Crise aérea

Ministro do STF anula decisão da Câmara que rejeitou CPI

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29 de março de 2007, 17h56

O ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello revogou a decisão da Câmara que rejeitou a criação da CPI do Apagão Aéreo. A instalação da comissão, contudo, só poderá acontecer se, no julgamento do mérito — o que deve ocorrer ainda em abril — os demais ministros acolherem o voto do relator.

O Supremo foi provocado por pedido de líderes da oposição, depois que a instalação da CPI na Câmara foi suspensa.

Em sua decisão, o ministro expressa claramente a plausibilidade constitucional a favor da criação da CPI, mas ressalvou que a instalação da Comissão não pode ser determinada por liminar, por não existir no quadro jurídico brasileiro instalação provisória de comissões parlamentares.

Para tomar a decisão, o ministro Celso de Mello aguardava informações que tinha solicitado ao presidente da Casa, Arlindo Chinaglia (PT-SP). As informações chegaram nesta terça-feira (27/3).

“O inquérito parlamentar pretendido pelas minorias legislativas que atuam na Câmara dos Deputados, mais do que representar prerrogativa desses grupos minoritários, constitui direito insuprimível dos cidadãos da República, de quem não pode ser subtraído o conhecimento da verdade e o pleno esclarecimento dos fatos que tanto prejudicam os superiores interesses da coletividade”, argumenta o ministro.

A CPI pretende investigar as causas, conseqüências e responsáveis pela crise do sistema de tráfego aéreo brasileiro, desencadeada depois do acidente aéreo envolvendo um Boeing da Gol (vôo 1907) e o jato Legacy, no qual morreram 154 pessoas.

A suspensão da CPI na Câmara foi provocada pelo líder petista na Câmara, Luiz Sérgio (RJ). Na ocasião, ele levantou uma questão de ordem argumentando que o requerimento para a criação da comissão não cumpria requisitos constitucionais, como a existência de um fato determinado, a previsão de um prazo de duração e do número de membros da CPI. O recurso foi aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara e depois pelo plenário da Casa.

Em sua decisão, o ministro Celso de Mello refuta todos os argumentos levantados pela liderança do PT. Para ele o fato determinado é a crise da navegação aérea desencadeada pelo acidente do Boeing da Gol. O prazo de duração, quando não estabelecido no requerimento de instalação, é o fixado pelo regimento da casa. E o número de membros está dito no Ato da Presidência da Câmara que determinou a criação da CPI: 23 e seus respectivos suplentes.

MED. CAUT. EM MANDADO DE SEGURANÇA 26.441-1 DISTRITO FEDERAL

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

IMPETRANTE(S): ANTÔNIO CARLOS PANNUNZIO E OUTRO(A/S)

ADVOGADO(A/S): AFONSO ASSIS RIBEIRO E OUTRO(A/S)

IMPETRANTE(S): FERNANDO CORUJA

ADVOGADO(A/S): JOSÉ VIGILATO DA CUNHA NETO

IMPETRANTE(S): ONYX LORENZONI

ADVOGADO(A/S): THIAGO FERNANDES BOVERIO E OUTRO(A/S)

IMPETRADO(A/S): MESA DA CÂMARA DOS DEPUTADOS

IMPETRADO(A/S): PRESIDENTE DA CÂMARA DOS DEPUTADOS

LITISCONSORTE(S) PASSIVO(A/S): LUIZ SÉRGIO NÓBREGA DE OLIVEIRA

ADVOGADO(A/S): ALBERTO MOREIRA RODRIGUES E OUTRO

DECISÃO: Trata-se de mandado de segurança, com pedido de medida liminar, impetrado contra a Presidência da Câmara dos Deputados (fls. 02), pelo fato de esta haver admitido o processamento de recurso que o Senhor Líder do Partido dos Trabalhadores havia interposto contra decisão denegatória de questão de ordem por ele próprio suscitada em face “do deferimento, pela Mesa, de requerimento de instalação de Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar as causas, conseqüências e responsáveis pela crise do sistema de tráfego aéreo brasileiro, desencadeada após o acidente aéreo ocorrido no dia 29 de setembro de 2006, envolvendo um Boeing 737-800, da Gol (vôo 1907,) e um jato Legacy, da América Excel Aire, com mais de uma centena de vítimas (…)” (fls. 13v. – grifei).


Salientei, em despacho anteriormente exarado nos presentes autos (fls. 131/133), que o tema ora veiculado nesta sede mandamental – se configurada a existência, na espécie, de questão impregnada de significado constitucional, como propõem os ilustres impetrantes, que sustentam haver sido transgredido, no caso, o direito das minorias parlamentares à investigação legislativa – revestir-se-á de indiscutível relevo jurídico, em face do que dispõe a própria Constituição da República.

É que os ora impetrantes sustentam que o provimento, pelo Plenário da Câmara dos Deputados, do recurso (Recurso nº 14/2007 – fls. 17) interposto contra o indeferimento, pelo Senhor Presidente dessa Casa Legislativa, da questão de ordem (Questão de Ordem nº 31/2007 – fls. 13v.) suscitada pelo Senhor Líder do Partido dos Trabalhadores (PT) tem, como conseqüência imediata, a própria extinção da investigação parlamentar objeto do Requerimento de instituição de CPI (RCP) nº 01/2007 (fls. 17v./19), fato esse que efetivamente ocorreu na Sessão de 21/03/2007, quandoconforme esclarece o Senhor Presidente da Câmara dos Deputados em suas informações (fls. 162/163) – “o Plenário da Câmara dos Deputados (…) aprovou o Recurso, por 308 votos favoráveis, contra 141 desfavoráveis, (…) dando razão ao autor da Questão de Ordem” (grifei).

Observei, então, que os ora impetrantes – ao deduzirem a sua pretensão mandamental – registraram que os autores do mencionado Requerimento nº 01/2007, invocando o art. 58, § 3º, da Constituição da República, solicitarama instituição de Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as causas, conseqüências e responsáveis pela crise do sistema de tráfego aéreo brasileiro, chamada de ‘apagão aéreo’, desencadeada após o acidente aéreo ocorrido no dia 29 de setembro de 2006 envolvendo um Boeing 737-800, da Gol (Vôo 1907), e um jato Legacy, da América ExcelAire, com mais de uma centena de vítimas” (fls. 17v.).

Ressaltei, ainda, que a E. Presidência da Câmara dos Deputados, a propósito de referido Requerimento, mediante ato formal, assim havia se pronunciado (fls. 25v.):

Ato da Presidência.

Satisfeitos os requisitos do art. 35, ‘caput’, e § 1º do Regimento Interno, para o requerimento de instituição de CPI nº 1, de 2007, do Sr. Vanderlei Macris e outros, esta Presidência dá conhecimento ao Plenário da criação da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar as causas, conseqüências e responsáveis pela crise do Sistema de Tráfego Aéreo Brasileiro, desencadeada após o acidente aéreo ocorrido no dia 29 de setembro de 2006, envolvendo um Boeing 737-800, da Gol, vôo 1907, e um jato Legacy, da American Excelsior Line, com mais de uma centena de vítimas.

