Executivas ou reguladoras

Agências regulatórias devem ser tornar órgãos de governança

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31 de outubro de 2007, 23h01

Tornou-se monocórdica a crítica da natureza regulatória da Agência Nacional de Saúde (ANS), Agência Nacional do Cinema (Ancine), Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e até da Agência Nacional de Águas (ANA), alegando-se que tais órgãos são meras agências executivas, devendo-se reservar o termo “reguladora” à agência que regula “monopólios naturais”, como “telecomunicações e energia elétrica, que precisam de longo prazo para a maturação de investimentos que transcende a gestão política de governos específicos”.

Os argumentos são honestos, sinceros, mas estão recheados de equívocos e desconhecimento dos setores da economia nacional que estão dotados de agências reguladoras federais. Considerar que a função de um ente regulador restringe-se a decidir sobre a política de preços em mercados que são monopolistas, ou atuar onde existe delegação pública, é uma visão restrita, olvidando-se que serviço público e interesse público primário relevante são conceitos distintos e este último deve ser constitucionalmente considerado no momento de identificar a necessidade da intervenção reguladora do Estado.

A Anvisa, por exemplo, dentre as suas atribuições, regula e fiscaliza o mercado de medicamentos, segmento no qual existe permanente risco de ocorrência de práticas e condutas anticompetitivas, concentração setorial, lesão ao consumidor e adulteração de produtos. Não se trata de regular a prestação de serviço público delegado ou de infra-estrutura, mas garantir a prevalência do interesse público primário e zelar pela efetividade dos princípios da ordem constitucional econômica, em especial a livre concorrência e a defesa do consumidor.

A ANS também regula e fiscaliza um mercado delicado, com 37 milhões de usuários, referente à prestação de serviços de saúde suplementar. É um mercado no qual se inserem questões de especial relevância social, como o respeito à dignidade da pessoa humana na prestação dos serviços, além de questões essenciais de regulação econômica.

O caso da Ancine é de interesse peculiar na incipiente cultura regulatória nacional, pois a agência, com competência para regular e fiscalizar as atividades de fomento e proteção à indústria cinematográfica e audiovisual, é um instrumento destinado a dotar de eficácia o preceito constitucional que determina a garantia, a todos, do pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional, com o apoio estatal à produção, promoção e difusão de bens culturais.

Esta disposição constitucional ganha especial destaque se consideramos a ampliação feita pela Emenda Constitucional 48/2005 e a incorporação pelo ordenamento jurídico interno (Decreto 6.177/2007) da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (Unesco). Nesta discussão, devemos considerar também os atuais projetos de lei que tratam da convergência midiática e da disciplina dos dispositivos constitucionais sobre comunicação social, mormente quando se trata de regulação econômica dos meios de comunicação de massa.

Apresentando um crescimento anual médio de 5,6% (2000-2005), a venda de serviços baseados em conteúdos audiovisuais atingiu US$ 460 bilhões, valor que é quase o dobro das vendas mundiais de eletrônicos de consumo de áudio e vídeo, sendo 30% maior que vendas mundiais de servidores, computadores e periféricos.

No Brasil o faturamento do setor foi de US$ 7,3 bilhões em 2005, sendo 57% referentes à televisão aberta, 31% à televisão por assinatura, 6% ao mercado de vídeo/DVD doméstico (mesmo com as crescentes perdas referentes à pirataria) e 4% ao segmento de salas de exibição. Somente nos EUA, a indústria cinematográfica emprega 357 mil trabalhadores (2006 — MPAA), sem contar os demais segmentos do setor audiovisual.

A discussão sobre os serviços audiovisuais tem sido tema central na Organização Mundial do Comércio, principalmente em razão da circulação assimétrica dos direitos de propriedade intelectual, concentração na propriedade dos meios de comunicação e as políticas de incentivos e subsídios públicos.

Notoriamente, há excessiva concentração econômica e ineficiente circulação do produto cultural nacional nesta cadeia produtiva, entre outros fatores caracterizadores das falhas de mercado. Assim, como implantado na União Européia, Canadá, Austrália e em outros países que buscam competitividade internacional, o fomento setorial é apenas uma modalidade de estímulo público positivo, que só se torna efetivo caso exista intervenção reguladora setorial, tanto por questões econômicas quanto por questões culturais, pois a regulação deve existir onde o interesse público primário se faz presente.

O mais importante nesta discussão, para não se perder o verdadeiro foco, é salientar que as agências reguladoras devem ser órgãos implantados para garantir estabilidade ao mercado, atrair investidores, defender a livre iniciativa e, principalmente, proteger os direitos dos agentes hipossuficientes, dos consumidores ou usuários dos serviços, estabelecendo uma relação estável e saudável do Estado brasileiro com a atividade econômica.

Sua concepção deve resguardar a autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira, dotá-las de corpo técnico capacitado e bem remunerado, bem como reforçar a necessidade de torná-las permeáveis a ampla participação da sociedade civil organizada na discussão e construção das suas ações regulatórias, sem esquecer-se de assegurar sua atuação condicionada a critérios técnicos estáveis que garantam a efetividade da execução das políticas públicas setoriais estabelecidas, afastando hipóteses de ocorrência de risco sistêmico no ambiente regulado, por intermédio da fixação de normas claras, amplamente discutidas e transparentes.

Longe da dicotomia “órgãos de Estado” ou “órgãos de governo”, devem ser “órgãos de governança”, uma arena pública que afaste intervenções meramente (ou levianamente) discricionárias da burocracia estatal, bem distante da concepção tradicional de “repartição pública loteável” e “órgão submisso” — conceito distinto de vínculo.

Teremos, assim, reais condições de atrair novos investidores — produtivos e não meramente especulativos, com o objetivo de estimular a competição nos setores regulados já maduros ou em estágio de maturação, bem como abrir novas possibilidades de negócios em outros segmentos, proporcionando um novo horizonte de crescimento sócio-econômico.

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