Pseudoproteção

Cabe ao cidadão dizer se deseja ter sua vida monitorada

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3 de novembro de 2007, 23h01

Muitos ficaram assustados com as restrições dos direitos civis impostas aos norte-americanos por seu governo, sob o argumento de que isso se tornara necessário para o eficaz combate ao terrorismo, principalmente após o fatídico dia 11 de setembro de 2001.

Ao se avaliar tal acontecimento, pergunta-se: serão mesmo necessárias tais restrições? Até que ponto o cidadão se vê obrigado a abrir mão de seus direitos para um “bem” comum? Não será isso uma concentração de poder muito grande? E se esse poder for utilizado por pessoas erradas?

Essas questões rondaram as cabeças de todo o mundo e do cidadão brasileiro. Algo parecido também o afligiu, há não muito tempo, quando se tentou criar o chamado Conselho Federal de Jornalismo, entre outras tentativas como, por exemplo, restrição da atuação do Ministério Público.

Hoje, mais uma vez, o cidadão brasileiro se pergunta: até onde é necessário abrir mão de direitos em prol de um chamado “bem” comum ou em prol de uma segurança tão desejada? Até onde o Estado pode invadir a privacidade e intimidade para garantir uma segurança que este mesmo Estado não garante por outros meios menos traumáticos?

Isso está ocorrendo, a olhos vistos, sem que a opinião pública seja, ao menos, consultada a respeito.

O caro leitor deve estar se perguntando sobre o quê trata o presente texto e qual direito se encontra em vias de sofrer dano.

No dia 13 de novembro de 2006, com publicação no Diário Oficial no dia 22 de novembro de 2006, foi trazida à população a Resolução 212, do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), que dispõe sobre a implantação do Sistema de Identificação Automática de Veículos, também conhecido com a sigla Siniav.

Basicamente o Siniav é composto por placas eletrônicas instaladas nos veículos, na parte interna do pára-brisa dianteiro, além de antenas receptoras espalhadas por todo o país e centrais de processamento dos dados colhidos.

A tal placa eletrônica emite ondas de rádio que são captadas pelas antenas receptoras que informam à central o exato local onde o veículo se encontra sendo que nenhum veículo poderá circular nem ser licenciado sem ela.

Ao analisarmos esta medida, é necessário que se faça sob alguns aspectos. O primeiro seria quanto à legalidade.

O artigo 12 do Código de Trânsito Brasileiro disciplina a competência do Contran. Uma delas é “normatizar os procedimentos sobre a aprendizagem, habilitação, expedição de documentos de condutores, e registro e licenciamento de veículos.

Esse registro e licenciamento de veículos deve ser feito dentro dos parâmetros estabelecidos pelo próprio CTB, conforme preconiza o artigo 114, que disciplina que o veículo deve ser “identificado obrigatoriamente por caracteres gravados no chassi ou no monobloco, reproduzidos em outras partes, conforme dispuser o CONTRAN”.

A melhor interpretação desse dispositivo é que o Contran tem autonomia para regulamentar em que outras partes do veículo serão gravados os caracteres identificadores, como os vidros, a título de exemplo. O ato aqui é vinculado. Deve haver gravação física.

Isso decorre do princípio basilar que rege a relação entre o Estado e o cidadão que é o princípio da legalidade, ou seja, o Estado só pode fazer o que a lei determinar, diferentemente do princípio da autonomia da vontade que rege a relação entre particulares, dispondo que se presume permitido o que não é proibido.

De qualquer forma a própria Resolução 212 estabelece que as placas eletrônicas “devem possibilitar sua fixação nos veículos de tal forma que se tornem fisicamente inoperantes quando removidas da sua localização original”. Disso conclui-se que tal dispositivo não está apto a identificar qualquer veículo nos moldes estabelecidos pelo CTB.

Ainda, o artigo 115 do CTB disciplina a forma de identificação externa do veículo sendo que neste artigo não é mencionado qualquer meio de identificação eletrônica, confrontando-se, mais uma vez, com o princípio da legalidade.

Ainda quanto ao aspecto da legalidade, analisando-se a Lei Complementar 121, de 9 de fevereiro de 2006, vê-se que, na criação do Sistema Nacional de Prevenção, Fiscalização e Repressão ao Furto e Roubo de Veículos e Cargas, alguns de seus objetivos relacionam-se a modernização e a adequação tecnológica dos equipamentos e procedimentos destinados a tal prevenção, fiscalização e repressão ao furto e roubo de veículos, bem como manter sistemas de informações para o conjunto de órgãos integrantes do Sistema.

