Regras claras

É preciso disciplinar investigações para quem tem foro especial

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

1 de novembro de 2007, 23h00

O foro privilegiado foi instituído pela Constituição de 1891 que, no artigo 57, parágrafo 2º, dava competência ao Senado para julgar os membros do Supremo Tribunal Federal nos crimes de responsabilidade e, ao STF, para julgar os juízes federais inferiores (artigo 57, parágrafo 2º), o presidente da República e os ministros de estado nos crimes comuns e de responsabilidade (artigo 59, II).

A partir de então, todas as constituições mantiveram o foro privilegiado. Nas palavras de Júlio Fabbrini Mirabete, “há pessoas que exercem cargos e funções de especial relevância para o Estado e em atenção a eles é necessário que sejam processados por órgãos superiores, de instância mais elevada”. (Processo Penal, 2. ed., Atlas, p. 181). A justificativa, portanto, é a de que órgãos superiores da Justiça, ou mesmo do Poder Legislativo, teriam maior independência para julgar altas autoridades.

Esta competência excepcional se alargou com a Constituição de 1988. Ela dá ao Senado Federal competência para julgar o presidente da República, o vice-presidente, os ministros do STF, o procurador-geral da República e o advogado-geral da União, nos crimes de responsabilidade (artigo 52, I e II). Ao STF, para julgar o presidente da República, o vice-presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios ministros e o procurador-geral da República nos crimes comuns e, nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os ministros de estado, os membros dos Tribunais Superiores (STJ, TST, TSE e STM), do Tribunal de Contas da União e chefes de missão diplomática de caráter permanente (artigo 102, I, “b” e “c”). Ao Superior Tribunal de Justiça, para julgar, nos crimes comuns, os governadores de estados e do Distrito Federal e, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça, os membros de Tribunais de Contas dos estados, TRFs, TRTs, TREs, Conselhos e Tribunais de Contas dos municípios e agentes do Ministério Público que atuem nos Tribunais (artigo 105, I, “a”).

Aos Tribunais Regionais Federais se atribui o julgamento, nos crimes comuns e de responsabilidade, dos juízes federais, juízes do trabalho, juízes militares e procuradores da república, da área de sua jurisdição (artigo 108, I, “a”).

Ao Tribunal Superior Eleitoral cabe julgar os juízes dos Tribunais Regionais Eleitorais e, a estes, julgar os juízes eleitorais, nos crimes de responsabilidade (Lei 4,737/65, artigo 22, I, “d”). Finalmente, aos Tribunais de Justiça cabe o julgamento dos prefeitos (CF, artigo 29, VIII) e dos juízes de direito e promotores de justiça. Além disto, as Constituições Estaduais podem, ainda, dar competência aos TJs para processar e julgar secretários de estado e outras autoridades (p.ex., em SP, o delegado geral da Polícia Civil e comandante geral da Polícia Militar, conforme artigo 74, II).

Assim é o sistema. Necessário, ainda, explicar que crimes comuns são os previstos no Código Penal e leis extravagantes, e crimes de responsabilidade são aqueles praticados por funcionários públicos e agentes políticos (ex., prefeitos e juízes) em razão de suas funções. De resto, cumpre registrar que os deputados federais e senadores, uma vez recebida pelo STF a denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal, poderão ter a ação penal sustada, se assim decidir a Casa a que pertençam (CF, artigo 53, parágrafo 3º).

A ineficiência do foro privilegiado no Brasil

Nunca se deu — e nem se dá — maior atenção às ações penais originárias no Brasil. O mundo acadêmico não se preocupa com os temas de política judiciária e administração da Justiça. Raríssimas são as dissertações de mestrado ou teses de doutorado nesta área. Todavia, agora, a questão do foro privilegiado está na ordem do dia, tendo, inclusive, sido objeto de manifestação contrária da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) (Informativo Ajufe, set./07, p. 6). E com razão, pois este é um dos maiores problemas da impunidade na esfera criminal.

No passado, o número de autoridades que gozavam do direito ao foro privilegiado era pequeno. Apenas para dar um exemplo, no início da década de 1970 havia 33 desembargadores no TJ de São Paulo, atualmente são 360. É difícil saber quantas autoridades gozam, no Brasil, do direito a foro privilegiado. Em avaliação aproximada, podemos calcular como sendo cerca de 16.500 magistrados, 10.000 agentes do Ministério Público, 1.000 parlamentares (federais e estaduais), 300 ministros e conselheiros de Tribunais de Contas (incluindo municipais), 250 ministros e secretários de estado e 5.561 prefeitos municipais, em um total estimado de 33.611 autoridades.