A Comissão será composta de 23 membros titulares e de igual número de suplentes, mais um titular e um suplente, atendendo ao rodízio entre as bancadas não contempladas, designados de acordo com os §§ 1º e 2º do art. 33 do Regimento Interno. (…).” (grifei)

O Senhor Líder do Partido dos Trabalhadores, no entanto, por entender não satisfeita a exigência concernente ao fato determinado, à indicação do número de membros da referida Comissão (composição numérica) e à estipulação de prazo certo (temporariedade), discordou do Requerimento em questão (RCP nº 01/2007), suscitando, em conseqüência, a já mencionada questão de ordem, que foi indeferida pelo Senhor Presidente da Câmara dos Deputados, em decisão na qual reconheceu presentes os requisitos constitucionais necessários à criação da CPI em causa (fls. 27/28).


Tal deliberação, como referido, havia sofrido a interposição de recurso por parte do Senhor Líder do Partido dos Trabalhadores, que conseguiu, do Plenário, nos termos do art. 95, § 9º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, fosse atribuída eficácia suspensiva a essa impugnação recursal.

Entendi prudente, antes de analisar o pleito cautelar formulado pelos impetrantes, requisitar informações à eminente autoridade ora apontada como coatora, notadamente porque Sua Excelência, na condição de Presidente da Câmara dos Deputados, havia reconhecido o atendimento, pelos autores do pedido de criação da CPI em causa, dos requisitos constitucionais necessários à sua instituição.

A eminente autoridade apontada como coatora, ao prestar as informações que lhe foram solicitadas (fls. 158/169), justificou a legitimidade do cabimento e processamento do recurso interposto pelo Senhor Líder do Partido dos Trabalhadores (Recurso nº 14/2007), não obstante essa orientação – cabe-me observarculminasse por submeter a iniciativa da minoria (titular do direito de oposição e de investigação legislativa) à vontade aquiescente da maioria parlamentar, ainda que manifestada em sede recursal, o que parece comprometer a eficácia da norma fundada no art. 58, § 3º, da Constituição da República.

Em suas informações, o Senhor Presidente da Câmara dos Deputados enfatizou que procedeu corretamente ao admitir o recurso interposto pelo Senhor Líder do PT, pois, segundo sustenta, “Não poderia (…), a Presidência, em hipótese alguma, deixar de receber o recurso e de colocar o pedido de efeito suspensivo em votação, sob pena de, aí sim, cometer ato ilegal, desrespeitando direito garantido ao parlamentar” (fls. 168).

A eminente autoridade ora apontada como coatora, nas informações referidas, assim buscou justificar a validade jurídica do ato que ordenou o processamento do recurso em questão (fls. 166/169):

Ao examinar o Requerimento nº 1, de 2007, (…) esta Presidência resolveu por acatá-lo, embora contivesse a mesma omissão de requisito regimental, no caso a definição do número de membros da Comissão.

………………………………………………

Apesar da omissão supracitada, esta Presidência achou por bem, em uma decisão interpretativa do Regimento Interno, acatar o requerimento, suprindo tal omissão, conforme acima explicitado na decisão da questão de ordem do Deputado Luiz Sérgio, e trazendo conhecimento de tal decisão ao Plenário.

………………………………………………

Finalmente, embora tendo admitido a CPI, tanto que anunciei o Ato de criação, permito-me discorrer sobre a tese, invocada na inicial, do direito de minoria.

Ninguém nega que a criação desse tipo de comissão é um direito de minoria, mas também é inegável, conforme já mencionado anteriormente, que tal direito não é absoluto e imune a regras e formalidades. Qualquer minoria para exercer seus direitos – que serão, diga-se de passagem, sempre reconhecidos pela Presidência desta Casa – deve, sim, submeter-se a regras procedimentais, desde que, obviamente, tais normas não colidam com mandamentos constitucionais.


Vemos, nesse sentido, que mesmo remédios constitucionais, como o mandado de segurança e a ação popular por exemplo, possuem em sua regulamentação infraconstitucional requisitos, formalidades e até limitações temporais não previstas na Lei Maior, mas que já foram consideradas pelo Supremo Tribunal Federal como compatíveis com o exercício de tais garantias constitucionais.

Daí porque ter acolhido a Questão de Ordem, para, no mérito, indeferi-la, e em seguida receber o Recurso, que, conforme já mencionado anteriormente, foi provido em Plenário pelo voto de 308 Deputados.

Assim, repito, o juízo de admissibilidade acerca da existência dos requisitos constitucionais e regimentais inerentes à espécie foi exercido pelo Plenário da Câmara dos Deputados, instância máxima desta Casa Legislativa.

Em face do exposto, entendo ter esta Presidência agido dentro dos mais estritos trâmites constitucionais e regimentais atinentes à matéria, seja quanto ao recebimento do requerimento de criação de CPI, seja quanto ao conhecimento da questão de ordem, do recurso a ele apresentado e de sua submissão ao Plenário.

Entendo, pois, Senhor Ministro, que os procedimentos adotados pela Câmara dos Deputados foram absolutamente corretos.” (grifei)

Sendo esse o contexto, passo a examinar questões prévias, que, embora não suscitadas, expressamente, pelo Senhor Presidente da Câmara dos Deputados, constituem pontos cuja análise se impõe ao julgador.

Refiro-me, inicialmente, à eventual ocorrência de situação configuradora de prejudicialidade deste mandado de segurança, tendo em vista o julgamento, pelo Plenário da Câmara dos Deputados, do mencionado Recurso nº 14/2007.

Entendo, em juízo de estrita delibação (sujeito, portanto, à ulterior deliberação plenária do Supremo Tribunal Federal), que não se registra, na espécie, hipótese de prejudicialidade da presente ação de mandado de segurança, não obstante o respeitável pronunciamento emanado do E. Plenário da Câmara dos Deputados, que, ao dar provimento ao recurso (Recurso nº 14/2007) interposto pelo Senhor Líder do Partido dos Trabalhadores, invalidou o ato declaratório da criação da CPI objeto do Requerimento nº 01/2007.

Observo que os impetrantes, ao ajuizarem esta ação mandamental, não se limitaram a questionar o processamento do Recurso nº 14/2007, nem a impugnar o encaminhamento desse pleito recursal à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados.

Ao contrário, como anteriormente já assinalado, a impugnação mandamental em causa veiculou pretensão objetivamente mais abrangente, impregnada de amplo conteúdo material, pois nela se busca – considerada a extensão do pedido – a concessão do mandado de segurança, para que sejam determinados o “funcionamento e a instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito requerida, anulando-se todos os atos praticados com a finalidade de postergar ou obstar a investigação parlamentar sobre ‘as causas, conseqüências e responsáveis pela crise do sistema de tráfego aéreo brasileiro, chamada de ‘apagão aéreo’, desencadeada após o acidente aéreo ocorrido no dia 29 de setembro de 2006, envolvendo um Boeing 737-800, da Gol (Vôo 1907), e um jato Legacy, da América ExcelAire, com mais de uma centena de vítimas’” (fls. 11 – grifei).


