Lei do possível

Se Estado não pode cumprir obrigação, tem direito de adiá-la

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29 de março de 2007, 0h01

Para o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, a lei tem de ser interpretada de acordo com o possível. É o chamado “pensamento jurídico do possível”, teoria usada pelo ministro para atender pedido do governo do Rio Grande do Sul, que requereu a suspensão de liminar que mandava o governo pagar o salário dos delegados do estado até o último dia útil do mês.

O pagamento integral dos salários dos delegados até o último dia útil do mês está previsto na Lei Complementar Estadual 10.098/94. No entanto, o governo estadual decidiu, neste mês, pagaria os salários da seguinte maneira: R$ 2.5 mil até o último dia útil do mês e o restante, até o dia 10 de abril. De acordo com o governo, era a única maneira de cumprir com as suas obrigações, devido à limitação do orçamento.

A Associação dos Delegados de Polícia do Estado do Rio Grande do Sul (Asdep-RS) recorreu ao Tribunal de Justiça gaúcho, que garantiu, em liminar, o pagamento integral dos salários até o final do mês. O governo, então, levou o caso ao Supremo.

Ao analisar o pedido de liminar em Suspensão de Segurança, o ministro Gilmar Mendes reconheceu que o Supremo já declarou constitucional a Lei Complementar Estadual 10.098/94, que fixa a data limite para pagamentos dos salários dos servidores públicos. No entanto, observou que é preciso interpretar a lei de acordo com a realidade.

“É notório que a administração pública estadual não dispõe, neste momento, de recursos financeiros suficientes párea o cumprimento de todas as suas obrigações.” Portanto, para ele, a situação excepcional, aplicada apenas para o mês de março, justifica o descumprimento da lei

“Não vislumbro afronta às garantias constitucionais em referência ou ao princípio da moralidade pública.” Ele ressaltou que o governo gaúcho não está se recusando a pagar a remuneração integral dos servidores, “apenas prorrogando parte desse pagamento até o dia 10 de abril por absoluta impossibilidade financeira”.

Leia a decisão

SUSPENSÃO DE SEGURANÇA 3.154-6 RIO GRANDE DO SUL

RELATORA: MINISTRA PRESIDENTE

REQUERENTE(S): ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

ADVOGADO(A/S): PGE-RS – ELIANA SOLEDADE GRAEFF MARTINS E OUTRO(A/S)

REQUERIDO(A/S): RELATOR DO MANDADO DE SEGURANÇA Nº 70019045624 DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

IMPETRANTE(S): ASSOCIAÇÃO DOS DELEGADOS DE POLÍCIA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL – ASDEP/RS

ADVOGADO (A/S): JOSÉ VECCHIO FILHO E OUTRO(A/S)

DECISÃO: O Estado do Rio Grande do Sul, com fundamento nos arts. 4º da Lei 4.348/64, 4º da Lei 8.437/92, 25 da Lei 8.038/90 e 297 do RISTF, requer a suspensão da execução da liminar deferida pelo desembargador relator do Mandado de Segurança nº 70019045624, que garantiu aos associados da impetrante o pagamento integral de suas remunerações até o último dia útil deste mês (fls. 20-22).

Diz o requerente que, ante a exaustão de sua capacidade orçamentária em relação a todas as suas obrigações, elegeu como único meio possível de satisfazer o pagamento da remuneração de 7,34% (sete vírgula trinta e quatro por cento) de seu funcionalismo público o parcelamento de seus vencimentos em datas distintas, quais sejam, pagamento no último dia útil deste mês até o valor de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais) e o restante até o dia 10 de abril deste ano.

Sustenta, mais, em síntese:


a) cabimento do presente pedido de suspensão, uma vez que a matéria discutida no mandado de segurança em tela possui natureza eminentemente constitucional;

b) existência de vedação a novas operações de crédito por parte do Estado do Rio Grande do Sul, nos termos das Resoluções nºs 40 e 43 do Senado Federal, em razão de seu elevado endividamento, do refinanciamento de sua dívida pública e da Lei de Responsabilidade Fiscal. Ademais, “a meta de resultado primário para o primeiro bimestre de 2007, fixada em R$ 634 milhões, não foi atingida, ficando em R$ 297 milhões” e o “cumprimento da meta de R$ 3,640 bilhões para a receita primária não ocorreu devido à arrecadação ter sido R$ 563 milhões inferior à prevista, mesmo com a contração das despesas primárias” (fl. 8);