Não é, pois, de surpreender, que nos tribunais existam ações penais originárias por mais diversos fatos, desde inofensivas contravenções até casos de homicídio. Entretanto, apesar da mudança e do acréscimo de ações penais originárias nos tribunais, a estrutura destes continua a mesma, preparada só para receber recursos. Apenas os TJs do Rio Grande do Sul (este há muitos anos e de forma pioneira) e de São Paulo possuem câmara especializada para o julgamento de ações penais originárias. Os demais continuam no sistema tradicional, sem funcionários especializados, salas próprias para audiências, sistema de estenografia e com dificuldades para as medidas mais corriqueiras, como o recolhimento de fiança. Além disto, ministros e desembargadores ficam divididos entre o julgamento de milhares de recursos e complexas ações penais originárias. A complementar a ineficiência, por vezes as provas têm que ser obtidas em locais situados a centenas de quilômetros do tribunal, originando burocráticas cartas de ordem.


Mais poderia ser dito. Inclusive, da desdita por que passam os acusados inocentes, já que as ações penais não terminam. Mas um só fato é suficiente para dispensar maiores considerações: são totalmente desconhecidos os dados sobre ações penais originárias que tramitam nos tribunais brasileiros, não existem dados a respeito nos sítios da web e, portanto, não se atende ao princípio da transparência (CF, artigo 5º, incs. XIV e XXXIII), ainda que resguardados dados pessoais nos casos de segredo de Justiça (Lei 9.784/1999, artigo 2º, parágrafo único, inc. V).

A investigação dos crimes em casos de foro privilegiado

Estes comentários, todavia, não visam apontar as falhas do sistema nos crimes em que o denunciado tem foro privilegiado. Aqui o foco é outro, ou seja, a investigação dos delitos em que a ação penal é originária, ou seja, tramita nos tribunais. Trata-se de matéria pouco estudada, como de resto ocorre com todos os temas relacionados com a Segurança Pública, prevista no artigo 144 da Constituição. Não há lei regulamentando tal tipo de investigação e nem mesmo previsão nos Regimentos Internos dos tribunais. Via de regra, ocorrido o fato, cada tribunal procede conforme considera correto o relator, sem regras prefixadas. Há apenas pequena previsão para os casos de envolvimento de juízes e agentes do MP em fatos criminosos. No caso dos juízes, a LC 35/79 assim dispõe:

Artigo 33. São prerrogativas do magistrado:

(…)

Parágrafo único. Quando, no curso de investigação, houver indício da prática de crime por parte de magistrado, a autoridade policial, civil ou militar, remeterá os respectivos autos ao tribunal ou órgão especial competente para o julgamento, a fim de que prossiga na investigação.

A primeira observação que se faz é a de que podem ocorrer dois tipos de situação: a) A autoridade policial toma contato direto com os fatos, durante ou logo após a sua ocorrência; b) O delegado de polícia, em meio ao andamento de investigações contra determinada pessoa, vê surgir o nome de uma autoridade judiciária com direito a ser investigada por seu tribunal.

Quando a autoridade policial conhecer do fato de imediato, analisará se o caso é de lavratura de auto de prisão em flagrante. E aqui a decisão nem sempre será fácil, pois, por vezes, há pressão política para que não o faça e popular para que o faça. Pois bem, a resposta está no artigo 33, inc. II, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman), que dispõe que a prisão de magistrado só poderá ocorrer por ordem escrita do tribunal ou do órgão especial competente para o julgamento, salvo em flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará imediata comunicação e apresentação do magistrado ao presidente do tribunal a que esteja vinculado.

Portanto, admite-se a prisão em flagrante se o delito for inafiançável (CPP, artigos. 321 a 324), mas deve ser comunicada de pronto ao presidente do tribunal ao qual o juiz está subordinado, através de ofício. A relevância da situação recomenda que, além do ofício, haja, cumulativamente, informação por fac-simile, e-mail, telefonema ou outro meio de comunicação, registrando-se tudo nos autos, com menção a dia e hora.

Na segunda hipótese, ou seja, se a notícia do envolvimento de um magistrado surgir em meio às investigações, cabe ao delegado de polícia suspender o andamento do inquérito e enviá-lo imediatamente ao presidente do tribunal competente. Por exemplo, se for um juiz federal, remeterá ao TRF da região, se for um desembargador de TJ, enviará ao STJ. Evidentemente, os fatos investigados antes de constatar-se o envolvimento de um juiz são perfeitamente válidos e serão aproveitados pelo relator do tribunal competente. Assim decidiu o STF em acórdão relatado pelo ministro Sepúlveda Pertence, negando provimento ao Recurso Ordinário no Habeas Corpus 84.903-2/RN, que pretendia ver anulada ação penal proposta contra juiz de direito, acusado e condenado por homicídio, sob a alegação de que as investigações tinham sido feitas por delegado de polícia. No voto do relator consta: Regra geral, o foro por prerrogativa de função do suspeito não subtrai dos órgãos da polícia judiciária a atribuição que é administrativa, de apurações das infrações penais, conforme o artigo 144, da Constituição (RT 835/504).