Vê-se, portanto, em face dos termos da própria petição inicial consubstanciadora do presente mandado de segurança (fls. 11), que a postulação deduzida pela parte impetrante visa a remover, desconstituindo-os, “todos os atos praticados com a finalidade de postergar ou obstar a investigação parlamentar” em referência, não importando que se trate de atos decisórios da Presidência da Câmara dos Deputados, ou de manifestações opinativas de sua Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, ou, ainda, de deliberações colegiadas proferidas pelo Plenário dessa Casa Legislativa.

Torna-se evidente, pois, examinada a questão na perspectiva do pleito expressamente formulado pelos ora impetrantes (fls. 11), que a decisão do Plenário da Câmara dos Deputados – que importou em extinção anômala e liminar do inquérito legislativo pretendido pela minoria – constitui, ela mesma, na efetiva concreção de seu alcance, um daqueles atos promovidos pelos grupos majoritárioscom a finalidade de postergar ou obstar a investigação parlamentar” em causa e cuja prática se busca impedir com o presente mandado de segurança.

É por tal razão que conserva plena atualidade o despacho por mim proferido em 14/03/2007 (fls. 131/133), no ponto em que nele se registra que o exame preliminar dos fundamentos em que se apóia esta impetração mandamental parece sugerir, em sumária cognição, que, na Câmara dos Deputados, o direito da minoria de investigar o Governo, mediante utilização do instrumento constitucional da CPI, ficaria, em última análise, presente tal contexto, inexoravelmente dependente da deliberação dos grupos majoritários que atuam no âmbito da instituição parlamentar.

É que, presentes os fundamentos desta impetração, tem-se que a criação da mencionada Comissão – porque sujeita à aquiescência da maioria legislativa resultante da votação, em Plenário, do recurso interposto pelo Senhor Líder do Partido dos Trabalhadores – restaria frustrada pela força hegemônica dos grupos majoritários, o que efetivamente veio a ocorrer na sessão de 21/03/2007, quando, por 308 votos favoráveis contra 141 contrários, essa maioria legislativa simplesmente impediu a instituição da referida Comissão Parlamentar de Inquérito (fls. 162/163).

Tenho para mim, desse modo, que o julgamento plenário, pela Câmara dos Deputados, do Recurso nº 14/2007, interposto pelo Senhor Líder do PT, longe de caracterizar situação configuradora de prejudicialidade da presente impetração, confere, ao contrário, mais ênfase (e vigor) à tese, sustentada pelos impetrantes, de que a utilização desse recurso regimental poderia frustrar a investigação parlamentar, fazendo preponderar, na matéria, não a vontade da minoria (como quer a Constituição da República), mas, sim, o princípio majoritário.

Reconhecida, assim, em caráter de mera delibação, a inocorrência de prejudicialidade do presente mandado de segurança, examino se esta causa – que se apresenta impregnada de componente político – revela-se, ou não, suscetível de conhecimento pelo Supremo Tribunal Federal.

E, ao fazê-lo, devo registrar – como já tive o ensejo de assinalar em anterior despacho proferido nestes autos (fls. 131/133) – que esta impetração mandamental apóia-se em alegação de ofensa a direitos impregnados de estatura constitucional.


Esse particular aspecto da controvérsia parece legitimar, afastado o caráter “interna corporis” dos atos ora questionados, o exercício, pelo Supremo Tribunal Federal, da jurisdição que lhe é inerente, considerada a natureza jurídico-constitucional do litígio em causa, em cujo âmbito se discute se a maioriamediante utilização de meios regimentais, como a suscitação de questão de ordem e a interposição de recurso – pode, ou não, inviabilizar a criação de determinada Comissão Parlamentar de Inquérito.

A situação registrada neste mandado de segurança põe em destaque, com notável pertinência, considerada a indagação ora formulada, as reflexões expostas, em tom de grave advertência, por MARCOS EVANDRO CARDOSO SANTI (“Criação de Comissões Parlamentares de Inquérito: Tensão entre o direito constitucional de minorias e os interesses políticos da maioria”, p. 46/47 e 50, item n. 1.3, 2007, Fabris Editor):

No ato de criação de CPI, com a leitura e a publicação do requerimento, ou mesmo após a consumação dessas fases, as correntes parlamentares que a ela se opõem muitas vezes tentam inviabilizar o inquérito parlamentar.

(…) Por isso, quando da consumação da criação de uma CPI, ou mesmo quando essa já tiver sido criada, a base parlamentar de apoio ao Presidente da República com freqüência tem lançado mão de um último instrumento parlamentar: anular o requerimento, por meio do questionamento constitucional – e também regimentaldo preenchimento dos requisitos de criação da comissão.

Nessa medida, a análise da constitucionalidade do requerimento passa a ocupar o centro do debate político- -parlamentar e caracterizar-se como um obstáculo adicional a ser superado para se viabilizar o inquérito parlamentar. Esse confronto expõe o que denominamos ‘tensão entre o direito das minorias’ – que em tese deveria estar assegurado com o preenchimento dos requisitos de criação da CPI – ‘e os interesses da maioria’, uma vez que esta, sentindo-se ameaçada, atua no sentido de tentar impedir o inquérito.

Mais especificamente, a análise de constitucionalidade dos requisitos de criação de CPI constitui-se na última etapa anterior à instalação e ao funcionamento da comissão, e caracteriza-se por ‘colocar em xeque’ o requerimento. A estratégia da maioria, em propor uma análise de constitucionalidade mais rigorosa – do que a previamente realizada pela Mesa antes da leitura -, visa a anular o requerimento, por meio da transferência para o Plenário do poder decisório, que, em princípio, estaria restrito à minoria de um terço – aquela necessária à criação da CPI.

………………………………………………

Nessa reflexão há importantes aspectos a serem levados em consideração. (…) a questão de ordem não pode se transformar em instrumento para que a maioria, de forma abusiva, desrespeitando a Constituição, inverta decisões da minoria (…).” (grifei)

O eminente constitucionalista MICHEL TEMER, quando Presidente da Câmara dos Deputados, respondendo questões de ordem sobre tal matéria, entendeu que não se revelava possível, à maioria, valer-se desses meios regimentais, para, transferindo, ao Plenário da Casa legislativa, a discussão do tema, frustrar, com tal expediente, a criação da Comissão Parlamentar de Inquérito (fls. 115):

Quanto à questão nova trazida pelo Deputado Sérgio Miranda, no sentido de não haver possibilidade regimental de recurso contra o recebimento de requerimento de criação da CPI, já que apenas as decisões denegatórias da Presidência eram recorríveis, parece-nos, de igual modo, procedente.