c) ocorrência de grave lesão à ordem pública, dado que a Governadora do Estado do Rio Grande do Sul, no exercício de seu poder de direção da Administração Pública, determinou a execução da medida ora questionada nos autos do mandado de segurança em apreço, tendo em vista a situação de esgotamento das finanças públicas e a ausência de novas fontes de recursos imediatos para o seu saneamento, elegendo como prioridades a execução de atividades básicas, “tais como o fornecimento de alimentação à população carcerária, de combustível às viaturas policiais e de socorro, de energia elétrica a prédios públicos, de merenda aos alunos das escolas da rede pública de ensino, fornecimento de medicamentos” (fl. 9);

d) aplicabilidade à espécie do princípio da impossibilidade material, ante o “fato de que a lei não pode exigir mais do que a situação jurídica permite, nem pode a determinação judicial exigir algo que, nas diversas alternativas de execução, a materialidade fenomênica demonstre ser irrealizável”, consoante asseverou o professor Ives Gandra Martins (RDA 187/353);

e) existência de grave lesão à economia pública, consubstanciada no fato de que o cumprimento da decisão ora impugnada gerará o pagamento imediato de R$ 3.217.132,00 (três milhões, duzentos e dezessete mil e cento e trinta e dois reais), conforme informações da Secretaria de Fazenda do Estado do Rio Grande do Sul, o que “reduzirá ainda mais as disponibilidades do tesouro estadual, fazendo com que entre em risco o próprio pagamento dos vencimentos dos demais servidores que recebem salários inferiores a R$ 2.500,00, bem como o atendimento à prestação de outros serviços públicos essenciais” (fl. 14);

f) possibilidade de ocorrência do denominado “efeito multiplicador” da decisão ora impugnada, tendo em vista a sua repercussão junto às demais categorias que também tiveram a sua remuneração parcelada, “eis que foram 20 mil matrículas atingidas em um total de aproximadamente 273 mil servidores” (fl. 14).

Inicialmente, reconheço que a controvérsia instaurada no mandado de segurança em apreço evidencia a existência de matéria constitucional: alegação de ofensa ao princípio da irredutibilidade de vencimentos decorrente da interpretação atribuída aos arts. 7º, VI e X, e 37, XV, da Constituição da República. Dessa forma, cumpre ter presente que a Presidência do Supremo Tribunal Federal dispõe de competência para examinar questão cujo fundamento jurídico é de natureza constitucional (art. 297 do RISTF, c/c art. 25 da Lei 8.038/90), conforme firme jurisprudência desta Corte, destacando-se os seguintes julgados: Rcl 475/DF, rel. Min. Octavio Gallotti, Plenário, DJ 22.4.1994; Rcl 497-AgR/RS, rel. Min. Carlos Velloso, Plenário, DJ 06.4.2001; SS 2.187-AgR/SC, rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 21.10.2003; e SS 2.465/SC, rel. Min. Nelson Jobim, DJ 20.10.2004.

A Lei 4.348/64, em seu art. 4º, autoriza o deferimento do pedido de suspensão de segurança para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.


O mandado de segurança em referência foi impetrado preventivamente contra o seguinte ato da Governadora do Estado do Rio Grande do Sul:

“A GOVERNADORA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, no uso das atribuições que lhe confere, o artigo 82, inciso V, da constituição Estadual,

Considerando que se abate sobre as finanças públicas do Estado notória crise estadual, já de longa data;

Considerando que se esgotaram os meios excepcionais de financiamentos do déficit estrutural do Estado;

Considerando que resultará orçamento na despesa de pessoal, a partir de março do corrente ano, aproximadamente R$ 14.000.000,00 (quatorze milhões de reais), decorrente das Leis Estaduais nº 12.442 e nº 12.443, de 3 de abril de 2006; e

Considerando que, mesmo com o corte nas despesas de custeio e as ações implementadas para o aumento da receita, os recursos financeiros disponíveis para honrar totalmente a folha de pagamento dentro do mês março mostram se insuficientes,

DETERMINA

a) que vencimentos, proventos, pensões vitalícias do Poder Executivo, de suas fundações de direito público, e pensões previdenciárias sejam pagos, de acordo com o calendário regular, até o limite liquido, por vínculo, de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais); e

b) que o restante seja pago ou depositado no dia 10 de abril do corrente ano.”

