Um poder inconveniente

Equiparar Defensoria ao Ministério Público é irresponsabilidade

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5 de novembro de 2007, 13h14

[Artigo publicado nesta segunda-feira, 5 de novembro, na Folha de S. Paulo]

OS PODERES não podem ser todo-poderosos. Os poderes não podem estar acima do bem comum, da democracia, nem são para usufruto de grupos ou corporações. São concebidos para servir à nação, e somente a harmonia e o equilíbrio entre eles são capazes de garantir a democracia e o Estado de Direito.

O Brasil já sofreu por diversas vezes o efeito perverso do superpoder —na monarquia, na República Velha, no Estado Novo e na ditadura militar—, quando uma minoria foi privilegiada em detrimento da maioria.

É por isso que sou contra a proposta de emenda constitucional 487/ 2005, que equipara a Defensoria Pública da União ao Ministério Público, criando um monstrengo capaz de tumultuar ainda mais a já problemática Justiça brasileira.

Em primeiro lugar, ninguém sabe quanto isso irá custar ao país —num momento em que existem outras prioridades. A saúde está aos pedaços e a segurança pública estadual não consegue pagar remuneração digna aos seus agentes, enquanto professores do ensino fundamental recebem salário mínimo e ensinam em escolas precárias.

A Defensoria Pública exerce um papel nobre, de grande importância social, que é promover a defesa dos cidadãos pobres, sem dinheiro para pagar um advogado. Ela é importante para que os menos favorecidos tenham assegurado o direito de defesa, princípio fundamental do direito. O Estado deve garantir o funcionamento da Defensoria Pública, promover sua capilaridade, para que possa valer por inteiro o preceito constitucional segundo o qual todos são iguais perante a lei.

Ir além, como desejam os defensores da PEC 487, é irresponsabilidade. Pretendem criar um superpoder no mínimo inconveniente, com privilégios, inúmeros cargos, prerrogativas que interferem no Legislativo e no Executivo, tentando conciliar o melhor de diversos mundos incompatíveis entre si: magistratura, Ministério Público e advocacia pública e privada.

É de admirar que, diante de uma situação tão grave, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) tenha optado pelo silêncio.

Enquanto o juiz detém o monopólio da resolução das demandas e dos litígios, o promotor representa a sociedade, os interesses coletivos, e o defensor público patrocina o interesse privado dos necessitados, daqueles que não têm dinheiro para pagar um advogado. Portanto, o defensor age como advogado privado, embora seja funcionário público, justamente porque cabe ao Estado garantir o acesso universal à Justiça.

Mas o que se pretende é desvirtuar tudo isso. Os integrantes dessa Defensoria Pública hipertrofiada criada na PEC 487 teriam, por exemplo, direito a foro privilegiado até para crimes comuns, direito de encaminhar projetos de lei ao Legislativo, propor ações diretas de inconstitucionalidade, ações declaratórias de constitucionalidade, autonomia funcional e administrativa, poderiam conceder indultos e comutar penas, teriam salários equiparados aos do Judiciário e outros penduricalhos a serem financiados pelos impostos pagos pelo contribuinte. Além disso, ao contrário dos juízes e promotores, os defensores não estariam proibidos de concorrer a cargos eletivos, o que é, no mínimo, uma piada de mau gosto.

Se aprovada a PEC, o resultado será desastroso para o país. No regime democrático, não há espaço para que uma instituição avance sobre as atribuições de outras sem que se promova o desequilíbrio do sistema de freios e contrapesos estabelecido na Constituição. Ou seja: a garantia de que nenhum poder será todo-poderoso.

Inundado por medidas provisórias e pautado pelo Executivo, o Congresso, em especial a Câmara, está legislando de costas para a nação. As corporações, o funcionalismo mais bem organizado e setores com maior poder de pressão acabam influindo na agenda da Casa. Defendem seus interesses, mas isso não quer dizer que devemos transformar as prioridades deles nas prioridades do país.

O bom senso deve prevalecer a fim de impedir que se torne realidade o famoso sermão do padre Antonio Vieira: “Dom Fulano é um fidalgo pobre, dê-se-lhe um governo. (…) Mas porque é pobre, um governo, para que vá desempobrecer à custa dos que governar; e para que vá fazer muitos pobres à conta de tornar muito rico!? (…)

Certo capitão tem muitos anos de serviço: dêem-lhe uma fortaleza nas conquistas”. O Parlamento não dá à luz poderes todo-poderosos; sua missão é impedir que nasçam.

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