De observar-se, em primeiro lugar, que as Comissões Parlamentares de Inquérito foram concebidas constitucionalmente como instrumentos postos à disposição das minorias e até das maiorias para bem exercerem a função fiscalizadora que cabe, constitucionalmente, ao Poder Legislativo, não podendo, pois, submeter-se apenas à vontade da maioria, sob pena de se tornarem absolutamente ineficazes. Lembre-se que, nos termos do art. 58, § 3°, do texto constitucional, basta que um terço do total de membros de quaisquer das Casas solicite a criação de uma CPI para investigar determinado fato para que esta venha a ser instalada, não havendo necessidade de deliberação da maioria sobre o assunto. O direito de instalação é inequivocamente da minoria – um terço do total -, e o juiz da existência desse direito é, nos termos regimentais, o Presidente da Casa, não a maioria. Essa é a vontade expressa pela Constituição Federal, a teor do que dispõe o seu art. 58, § 3°.

No que tange, ao aspecto processual interno, parece-me que a lei interna não admite a possibilidade de a maioria insurgir-se contra despacho da Presidência, que recebe requerimentos de criação de uma CPI. É o que se pode deduzir do especificamente disciplinado no citado art. 35, § 2°, e igualmente no disposto na norma genérica do art. 114, parágrafo único, do mesmo Regimento, que determina só existir possibilidade de recurso, no caso de requerimentos sujeitos apenas a decisão do Presidente, quando a decisão seja denegatória.

Em verdade, o instituto da questão de ordem não se reveste de instrumentalidade bastante para trancar a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, conforme aduz o art. 95, ‘caput’, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados.” (grifei)

Vê-se que esse eminente parlamentar – que associa, à sua condição de Deputado Federal, a de reputado Professor de Direito Constitucional – vislumbra, na questão pertinente à investigação parlamentar, a existência de uma inafastável prerrogativa constitucional das minorias legislativas, o que põe em relevo a possibilidade de o Poder Judiciário exercer, legitimamente, no caso, a sua clássica função de controle.

Como se sabe, o Supremo Tribunal Federal – não desconhecendo as delicadas questões que podem surgir das controvérsias instauradas em torno de matérias que transitam entre a esfera do Direito e o domínio da Política – consolidou orientação jurisprudencial, firmada desde a primeira década republicana (HC 1.073/DF, Rel. Min. LÚCIO DE MENDONÇA, 1898) e desenvolvida ao longo do período histórico subseqüente, notadamente durante a Primeira República (HC 3.536/DF, Rel. Min. OLIVEIRA RIBEIRO, 1914 – HC 3.554/DF, ENÉAS GALVÃO, 1914 – HC 3.697/DF, Rel. p/ o acórdão ENÉAS GALVÃO, 1914 – HC 4.014/PI, Rel. p/ o acórdão Min. GUIMARÃES NATAL, 1916 – HC 8.800/RJ, Rel. Min. GUIMARÃES NATAL, 1922), no sentido de reconhecer plenamente legítima a intervenção do Poder Judiciário, sempre que provocado a amparar direitos e garantias de natureza constitucional, quando alegadamente desrespeitados por atos dos Poderes políticos (Legislativo e Executivo), sem que os magistrados e Tribunais, ao assim procederem, incidam em transgressão ao princípio fundamental da separação de poderes, tal como esta Suprema Corte, fiel à sua elevada missão institucional, tem proclamado com especial ênfase:

A essência do postulado da divisão funcional do poder, além de derivar da necessidade de conter os excessos dos órgãos que compõem o aparelho de Estado, representa o princípio conservador das liberdades do cidadão e constitui o meio mais adequado para tornar efetivos e reais os direitos e garantias proclamados pela Constituição.


Esse princípio, que tem assento no art. 2º da Carta Política, não pode constituir e nem qualificar-se como um inaceitável manto protetor de comportamentos abusivos e arbitrários, por parte de qualquer agente do Poder Público ou de qualquer instituição estatal.

O Poder Judiciário, quando intervém para assegurar as franquias constitucionais e para garantir a integridade e a supremacia da Constituição, desempenha, de maneira plenamente legítima, as atribuições que lhe conferiu a própria Carta da República.

O regular exercício da função jurisdicional, por isso mesmo, desde que pautado pelo respeito à Constituição, não transgride o princípio da separação de poderes.

(RTJ 173/805-810, 806, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

Essa compreensão do tema, que se tem refletido, historicamente, na prática jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, ao longo do período republicano, em torno da cognoscibilidade das denominadas “questões políticas”, encontra perfeita tradução em douto voto proferido, em 1922, pelo saudoso e eminente Ministro GUIMARÃES NATAL, quando do julgamento do HC 8.584/DF, Rel. Min. Muniz Barreto (“Revista do Supremo Tribunal Federal”, volume 42/135-221, 192-194):

Nunca professei a doutrina que considera as questões políticas como absolutamente impenetráveis aos olhos investigadores da Justiça, que deverá ter sempre por impecáveis, na sua constitucionalidade e na sua conformidade á Lei, as soluções que lhe houverem dado os poderes políticos a cuja competência constitucional pertencerem. Nos regimes, como o nosso, de constituição escrita, os poderes são limitados, e as limitações excluem a discrição e o arbítrio. Se, no exercício de suas funções, qualquer dos poderes políticos exorbita, lesando um direito, o direito lesado pela exorbitância poderá reclamar a sua reintegração ao judiciário, o poder especialmente preposto pela Constituição a tais reintegrações. E a ação do judiciário não se poderá deter diante de uma questão política, sob o pretexto de que é ela atribuída privativamente a um poder político, porque privativa do Congresso Nacional é a decretação das leis e o judiciário declara-as inaplicáveis, quando contrárias á Constituição; privativos do executivo são atos que o judiciário anula, quando, contrariando a Constituição e as leis, lesam um direito.

………………………………………………

Nos regimes de Constituição escrita, de poderes limitados, a Lei Fundamental é, na frase de ‘Cooley’, a regra absoluta de ação e decisão para todos os poderes públicos e para o povo, e tudo quanto em oposição a ela se faz é substancialmente nulo.

Mas para que a Constituição mantivesse esta preeminência de regra absoluta de ação e decisão, que lhe dera o povo, decretando-a, era necessário criar um órgão que fosse dela a encarnação viva, que a interpretasse soberanamente, irrecorrivelmente, que com ela confrontasse as Leis e os atos dos Poderes Públicos e até do próprio povo e que tivesse o poder de declarar tais Leis e tais atos insubsistentes quando desconformes aos princípios nela consagrados. Esse órgão no nosso regime, como nos semelhantes ao nosso, é o Poder Judiciário Federal (…).