A propósito do indiciamento, o STF decidiu, na Questão de Ordem no Inquérito 2.411, relator ministro Gilmar Mendes, que a autoridade policial não tem poderes para decidir sobre o indiciamento do acusado. Em outras palavras, estendeu aos juízes o que já estava previsto para os promotores e procuradores da República.

Atualmente, a grande virtude do indiciamento não é exatamente identificar o acusado, já que a maioria das pessoas possui carteira de identidade. O mérito maior é o de alimentar o INFOSEG, rede de informações da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), ou seja, a integração de todo o sistema policial, que permite a policiais consultar os antecedentes de pessoas. Este sistema, que é da máxima importância no âmbito da segurança pública, é coordenado pelo Ministério da Justiça (www. infoseg.gov.br). Evidentemente, esta cautela não é necessária para magistrados e membros do MP, vez que a infração penal é incidente e não regras em suas vidas.


Para os agentes do Ministério Público, a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (LONMP), de 8.625/93, dispõe no artigo 40, inc. III, ser prerrogativa dos seus membros ser preso somente por ordem judicial escrita, salvo em flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará, no prazo máximo de 24 horas, a comunicação e a apresentação do membro do Ministério Público ao procurador-geral de justiça. Portanto, praticado um delito por um procurador da República, a autoridade policial que dele tomar conhecimento fará a comunicação ao procurador-geral da República, que promoverá a necessária investigação. Por outro lado, nos termos do artigo 41, inciso II, o agente do MP tem direito a não ser indiciado em inquérito policial, observado o disposto no parágrafo único deste artigo.

A situação será mais complexa quando a autoridade investigada é um parlamentar ou um chefe do Poder Executivo. É que daí não há previsão legal para a condução das investigações. Nada, simplesmente nada. Há precedente do STF, em acórdão relatado pelo ministro Celso de Mello, afirmando que a competência para o inquérito policial que envolva titulares de prerrogativas de função cabe ao próprio foro do titular (RT 725/471). Assim, exemplificando, se a um governador de estado é atribuído um crime, caberá a um ministro do STJ, sorteado como relator, proceder a investigação. Isto, todavia, não está previsto na Carta Magna ou na legislação. E não é uma solução simples como parece à primeira vista. Imagine se todos os prefeitos do Brasil forem investigados pelos TJs, isto inviabilizaria as Cortes Estaduais. Por exemplo, o estado de Minas Gerais tem 853 municípios. Se cada acusação de um desafeto político de um prefeito for investigada pelo Tribunal, seus desembargadores perderão precioso tempo, com prejuízo aos muitos recursos que recebem. É óbvio que esta é uma atividade típica da Polícia Judiciária da União e dos estados, a qual, considerando a relevância das funções do investigado, poderá determinar que a uma autoridade policial superior caiba a investigação.

Situações complexas de difícil solução

Há inúmeras situações em que a falta de previsão legal deixa perplexo o agente do estado. Sem saber como proceder, sem doutrina ou jurisprudência a justificar sua decisão, fica a autoridade entre o risco de ser acusada por ação (abuso de autoridade) ou por omissão (crime de prevaricação). Vejamos alguns casos, buscando, para eles, encontrar solução:

Investigação tem caráter contraditório? O inquérito conduzido nos tribunais ou no MP é inquisitivo, tal qual um inquérito policial. Mas por vezes, por convicção pessoal, um relator dá-lhes caráter contraditório. Disto se segue que, além de dar às autoridades suspeitas um privilégio que o cidadão comum não tem, quebrando a isonomia (CF, artigo 5º, inc. I), o tempo da investigação se prolonga no tempo, fruto de intimações, requerimentos de provas e outras medidas.

O relator delega ou colhe a prova? O relator, sendo ministro ou desembargador, tem uma rotina totalmente diversa (normalmente julgando recursos) e isso torna mais difícil que conduza investigações de um fato delituoso. Por exemplo, terá que optar entre locomover-se a outra cidade e daí faltar nas sessões de julgamento e atrasar o exame de centenas de casos (ex., Habeas Corpus e Agravos de Instrumento) para ouvir testemunhas ou delegar a tarefa a um juiz de primeira instância. Na verdade, nenhuma solução é ideal, mas se a colheita da prova for delegada, deverá sê-lo a um juiz da mesma hierarquia do investigado e mais antigo na carreira. Só excepcionalmente à Polícia Judiciária, na pessoa de um delegado de polícia de alta hierarquia.

