Regras inadequadas

Não se pode combater o crime com o Direito de Guerra

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2 de novembro de 2007, 23h01

Guerra é uma palavra forte demais para designar o conflito entre autoridades e traficantes no Rio de Janeiro, afirma João Paulo Charleaux, assessor de comunicação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) para Brasil, Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai. No entanto, a expressão “guerra no Rio” aparece com freqüência nos jornais brasileiros.

Charleaux afirma que o uso inadequado do termo pela imprensa contribui para intensificar a violência empregada pelas partes conflitantes no Rio e define “guerra” como “conflito armado internacional” (entre dois ou mais Estados).

“Se os jornais publicam isso, as pessoas começam a agir como se fosse guerra mesmo. O governador vai ler, o secretário de segurança pública também, o comandante do Bope (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar) também”, completa o assessor.

Situações de guerra e não-guerra diferem sob o aspecto jurídico: há acordos internacionais específicos para cada caso, que determinam quais direitos humanos e normas de conduta são vigentes, esclarece João Paulo.

A regra geral é a aplicação da Declaração dos Direitos Humanos, elaborada e ratificada na ONU em 1948. “Mas, na guerra, algumas de suas determinações são suspensas”, lembra Charleaux, indicando que esse não é o caso do Rio de Janeiro.

Para as guerras, o Direito Humanitário Internacional (DHI) estabelece regras específicas. Por exemplo: ninguém vai a julgamento por matar um soldado inimigo. “Isso é normal nessas circunstâncias”, avalia o assessor do CICV.

Mesmo assim, a polícia carioca expõe constantemente pela imprensa que atua numa “guerra contra o tráfico”. Charleux opina que o “nível de exigência decaiu tanto” que a mídia chega a ser permissiva com o abuso de violência nos conflitos urbanos e lembra que outra diferença entre guerra e não-guerra é a proporcionalidade de forças: a polícia deve usar armas e métodos correspondentes aos de quem enfrenta, nunca superior. Isso não vale para exércitos, que podem atacar com tropa numerosa um grupo pequeno de soldados inimigos ou mesmo atacá-los enquanto dormem.

Regulação

Os acordos sobre conflitos armados internacionais não protegem pessoas que participam das hostilidades, mas regulam quais métodos e armas podem usar para se atacar. Os princípios jurídicos dessas normas estão no Direito Humanitário Internacional (DHI), ramo do Direito Público Internacional, que fundamenta as quatro Convenções de Genebra e seus dois Protocolos Adicionais.

A positivação do DHI ocorreu em meados do século XIX, quando Henry Dunant fundou a Cruz Vermelha (CV) e inspirou parte da comunidade internacional a assinar a primeira Convenção de Genebra (1864), conta Charleaux.

As outras convenções são de 1906, 1929 e 1949. Em conjunto, elas proíbem ataques contra os civis, o pessoal em missão religiosa ou médica e os militares feridos, doentes, rendidos e capturados.

Os Protocolos Adicionais, assinados em 1977, incluem na definição de conflito internacional as guerras de libertação nacional e estendem a proteção das Convenções às pessoas implicadas em conflitos internos (confronto entre Estado e grupos armados ou entre grupos armados dentro de um território nacional).

O DHI também limita o uso de armas e munições, lembra Charleux. Algumas, como metralhadoras, podem ser usadas apenas com determinado tipo de munição. Outras, como minas anti-pessoal, são proibidas, porque não diferenciam seus alvos. “Elas não distinguem quem pisa nelas e afetam quem não participa do conflito”, diz o assessor do CICV.

Também os métodos de atuar na guerra estão previstos no DHI. Como exemplo, Charleaux cita a perfídia: “Não pode usar uma ambulância para transportar tropas e realizar um ataque”.

Usar civis como escudo, impedir ajuda humanitária, agredir sem objetivo militar ou com sadismo, são outras ações proibidas pelo DHI, cita Charleaux.

Punições

Para concluir, o assessor do CICV explica que os próprios Estados devem julgar seus cidadãos acusados de violar o Direito Humanitário Internacional. Havendo impossibilidade ou recusa para tal, o caso segue para o Tribunal Penal Internacional (TPI). Quando o acusado é um Estado, cabe ao Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) realizar o julgamento.

No entanto, essa cobrança vale apenas para países que ratificaram o Estatuto de Roma, que possui menos signatários do que as Convenções de Genebra. Fora do Estatuto estão países como Estados Unidos, Israel, China e Rússia.

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