………………………………………………

Dada uma violação da Constituição, parta de quem partir, verse sobre que matéria versar, desde que contra ela se insurja um direito individual lesado e invoque, em processo regular, o amparo e proteção do Judiciário, é este, sob pena de incorrer em denegação de Justiça, obrigado a conhecer do caso e julgá-lo. (…).” (grifei)


Esses precedentes históricos do Supremo Tribunal Federal situam-se na linha dos grandes julgamentos desta Suprema Corte, cujas decisões assinalam e acentuam que os direitos e garantias constitucionais só se afirmam, quando passíveis de eficácia prática e suscetíveis de efetiva concretização, pois tais prerrogativas, asseguradas pela Constituição (inclusive aquelas titularizadas pelas minorias parlamentares), de nada valerão e nenhum significado terão, se não forem observadas e plenamente respeitadas, impondo-se, até mesmo, se necessário for, a intervenção moderadora desta Suprema Corte, tal como observou, em voto vencedor, o eminente Ministro GUIMARÃES NATAL, Relator do HC 8.800/RJ (“Revista do Supremo Tribunal Federal”, vol. 47/172-193, 179, 1922):

Quanto à competência do Tribunal para conhecer das questões suscitadas no processo e decidi-las nada posso acrescentar ao já tantas vezes dito e redito pelos eminentes colegas em grande cópia de Acórdãos que ilustram a nossa jurisprudência. De três dos julgados que os pacientes invocam fui o Relator em espécies idênticas.

Tenho sempre sustentado que, nos regimes como o nosso, de poderes limitados, era necessária a existência de um poder que fizesse respeitadas, pelos outros poderes, as limitações constitucionais, contendo-os dentro da órbita de suas atribuições um em relação ao outro e ambos em relação aos Estados e esse poder é o Judiciário, por ser o que, para impor obediência às suas decisões, só tem o prestígio moral e jurídico que os revestir.

No exercício desta alta função, tem, o Tribunal, mais de uma vez, amparado o regime contra os ataques das ambições partidárias incontidas.” (grifei)

EPITÁCIO PESSOA – que foi Ministro do Supremo Tribunal Federal por 10 anos (1902/1912) e Presidente da República (1919/1922) -, pronunciando-se, certa vez, como Senador da República, da tribuna daquela Alta Casa do Congresso Nacional, sobre decisão proferida por esta Corte Suprema a propósito do conhecimento de determinada causa alegadamente revestida de índole exclusivamente política, expendeu considerações que conservam impressionante atualidade em face do quadro atual.

Disse, então, EPITÁCIO PESSOA, em tal oportunidade, em pronunciamento parlamentar com que justificou a plena legitimidade da intervenção desta Suprema Corte na resolução de litígio, que, embora impregnado de componente político, apresentava-se revestido de qualificação constitucional (“Revista do Supremo Tribunal Federal”, vol. I – Segunda Parte, agosto a dezembro/1914, p. 387/390):

Diz-se, Sr. presidente, que se trata de casos políticos e que o Supremo Tribunal não pode conhecer de questões políticas.

………………………………………………

(…) Para mim, e nisto nada mais faço do que seguir a opinião dos competentes, o Poder Judiciário tem jurisdição para conhecer de todas as questões políticas, desde que a solução delas seja indispensável à garantia de um direito consagrado em lei ou na Constituição (…).” (grifei)

É importante observar que o Supremo Tribunal Federal, nesse processo histórico de construção de sua jurisprudência em torno da denominada “doutrina das questões políticas”, sempre teve presente que o sistema democrático, para subsistir – e assim preservar a integridade de suas instituições –, deve dispor de mecanismos que lhe permitam conviver com tensões resultantes de litígios subjacentes a antagonismos que se registram na arena política.


Um desses mecanismos, cuja atuação permite superar situações de tensão dialética que opõem grupos políticos no âmbito e na estrutura da instituição parlamentar, reside na possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, a quem incumbe – uma vez configurada a controvérsia constitucional – desempenhar função arbitral, que reconstrua e restaure direitos injustamente lesados. Essa é a missão institucional do Poder Judiciário. Essa é a função moderadora, em tema de conflitos institucionais, de que se acha investido, por expresso mandato constitucional, o Supremo Tribunal Federal.

Não foi por outra razão que o E. Plenário desta Suprema Corte, ao analisar hipótese semelhante à que se registra na presente espécie – e ao reconhecer que a atividade parlamentar poderia configurar inaceitável obstáculo a direitos impregnados de natureza constitucional -, considerou legítima a atuação do Poder Judiciário, sempre que invocada a sua intervenção com a finalidade de impedir a perpetração de abusos legislativos ou, quando consumados, de restaurar direitos e garantias injustamente atingidos:

O CONTROLE JURISDICIONAL DOS ATOS PARLAMENTARES: POSSIBILIDADE, DESDE QUE HAJA ALEGAÇÃO DE DESRESPEITO A DIREITOS E/OU GARANTIAS DE ÍNDOLE CONSTITUCIONAL.

O Poder Judiciário, quando intervém para assegurar as franquias constitucionais e para garantir a integridade e a supremacia da Constituição, desempenha, de maneira plenamente legítima, as atribuições que lhe conferiu a própria Carta da República, ainda que essa atuação institucional se projete na esfera orgânica do Poder Legislativo.

Não obstante o caráter político dos atos parlamentares, revela-se legítima a intervenção jurisdicional, sempre que os corpos legislativos ultrapassem os limites delineados pela Constituição ou exerçam as suas atribuições institucionais com ofensa a direitos públicos subjetivos impregnados de qualificação constitucional e titularizados, ou não, por membros do Congresso Nacional. Questões políticas. Doutrina. Precedentes.

A ocorrência de desvios jurídico-constitucionais nos quais incida uma Comissão Parlamentar de Inquérito justifica, plenamente, o exercício, pelo Judiciário, da atividade de controle jurisdicional sobre eventuais abusos legislativos (RTJ 173/805-810, 806), sem que isso caracterize situação de ilegítima interferência na esfera orgânica de outro Poder da República.

(MS 24.847/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

Não se pode desconhecer, portanto, a extrema relevância da matéria ora submetida à apreciação do Supremo Tribunal Federal, notadamente porque a natureza do tema em exame – tal como acentuado, com particular ênfase, pelo magistério doutrinário (J. M. SILVA LEITÃO, “Constituição e Direito de Oposição”, 1987, Almedina, Coimbra; J. J. GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, p. 309/312, 1998, Almedina, Coimbra; DERLY BARRETO E SILVA FILHO, “Controle dos Atos Parlamentares pelo Poder Judiciário”, p. 131/134, item n. 3.1, 2003, Malheiros; JOSÉ WANDERLEY BEZERRA ALVES, “Comissões Parlamentares de Inquérito: Poderes e Limites de Atuação”, p. 169/170, item n. 2.1.2, 2004, Fabris; UADI LAMMÊGO BULOS, “Comissão Parlamentar de Inquérito”, p. 216, item n. 5, 2001, Saraiva; MANOEL MESSIAS PEIXINHO/RICARDO GUANABARA, “Comissões Parlamentares de Inquérito: Princípios, Poderes e Limites”, p. 76/77, item n. 4.2.3, 2001, Lumen Juris; MARCOS EVANDRO CARDOSO SANTI, “Criação de Comissões Parlamentares de Inquérito: Tensão entre o direito constitucional de minorias e os interesses políticos da maioria”, 2007, Fabris Editor, v.g.) – impõe o reconhecimento de que existe, em nosso sistema político-jurídico, um verdadeiro estatuto constitucional das minorias parlamentares, o que traduz estímulo irrecusável à análise, por parte desta Suprema Corte, do significado que deve assumir, para o regime democrático, a discussão em torno da proteção jurisdicional ao direito de oposição, analisado na perspectiva da prática republicana das instituições parlamentares.