E a quebra de sigilo bancário? Se as investigações de rotina em delitos comuns despertam dúvidas, imagine-se o grau de dificuldade quando houver necessidade de medidas mais complexas. Se necessária a quebra do sigilo bancário, quem poderá determiná-la? Será decretada pelo relator? Ou pelo Plenário ou Corte Especial? Neste caso a resposta deverá estar no Regimento Interno de cada Tribunal.

E o sigilo telefônico? Aqui a situação é bem mais difícil. Na quebra do sigilo bancário os dados estão registrados e não dependem da urgência ou segredo da medida. Mas no sigilo telefônico, a ordem, sem dúvida, terá que ser rápida e sigilosa, sob pena de total ineficiência. Quem a emitirá será quem tiver poderes recebidos no Regimento Interno. Mas quem a cumprirá será a Polícia Judiciária, pois os tribunais não têm corpo técnico para tal tipo de trabalho, que pode exigir dias de degravação. Bem por isso a Lei 9.296/96, no artigo 6º, atribui tal função à autoridade policial.

E um pedido de prisão preventiva? A resposta aqui é mais fácil. O pedido se processará perante quem o Regimento Interno do Tribunal determinar, ainda que a competência seja fixada de forma genérica e não explícita. Normalmente, será a um relator sorteado. A dificuldade maior ficará nos trâmites burocráticos de remessa dos autos do tribunal à Procuradoria da República (MPF) ou da Justiça (MPE).


E se houver necessidade de filmagem? Aqui, sem dúvida, a ação terá que ser delegada à Polícia Judiciária, Federal ou Civil. É inimaginável que um ministro ou desembargador se disponha a ficar à espreita da eventual conduta de um suspeito.

E se as investigações exigirem a infiltração de um agente especializado? As investigações, em tese, podem exigir a infiltração de um agente para obter informações. Isto ocorre na área do crime organizado, com grande risco do agente que, se descoberto, certamente será morto. Evidentemente, em um Tribunal não há quem detenha cargo, prática ou condições de fazer este tipo de serviço. Terá que ser delegado à Policia Judiciária.

E nos crimes de ação penal privada? A hipótese é mais rara, mas não impossível. Imagine-se, por exemplo, um secretário de estado que, em meio a uma discussão com um condômino de seu edifício, venha a injuriá-lo, incorrendo nas penas do artigo 140 do Código Penal. Sendo o crime de iniciativa da vítima, conforme artigo 145 do mesmo Código, ela terá que interpor a ação no Tribunal de Justiça Estadual. Até aí não há maiores indagações. Todavia, imagine-se que o delito foi de dano, previsto no artigo 163 da lei penal e também de ação penal privada, conforme artigo 167, crime este que exige perícia para prova da materialidade. Nesta hipótese, a Autoridade Policial só instaurará inquérito policial se houver requerimento expresso do ofendido, devendo ordenar a realização do exame técnico. Concluído ou não o procedimento policial, a vítima terá que propor a ação penal privada no Tribunal de Justiça, dentro do prazo de 6 meses, sob pena de decadência, nos termos do artigo 138 do Código de Processo Penal.

E se o crime for da competência dos Juizados Especiais? Imagine-se que um delegado de polícia tome conhecimento de que um prefeito praticou ato de caça ilegal, infringindo o artigo 28 da Lei 9.605/98, cuja pena máxima é de 1 ano de detenção. A autoridade policial lavrará Termo Circunstanciado (Lei 9.099/95, artigo 69) e o encaminhará imediatamente ao presidente do Tribunal de Justiça. Lá tramitará eventual ação penal, inclusive facultando ao acusado a possibilidade de transigir (Lei 9.099/95, artigo 76), podendo a proposta ser delegada ao juiz de direito do local dos fatos através de Carta de Ordem.

E se um promotor de justiça do estado X comete um crime de trânsito no território do estado Y? A competência será do Tribunal de Justiça onde ele exerce as suas funções (RT 712/442, 534/380, 499/302 e 506/317). Consequentemente, a investigação dos fatos será feita pelo Ministério Público do estado de origem do promotor de justiça, mediante comunicação da autoridade policial que vier a ter conhecimento dos fatos. Todavia, nada impede que o delegado de polícia colha prova que poderá extinguir-se caso não seja apurada de imediato, remetendo-a ao procurador-geral da Justiça. Por exemplo, o exame dos pneus do veículo, se houver suspeita de que seu mal estado contribuiu para o acidente. O exame técnico equivale a uma autêntica cautelar e encontra apoio legal nos artigos. 849 e 889, par. único do Código de Processo Civil, combinados com artigos. 3º e 6º, incisos. I, II e III do Código de Processo Penal.

