Chama da memória

Queima de processos antigos pode ser ameaça à história

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1 de novembro de 2007, 23h00

Em 1890, o jurista Ruy Barbosa, então ministro da Fazenda, para erradicar uma mancha na história do Brasil, ordenou a queima de documentos sobre a escravidão. Mais de 100 anos depois, em 2004, arquivos secretos da Ditadura Militar apareceram queimados na Base Aérea de Salvador, na Bahia.

A histórica prática de queimar documentos de interesse público também é utilizada pela Justiça. Na quarta-feira (31/10) o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul queimou 12 mil processos, o que equivale cerca de cinco toneladas de papel. Os documentos abrangem Habeas Corpus, Mandados de Segurança e Revisões Criminais, dos anos de 1979 a 2000. Esta é a primeira vez, que processos da Justiça estadual de Mato Grosso foram queimados.

De acordo com o desembargador João Carlos Brandes Garcia, presidente do tribunal, a queima desses documentos é importante devido ao acúmulo de processos transitados em julgado. “A junção desses papéis gera um alto custo e suportar esse tipo de despesa é inviável”.

Até 1975, o Código de Processo Civil, em seu artigo 1.215, permitia a eliminação de processos. Com a pressão de historiadores e da sociedade, o dispositivo teve sua vigência suspensa pela lei 6.246/75. Mais tarde, a lei 8.159 (Lei de Arquivos), de 8 de janeiro de 1991, em seu artigo 25, determinou que está sujeito à responsabilidade penal, civil e administrativa, na forma da legislação em vigor, aquele que desfigurar ou destruir documentos de valor permanente ou considerado como de interesse público e social.

Para fazer a seleção do que poderia ser descartado e do que é de interesse público e histórico, o tribunal sul-matogrossense criou, em 2006, a Comissão de Análise e Seleção de Documentos (Casd), formada por juizes, corregedores, servidores públicos, historiadores e membros da OAB.

“Tomamos todo o cuidado para não queimarmos documentos de valor histórico. A prática é inédita na Justiça estadual, mas as incinerações vão acontecer mais cedo ou mais tarde. É muito papel armazenado e digitalizar tudo isso é um custo muito alto. No futuro, não teremos este tipo de preocupação devido à virtualização que já ocorre no judiciário estadual”, afirma Brandes Garcia.

A queima de documentos públicos e históricos divide opiniões e gera polemicas. O advogado Fábio Trad, presidente da OAB-MS, é a favor da eliminação de documentos não históricos e processos que não tiveram jurisprudência. “A incineração desses documentos não caracteriza queima da história, mas sim economia de espaço e dinheiro. Não tem mais sentido guardar. O que aconteceu de importante está nos livros, o que foi queimado eram apenas processos”, diz.

A Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp) pensa diferente. Em 2000, a entidade se posicionou contra a incineração de todos os processos arquivados, há mais de cinco anos, na primeira instância das comarcas do estado. A proposta tinha sido feita pelo Conselho Superior da Magistratura de São Paulo. A Associação recorreu ao Superior Tribunal de Justiça contra decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que permitiu a destruição dos documentos

A seccional paulista da OAB, o Ministério Público e a Associação dos Advogados do Brasil (AAB) também se manifestaram contrários à medida. As entidades temiam que a atitude causasse prejuízos às partes, à memória pública e à administração da função jurisdicional do estado.

Na época, o Ministério Público Federal emitiu parecer favorável ao recurso dos advogados paulistas. Segundo o documento, a destruição dos processos arquivados é inconstitucional e ilegal. No parecer, o MP afirmou que o “Conselho Superior da Magistratura invadiu o âmbito de competência legislativa reservada à União, previsto no artigo 22 da Constituição”.

O Presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, Hildebrando Campestrini, se apega a tabela de temporaneidade de documentos, desenvolvida pela Justiça em 1986, para defender a queima dos documentos. Segundo ele, a tabela deixa claro que só podem ser incinerados os documentos sem qualquer importância histórica para o Brasil. Campestrini acredita que o Casd não iria queimar documentos de interesse público e histórico, pois, segundo ele, no tribunal existe a preocupação da conservação da história.

O arquivista do Supremo Tribunal Federal, Marcelo Jesus dos Santos, defende a regulamentação da Lei de Arquivos, proposta pelo Conselho Nacional de Arquivo (Conar), que tramita no Congresso. O que o conselho quer, explica o arquivista, é que a lei determine se os processos devem ser arquivados ou queimados. “Aqui no STF não descartamos nenhum processo, preferimos seguir a lei antiga, que proíbe a queima desses documentos”.

Santos explica que, de tudo que é produzido pela Justiça brasileira, apenas 10% é conservado para sempre. Segundo ele, os documentos têm valor administrativo e histórico. A seleção do que deve ser eliminado é feita através de estudos. Para Santos, não existe a necessidade de guardar tudo, somente os que geram jurisprudência. Mas, o arquivista afirma que tudo que é gerado nos tribunais representa uma parte da história e da vida das pessoas.

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