Vale referir, ante a sua extrema pertinência, a lição do saudoso e eminente Professor GERALDO ATALIBA (“Judiciário e Minorias”, “in” Revista de Informação Legislativa, vol. 96/189-194), cujo teor – aplicado ao caso ora em exame – põe em relevo o substrato constitucional legitimador do conhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, da presente controvérsia jurídico-institucional:

É que só há verdadeira república democrática onde se assegure que as minorias possam atuar, erigir-se em oposição institucionalizada e tenham garantidos seus direitos de dissensão, crítica e veiculação de sua pregação. Onde, enfim, as oposições possam usar de todos os meios democráticos para tentar chegar ao governo. Há república onde, de modo efetivo, a alternância no poder seja uma possibilidade juridicamente assegurada, condicionada só a mecanismos políticos dependentes da opinião pública.

……………………………………………….

A Constituição verdadeiramente democrática há de garantir todos os direitos das minorias e impedir toda prepotência, todo arbítrio, toda opressão contra elas. Mais que isso – por mecanismos que assegurem representação proporcional -, deve atribuir um relevante papel institucional às correntes minoritárias mais expressivas.

……………………………………………….

Na democracia, governa a maioria, mas – em virtude do postulado constitucional fundamental da igualdade de todos os cidadãos – ao fazê-lo, não pode oprimir a minoria. Esta exerce também função política importante, decisiva mesmo: a de oposição institucional, a que cabe relevante papel no funcionamento das instituições republicanas.

O principal papel da oposição é o de formular propostas alternativas às idéias e ações do governo da maioria que o sustenta. Correlatamente, critica, fiscaliza, aponta falhas e censura a maioria, propondo-se, à opinião pública, como alternativa. Se a maioria governa, entretanto, não é dona do poder, mas age sob os princípios da relação de administração.

……………………………………………….

Daí a necessidade de garantias amplas, no próprio texto constitucional, de existência, sobrevivência, liberdade de ação e influência da minoria, para que se tenha verdadeira república.

……………………………………………….

Pela proteção e resguardo das minorias e sua necessária participação no processo político, a república faz da oposição instrumento institucional de governo.

……………………………………………….

É imperioso que a Constituição não só garanta a minoria (a oposição), como ainda lhe reconheça direitos e até funções.

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Se a maioria souber que – por obstáculo constitucional não pode prevalecer-se da força, nem ser arbitrária nem prepotente, mas deve respeitar a minoria, então os compromissos passam a ser meios de convivência política.” (grifei)


Superadas, desse modo, em instância de mera delibação, as questões prévias que venho de referir, passo a examinar o pedido de medida cautelar formulado pelos ora impetrantes.

E, ao fazê-lo, devo registrar que os fundamentos em que se apóia esta impetração mandamental conferem, a meu juízo, plausibilidade jurídica ao pedido ora formulado.

Com efeito, a parte ora impetrante, ao justificar a sua pretensão, enfatizou que o requerimento destinado à criação da mencionada CPI, ao contrário do que sustentado pelo Senhor Líder do PT, atende as exigências constitucionais, apoiando tais alegações nos seguintes termos (fls. 06):

No caso concreto, os três requisitos constitucionais foram atendidos:

(1) ‘requerimento de um terço dos membros de uma ou das duas casas do Congresso Nacional’: a CPI foi solicitada por 211 deputados (quarenta assinaturas além do terço constitucional requerido);

(2) ‘apuração de fato determinado’: investigar causas, conseqüências e responsáveis pela crise do sistema de tráfego aéreo brasileiro, chamada de ‘apagão aéreo’, desencadeada após o acidente aéreo ocorrido no dia 29 de setembro de 2006 envolvendo um Boeing 737-800, da Gol (Vôo 1907) e um jato Legacy, da América ExcelAire, com mais de uma centena de vítimas;

(3) ‘prazo certo’: cento e vinte dias, conforme prazo determinado genérica e abstratamente pelo art. 35, § 3º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (‘A Comissão, que poderá atuar também durante o recesso parlamentar, terá o prazo de cento e vinte dias, prorrogável por até metade, mediante deliberação do Plenário, para conclusão de seus trabalhos.’).” (grifei)

Cabe observar, desde logo, que a questão pertinente ao fato determinado – exigência que, alegadamente, não teria sido observada pelos autores da mencionada CPI – impõe algumas considerações que reputo necessárias ao exame dessa matéria.

Todos sabemos que a Constituição exige a indicação de fato determinado para efeito de legítima instauração de inquérito parlamentar.

Quando fui membro do Ministério Público do Estado de São Paulo, nele exercendo o honroso cargo de Promotor de Justiça, tive o ensejo de discutir a questão constitucional pertinente à exigência do fato determinado (“Investigação Parlamentar Estadual: As Comissões Especiais de Inquérito”, Revista “Justitia”, v. 45/155-160, nº 121, abr.-jun. 1983), expendendo, então, as seguintes considerações:

Mencione-se, desde logo que ‘somente fatos determinados’, concretos e individuados, ainda que múltiplos, que sejam de relevante interesse para a vida política, econômica, jurídica e social do Estado, são passíveis de investigação parlamentar. Constitui verdadeiro abuso instaurar-se inquérito legislativo com o fito de investigar fatos genericamente enunciados, vagos ou indefinidos. O objeto da comissão de inquérito há de ser preciso.” (grifei)

Devo assinalar, por necessário, que mantenho esse mesmo entendimento, eis que reputo indispensáveltratando-se de CPI – que a investigação por ela realizada atenha-se a um âmbito de atuação materialmente delimitado, com referência a dados concretos, como parece registrar-se, no caso em exame, com a Comissão Parlamentar de Inquérito em questão, cujo Requerimento de criação alude, com extrema clareza, a um lamentável e trágico evento da aviação civil brasileira, em que 154 pessoas perderam a vida, em decorrência de suposta falha do sistema de controle de tráfego aéreo, que também constitui objeto de apuração expressamente indicado no Requerimento subscrito pela minoria legislativa e acentuado, de modo particularmente enfático, na “Justificaçãoque compõe o Requerimento em causa (fls. 17v./18v.).