E se o infrator for deputado federal? As soluções para os casos mais comuns, ou seja, os que envolvem magistrados ou representantes do Ministério Público são mais conhecidas. No entanto, se o infrator for um parlamentar federal, as dúvidas serão maiores. Os deputados federais respondem por seus atos perante o Supremo Tribunal Federal (CF, artigos. 53, parágrafo 1º e 102, I, “b”). Portanto, a ocorrência de um ilícito penal comum praticado por um representante da Câmara dos Deputados, deverá ser objeto de comunicação imediata ao presidente do Supremo Tribunal Federal. Nada impede que um parlamentar seja autuado em flagrante pela autoridade policial. Apenas se exige que o crime seja inafiançável e que os autos (por cópia já que o original irá ao STF) sejam remetidos imediatamente ao presidente da Câmara dos Deputados, onde se deliberará sobre a prisão (CF, artigo 53, parágrafo 2º).

E se um juiz de direito pratica crime federal? A jurisprudência entende que o Tribunal competente será aquele a que o magistrado estiver subordinado (TJ) e não o Tribunal Regional Federal (JSTJ 46/532). Consequentemente, se o delegado de polícia federal vier a tomar conhecimento de ilícito penal com tal peculiaridade, comunicará ao presidente do Tribunal de Justiça para que instaure o inquérito investigatório.

E deputado estadual ou secretário de estado que pratica crime eleitoral ou federal? Nesta hipótese, ao contrário da anterior, a competência será do Tribunal Regional Eleitoral (RTJ 147/942) ou Tribunal Regional Federal da área de jurisdição sobre os fatos. Consequentemente, os atos de investigação serão determinados pelo relator, ficando a execução a cargo do departamento de Polícia Federal.

Dir-se-á que estas são hipóteses excepcionais, de difícil ocorrência. Absolutamente não. O aumento do número de autoridades a gozar de foro privilegiado e o crescimento da criminalidade organizada revelam que todas as possibilidades devem ser consideradas.

Necessidade de regulamentação da matéria

Um país que detém uma importância geopolítica inegável e que pretende colocar-se entre as principais nações do planeta, não pode aceitar como normal a ineficiência no combate à criminalidade, inclusive de suas autoridades. Ademais, a sociedade não tolera mais qualquer condescendência em razão do cargo. Ao contrário, coloca-se em posição mais rigorosa. Diante de tal quadro, é imprescindível que o tema seja posto em debate e que as reflexões, feitas com base científica e bom senso, resultem em regras que disciplinem a matéria.

Não se está a falar de alterações constitucionais sobre o foro privilegiado. Estas seriam bem-vindas, por certo. Por exemplo, restringindo a competência por prerrogativa de função aos crimes de responsabilidade ou afastando a possibilidade de foro privilegiado para os agentes políticos aposentados ou sem mandato. Aqui a referência é mais simples e se refere ao antes, ou seja, às investigações. Isto poderia ser feito através de legislação processual penal. Mas nada impede que seja feito pelo Conselho Nacional de Justiça, a quem cabe, nos termos do artigo 103-B, parágrafo 4º, inciso. I da Carta Magna, expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência. Evidentemente, eventual Resolução do CNJ não se aplicaria à investigação de outras autoridades (ex. prefeitos), mas poderia ser utilizada, quando possível, por analogia. Medida semelhante poderia ser tomada pelo Conselho da Justiça Federal para os casos de jurisdição federal, ou pelos Tribunais de Justiça, no âmbito de sua competência. Evidentemente, sem invadir área de competência do legislador federal para legislar sobre processo (CF, artigo 23, inciso. I).

O Brasil é um país que adota de forma ampla o foro privilegiado às suas autoridades, estendendo esta regra a cerca de 33.611 agentes políticos. As investigações nos casos de ações penais originárias propostas em tribunais contra aqueles que detêm o privilégio de foro não estão reguladas e suscitam dúvidas e dificuldades às autoridades policiais e judiciárias. Estas dificuldades têm contribuído sobremaneira para a ineficiência do sistema, gerando o descrédito na Justiça e conseqüente ameaça ao estado democrático de Direito;

Disciplinar a forma de investigações nos crimes de detentores de foro privilegiado é medida necessária e que dará maior respeito e eficiência ao sistema.

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