Ora, fiscalização e repressão ao furto e roubo de veículos não quer dizer fiscalização e repressão ao cidadão. Num país onde autoridades públicas são acusadas de violar o sigilo bancário e fiscal de cidadãos de bem, tal dispositivo torna-se altamente perigoso.

Ainda, os sinais obrigatórios de identificação dos veículos, que deveriam ser estabelecidos pelo Contran nos termos do artigo 7º da Lei Complementar supramencionada, devem seguir ao disposto no artigo 114 e seguintes do Código de Trânsito Brasileiro, já que a lei especial revoga a lei geral. A Lei Complementar citada não trata especificamente do assunto, só tangenciando-o genericamente. O CTB é, portanto, a norma competente para tal regulamentação.

Assim como os sinais obrigatórios de identificação devem ser aqueles estabelecidos pela Lei de Trânsito, impossível que seja aplicada a penalidade disposta no artigo 237 do CTB, uma vez que a inscrição ou simbologia necessária à identificação do veículo deve ser determinada em lei, qual seja, aquela estabelecida no artigo 114 e seguintes do CTB (Constituição Federal, Artigo 5º, “II — ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”).

O segundo aspecto importante nesta análise é o sócio-político.

A justificativa do combate à criminalidade possui grande apelo público. A população, de uma forma geral, encontra-se submersa em uma nebulosa sensação de insegurança, midiaticamente reforçada, em que a violência representa um perigo iminente aos considerados “bons” cidadãos.

Diante da oposição entre bem e mal, todo mecanismo destinado ao combate do maléfico se evidencia aparentemente legítimo. Nestes momentos de insegurança, passa-se a legitimar a tomada de medidas extremas, aparentemente válidas, destinadas ao combate da criminalidade. Após décadas de construção da noção de garantias e direitos, com a produção de toda uma orquestração legislativa no âmbito internacional e na esfera constitucional de cada país, entregamos ao Estado a legítima possibilidade de monitorar a individualidade do cidadão.

Então, pergunta-se: a quem se destina tal medida? A que interesses se presta? Serviria ela ao interesse do indivíduo, da coletividade ou serviria antes aos interesses do Estado?

Estas perguntas se tornam mais contundentes ao se verificar que os veículos que circulam pelo Mercosul, sejam de cargas ou de turistas argentinos, paraguaios, uruguaios e outros, não terão obrigação de portar o dispositivo de monitoramento em seus veículos, já que a legislação de seu país de origem não os obriga.

Ainda, o ladrão do veículo, sabendo da existência de tal dispositivo, simplesmente o inutilizaria, como a própria malfadada Resolução 212, em seu anexo II, item 3, determina, caso retirada a placa eletrônica do local.

Não é aceitável que tamanho poder seja conferido ao Estado, porquanto o combate à criminalidade exige uma atuação mais refletida, por parte da população e das autoridades competentes. A origem da violência demanda uma atuação preventiva que deve ser sempre cobrada e nunca olvidada.

A ação preventiva deve ser priorizada sim, mas sem que os direitos básicos do cidadão sejam violados, como é o que ocorre no presente caso. A vivência mostra um cem número de medidas emergenciais que nunca cumprem, nem mesmo tangencialmente, as estimativas de diminuição dos índices de criminalidade.

Assim considerando, deve-se questionar o alcance da novíssima medida prevista pela Resolução 212, já que, como demonstrado, não seria difícil burlar a fiscalização, ao passo que o cidadão, que procura levar uma vida dentro dos padrões de legalidades estabelecidos pelo Estado, será constantemente vigiado. A tentativa recente de desarmamento da população e não dos criminosos estava no mesmo diapasão.

Quanto de liberdade estará a população disposta a oferecer em troca de uma pseudoproteção? Não se trata de uma troca justa e tampouco eficaz. Principalmente quando se considera a fragilidade do Estado de Direito, e o elevado grau de corrupção que influencia a atuação estatal.

Ressalte-se que Convenção Americana de Direitos Humanos elenca um rol de direitos e garantias essenciais em atendimento à necessidade real que já foram verificadas em momentos da História regional, não muito distantes, em que as arbitrariedades do poder do Estado assolavam a dignidade dos indivíduos. “Artigo 11 (2) — Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação”.

Hoje, frente a mais esta tentativa de violação aos direitos civis, cabe ao cidadão dizer se deseja, ou não, ter sua vida monitorada. Não obstante, esta medida enfraquece sobremaneira a capacidade de autodeterminação do indivíduo, ao passo que fortalece o poder de ingerência do Estado, configurando-se um cenário favorável a novas e mais profundas violações.

Destarte, a Resolução 212, do Contran, é contrária a todo o sistema de proteção aos direitos individuais estabelecidos pela Carta Magna, razão pela qual deve ser extirpada do ordenamento jurídico brasileiro.

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