Nada mais determinado, portanto, em sua concreta (e dramática) configuração, do que esse terrível episódio, expressamente incluído no campo da investigação legislativa pretendida pela minoria parlamentar na Câmara dos Deputados.

Como assinalado, o Requerimento nº 1/2007, subscrito pela minoria parlamentar, na Câmara dos Deputados, indica, de forma bastante clara e precisa, um evento concreto que se ajusta ao conceito de fato determinado, a atender, assim, a exigência que a Constituição impõe ao ato de criação da Comissão Parlamentar de Inquérito.

Na realidade, o Requerimento da minoria parlamentar contém referência a fato determinado (a morte trágica de 154 pessoas), cuja menção, por si só, já bastaria para viabilizar a instauração da Comissão Parlamentar de Inquérito, permitindo, desse modo, em face de notório contexto, a apuração legislativa – de interesse geral dos cidadãos deste País – das “causas, conseqüências e responsáveis pela crise do sistema de tráfego aéreo brasileiro, chamada de ‘apagão aéreo’, desencadeada após o acidente aéreo ocorrido no dia 29 de setembro de 2006 (…)” (fls. 17v.).

Nada mais ultrajante, para o sentimento de decência nacional, do que os eventos que compõem a sucessão de graves incidentes que culminaram no terrível acidente aéreo de 29/09/2006, envolvendo 154 vítimas, e que representou o mais dramático episódio de toda essa cadeia de lamentáveis ocorrências que afetaram – e continuam afetando – o sistema de tráfego aéreo em nosso País, gerando transtornos, provocando intranqüilidade, reduzindo a confiabilidade na segurança do transporte aéreo, comprometendo a integridade do próprio sistema de controle de tráfego aéreo administrado pela União Federal e lesando, profundamente, os direitos básicos, decorrentes de relações de consumo, titularizados pelo usuário desses mesmos serviços.

O que me parece irrecusável, nesse contexto, é que a menção ao trágico episódio do acidente aéreo bastaria para que nele se reconhecesse a presença, no caso, do fato determinado a que se refere a Constituição da República no § 3º de seu art. 58.

Entendo, portanto, sempre em juízo de estrita delibação, que a exigência constitucional pertinente ao fato determinado acha-se atendida no caso ora em exame.

Desnecessário dizer-se, também, que a CPI, enfocando, apenas, esse gravíssimo acidente aéreo, poderá estender, legitimamente, a sua investigação à pesquisa e apuração das causas subjacentes a esse trágico episódio, tal como expressamente referido no Requerimento nº 1/2007 subscrito pela minoria parlamentar.

Mesmo que o Requerimento de criação da Comissão Parlamentar de Inquérito em questão não fizesse qualquer menção às causas do acidente aéreo, ainda assim a investigação poderia incidir sobre elas, pois, como se sabe, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem afirmado inexistir obstáculo constitucional a que a CPI apure novos fatos, sequer referidos em seu ato de criação, se esses novos fatos guardarem conexão com o fato determinado (acidente aéreo com 154 mortes, no caso) expressamente indicado no requerimento de instauração da CPI.

Saliente-se, neste ponto, que se revela plenamente viável, a qualquer Comissão Parlamentar de Inquérito, ampliar, de modo legítimo, o campo de suas investigações, estendendo-as a outros eventos (não mencionados no requerimento de sua criação), sem que incida, por tal motivo, em transgressão constitucional, contanto que tais eventos guardem conexão com o fato principal que motiva a apuração congressional.


Esse entendimentoque encontra apoio no magistério da doutrina (ALEXANDRE ISSA KIMURA, “CPI – Teoria e Prática”, p. 38/39, item n. 2.3.3, 2001, Juarez de Oliveira; ODACIR KLEIN, “Comissões Parlamentares de Inquérito – A Sociedade e o Cidadão”, p. 33/38, 1999, Fabris Editor, v.g.) – tem o beneplácito da jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal:

I. – A Comissão Parlamentar de Inquérito deve apurar fato determinado. C.F., art. 58, § 3º. Todavia, não está impedida de investigar fatos que se ligam, intimamente, com o fato principal. (…).

(RDA 209/242, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, Plenogrifei)

Imputa-se, por outro lado, ao mencionado Requerimento subscrito pela minoria parlamentar, uma falha consistente na ausência de indicação do prazo de funcionamento da Comissão Parlamentar de Inquérito.

Um dos requisitos constitucionais subjacentes à criação de uma CPI refere-se à temporariedade de sua duração, pois esse órgão de investigação legislativa não pode funcionar por prazo indeterminado. Ao contrário, exige-se a indicação deprazo certopara duração de qualquer CPI (CF, art. 58, § 3º).

Cabe observar, no entanto, que o Regimento Interno da Câmara dos Deputados determina, ele próprio, o prazo de vigência das Comissões Parlamentares de Inquérito que deverão atuar no âmbito dessa Casa do Congresso Nacional.

O estatuto regimental em questão dispõe, em seu art. 35, § 3º, que “A Comissão (…) terá o prazo de cento e vinte dias, prorrogável por até metade, mediante deliberação do Plenário, para conclusão de seus trabalhos” (grifei).

Isso significa, portanto, que eventual omissão do requerimento de criação de CPI será suprida, de pleno direito, pelo que prescreve a norma regimental em causa, pois esta – dando concreção à finalidade da regra inscrita no § 3º do art. 58 da Constituição – estabelece, desde logo, o prazo de duração dos trabalhos da Comissão encarregada da investigação parlamentar.

No caso ora em exame, a CPI em questão não foi instituída por prazo indeterminado (o que é vedado pela Constituição da República), mas, ao contrário, reconheceu-sepor efeito da incidência da norma regimental mencionada – que a investigação parlamentar teria a duração de 120 dias, como expressamente afirmou o eminente Presidente da Câmara dos Deputados, ao indeferir a questão de ordem suscitada pelo Senhor Líder do PT (fls. 27/27v.):

(…) com referência ao prazo, o Regimento Interno, no seu art. 35, § 3º, dispõe:

Art. 35…………………………………….

§ 3º A Comissão, que poderá atuar também durante o recesso parlamentar, terá o prazo de cento e vinte dias, prorrogável por até metade, mediante deliberação do Plenário, para conclusão de seus trabalhos.


Portanto, ainda que em outra parte do Regimento esteja dito que é necessário constar o prazo, esse outro artigo, no seu referido parágrafo, em minha interpretação, dispensa estar no próprio requerimento, até porque essa tem sido uma tradição nas decisões das Mesas anteriores.” (grifei)

Vê-se, desse modo, em face do próprio caráter supletivo que qualifica a norma regimental mencionada (art. 35, § 3º), que não se está, na espécie, diante de uma CPI sem prazo certo, pois – insista-se -, tal como expressamente o reconheceu o Senhor Presidente da Câmara dos Deputados (fls. 27/27v.), foi ela criada pelo “prazo de cento e vinte dias (…)”, ajustando-se, desse modo, à exigência constitucional de temporariedade, que se impõe a qualquer Comissão Parlamentar de Inquérito.

