 anos de prisão. Agnaldo Pires foi condenado a 47 anos e três meses de reclusão por estupro; Antonio Caetano da Silva a 124 anos por vários estupros; e Antonio Matias a seis anos de reclusão e um ano, nove meses e 15 dias de detenção por crime de cárcere privado, favorecimento pessoal, ajuda à fuga dos outros acusados e ocultação da arma do crime. Paulo César da Silva Marques, o Pernambuco, que deu o tiro em Felipe Caffé, foi condenado nesta quinta-feira (8/11) a 110 anos de prisão.

Champinha, desde 2003, tem sido um problema para a Secretaria de Segurança Pública. Ele foi internado na antiga Febem quando tinha 16 anos. O limite de tempo para que o rapaz ficasse na Febem é de três anos, prazo que expirou em novembro passado. Ele continuou internado porque a Justiça o considerou incapaz de cuidar de si mesmo depois de atingir a maioridade civil. O destino de Champinha deveria ser um hospital psiquiátrico.

Sem dispor de uma instituição de saúde própria para adolescentes, a Secretaria da Saúde sugeriu que o infrator fosse mantido na antiga Febem, onde receberia tratamento de profissionais da saúde. Ele deveria permanecer na Febem até a decisão final da Justiça.

Em abril deste ano, ele e um menor fugiram do Complexo Vila Maria, da Fundação Casa. Cerca de onze horas depois, ele foi recapturado, junto com outro adolescente por uma equipe da Rota, grupo de elite da Polícia Militar, em uma favela de Ferraz de Vasconcelos, na Grande São Paulo.

Depois da fuga, o juiz Trazíbolo José Ferreira da Silva acatou sugestão do Ministério Público Estadual para encaminhar Champinha para uma Unidade Experimental de Saúde da Vila Maria, na Zona Norte de São Paulo. No mesmo despacho, o juiz determinou o acompanhamento de profissionais do Núcleo de Estudos e Pesquisas de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.

Depois da fuga de Champinha, o Estado chegou a propor que ele fosse transferido para a Casa de Custódia em Taubaté, um presídio para presos comuns. Dos males o menor: mesmo contrariando a lei, Champinha foi encaminhado para uma instituição de reclusão para menores.

Agora as alternativas são mais drásticas: ou o Estado desafia o clamor público, cumpre a lei e devolve Champinha às ruas e assume o risco, já que não há disposição para fazer qualquer acompanhamento ou adotar medida de segurança. Ou dá ouvidos ao clamor popular e, ao arrepio da lei, retém Champinha recluso em alguma unidade prisional, condenando-o a uma pena de prisão perpétua disfarçada.

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