O terceiro (e último) fundamento em que se apoiou a impugnação ao Ato de criação da CPI do tráfego aéreo consiste na afirmação de que o Requerimento subscrito pela minoria parlamentar não indicou a composição numérica desse órgão de investigação legislativa.

Embora não se trate de exigência constitucional (MS 24.847/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), cumpre assinalar que o Ato da Presidência da Câmara dos Deputados expressamente indicou que a CPI em causa “será composta de 23 membros titulares e de igual número de suplentes” (fls. 26), o que significa, portanto, que foi atendida, no caso, até mesmo essa simples prescrição regimental.

Impende referir, ainda, que a existência simultânea de investigações já instauradas por outros órgãos estatais (como o Departamento de Polícia Federal, o Ministério Público Federal, o Tribunal de Contas da União, a Controladoria-Geral da União, o Ministério da Defesa, a Infraero e a ANAC) não impede que as Casas do Congresso Nacional promovam inquéritos parlamentares, pois estes – tal como tem sido reconhecido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 177/229, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.) – possuem independência em relação aos procedimentos investigatórios em curso perante outras instâncias de Poder:

AUTONOMIA DA INVESTIGAÇÃO PARLAMENTAR.

O inquérito parlamentar, realizado por qualquer CPI, qualifica-se como procedimento jurídico-constitucional revestido de autonomia e dotado de finalidade própria, circunstância esta que permite à Comissão legislativa – sempre respeitados os limites inerentes à competência material do Poder Legislativo e observados os fatos determinados que ditaram a sua constituição – promover a pertinente investigação, ainda que os atos investigatórios possam incidir, eventualmente, sobre aspectos referentes a acontecimentos sujeitos a inquéritos policiais ou a processos judiciais que guardem conexão com o evento principal objeto da apuração congressual. Doutrina. Precedente: MS 23.639-DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO (Pleno).

(RTJ 180/191-193, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

Nem se diga, consideradas as razões que venho de expor, que a rejeição do ato de criação da CPI, em sede recursal, pelo Plenário da Câmara dos Deputados, por expressiva maioria, teria o condão de justificar a frustração do direito de investigar que a própria Constituição da República reconhece às minorias parlamentares.


É que, como se sabe, deliberações parlamentares majoritárias (ou, até mesmo, unânimes) não se qualificam como fatores de legitimação de atos eventualmente inconstitucionais que delas resultem, eis que nada pode justificar, considerado o próprio significado do regime democrático, a perversão das Instituições, notadamente quando os atos do Parlamento transgridem direitos, prerrogativas e garantias assegurados pela Constituição da República.

Em uma palavra: deliberações parlamentares, ainda que resultantes de votações unânimes ou majoritárias, não se revestem de autoridade suficiente para convalidar os vícios gravíssimos da inconstitucionalidade, pois, se tal fosse possível, a vontade de um dos Poderes constituído culminaria por subverter a supremacia da Constituição, vulnerando, de modo inaceitável, o próprio significado do regime democrático.

Cumpre registrar, finalmente, em face das gravíssimas conseqüências que vêm afetando a regularidade do sistema de tráfego aéreo neste País, com especial atenção para o trágico acidente ocorrido em 29/09/2006, que o inquérito parlamentar pretendido pelas minorias legislativas que atuam na Câmara dos Deputados, mais do que representar prerrogativa desses grupos minoritários, constitui direito insuprimível dos cidadãos da República, de quem não pode ser subtraído o conhecimento da verdade e o pleno esclarecimento dos fatos que tanto prejudicam os superiores interesses da coletividade.

É importante reconhecer, por isso mesmo, que, no regime democrático, o cidadão tem direito à informação, pois, consoante adverte NORBERTO BOBBIO, em lição magistral (“O Futuro da Democracia”, 1986, Paz e Terra), não há, nos modelos políticos que consagram a democracia, espaço possível reservado ao mistério.

Todas as considerações que venho de fazer, necessárias à análise do pedido de medida cautelar, levam-me a reconhecer configurado o requisito da plausibilidade jurídica da pretensão exposta pelos ora impetrantes.

Tenho para mim, por outro lado, que o requisito pertinente ao “periculum in moramostra-se evidenciado na espécie, em face, notadamente, da superveniência do acolhimento, pelo Plenário da Câmara dos Deputados, do Recurso nº 14/2007, do Senhor Líder do Partidos dos Trabalhadores, de que resultou o arquivamento do pedido de criação e instauração da Comissão Parlamentar de Inquérito em causa.

Sendo assim, e tendo em consideração as razões expostas, defiro o pedido de medida liminar, para determinar, cautelarmente, até o julgamento final do presente mandado de segurança, o imediato desarquivamento do Requerimento nº 01/2007, que objetiva instituir Comissão Parlamentar de Inquérito destinada ainvestigar as causas, conseqüências e responsáveis pela crise do sistema de tráfego aéreo brasileiro, desencadeada após o acidente aéreo ocorrido no dia 29 de setembro de 2006, envolvendo um Boeing 737-800, da Gol (vôo 1907,) e um jato Legacy, da América Excel Aire, com mais de uma centena de vítimas (…)” (fls. 17v. – grifei).

A presente decisão, portanto, limita-se a paralisar os efeitos da deliberação plenária da Câmara dos Deputados proferida na Sessão Extraordinária de 21/03/2007, impedindo, desse modo, até final decisão do Supremo Tribunal Federal, que se tornem irreversíveis as conseqüências resultantes da desconstituição do Ato da Presidência dessa Casa do Congresso Nacional que havia reconhecido a criação de mencionada CPI. Mantém-se, portanto, subsistente o Ato da Presidência em questão (que entendera válida a criação da CPI em causa), cuja publicação – referida no art. 35, § 2º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados – deverá aguardar o julgamento final desta ação de mandado de segurança.

Assinalo, por necessário, em ordem a definir a extensão da presente medida cautelar, não se revelar constitucionalmente viável, a esta Suprema Corte, mediante simples provimento de caráter liminar, deferira instalação e o funcionamento provisórios da CPI (…)” (fls. 11 – grifei). É que não existem, em nosso sistema político-jurídico, nem a instituição provisória, nem o funcionamento precário de Comissão Parlamentar de Inquérito, cuja instalação, por isso mesmo, dependerá da eventual concessão, pelo Supremo Tribunal Federal, deste mandado de segurança.

Na realidade, esta medida liminar, além de realçar a densidade jurídica do pedido formulado pelos impetrantes, obsta, até final julgamento do Supremo Tribunal Federal, que se tornem definitivos e irreversíveis os efeitos (juridicamente negativos) decorrentes da deliberação plenária da Câmara dos Deputados.

Comunique-se, com urgência, transmitindo-se cópia da presente decisão à E. Presidência da Câmara dos Deputados.

Publique-se.

Brasília, 29 de março de 2007 (16h30).

Ministro CELSO DE MELLO

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