A decisão impugnada deferiu a medida liminar com fundamento na ofensa ao art. 35 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, que prescreve que “o pagamento da remuneração mensal dos servidores públicos do Estado e das autarquias será realizado até o último dia útil do mês do trabalho prestado”.

A reflexão sobre o caso em análise avivou-me a memória para o “pensamento do possível”, na reflexão de Gustavo Zagrebelsky sobre o ethos da Constituição na sociedade moderna. Diz aquele eminente Professor italiano no seu celebrado trabalho sobre o direito dúctil – il diritto mitte:

“As sociedades pluralistas atuais – isto é, as sociedades marcadas pela presença de uma diversidade de grupos sociais com interesses, ideologias e projetos diferentes, mas sem que nenhum tenha força suficiente para fazer-se exclusivo ou dominante e, portanto, estabelecer a base material da soberania estatal no sentido do passado – isto é, as sociedades dotadas em seu conjunto de um certo grau de relativismo, conferem à Constituição não a tarefa de estabelecer diretamente um projeto predeterminado de vida em comum, senão a de realizar as condições de possibilidade da mesma” (Zagrebelsky, El Derecho Dúctil. Ley, derechos, justicia. Trad. de Marina Gascón. 3a. edição. Edt. Trotta S.A., Madrid, 1999. p. 13).

Em seguida, observa aquele eminente Professor:

“No tempo presente, parece dominar a aspiração a algo que é conceitualmente impossível, porém altamente desejável na prática: a não-prevalência de um só valor e de um só princípio, senão a salvaguarda de vários simultaneamente. O imperativo teórico da não-contradição – válido para a scientia juris – não deveria obstaculizar a atividade própria da jurisprudentia de intentar realizar positivamente a ‘concordância prática’ das diversidades, e inclusive das contradições que, ainda que assim se apresentem na teoria, nem por isso deixam de ser desejáveis na prática. ‘Positivamente’: não, portanto mediante a simples amputação de potencialidades constitucionais, senão principalmente mediante prudentes soluções acumulativas, combinatórias, compensatórias, que conduzam os princípios constitucionais a um desenvolvimento conjunto e não a um declínio conjunto” (Zagrebelsky, El Derecho Dúctil., cit., p. 16).


Por isso, conclui que o pensamento a ser adotado, predominantemente em sede constitucional, há de ser o “pensamento do possível”. Leio, ainda, esta passagem desse notável trabalho:

“Da revisão do conceito clássico de soberania (interna e externa), que é o preço a pagar pela integração do pluralismo em uma única unidade possível – uma unidade dúctil, como se afirmou – deriva também a exigência de que seja abandonada a soberania de um único princípio político dominante, de onde possam ser extraídas, dedutivamente, todas as execuções concretas sobre a base do princípio da exclusão do diferente, segundo a lógica do aut-aut, do “ou dentro ou fora”. A coerência “simples” que se obteria deste modo não poderia ser a lei fundamental intrínseca do direito constitucional atual, que é, precipuamente, a lógica do et-et e que contém por isso múltiplas promessas para o futuro. Neste sentido, fala-se com acerto de um “modo de pensar do possível” (Möglichkeitsdenken), como algo particularmente adequado ao direito do nosso tempo. Esta atitude mental “possibilista” representa para o pensamento o que a “concordância prática” representa para a ação” (Zagrebelsky, El Derecho Dúctil, cit., p. 17).

Em verdade, talvez seja Peter Häberle o mais expressivo defensor dessa forma de pensar o direito constitucional nos tempos hodiernos, entendendo ser o “pensamento jurídico do possível” expressão, conseqüência, pressuposto e limite para uma interpretação constitucional aberta (Häberle, P. Demokratische Verfassungstheorie im Lichte des Möglichkeitsdenken, in: Die Verfassung des Pluralismus, Königstein/TS, 1980, p. 9).

Nessa medida, e essa parece ser uma das importantes conseqüências da orientação perfilhada por Häberle, “uma teoria constitucional das alternativas” pode converter-se numa “teoria constitucional da tolerância” (Häberle, Die Verfassung des Pluralismus, cit., p. 6). Daí perceber–se também que “alternativa enquanto pensamento possível afigura-se relevante, especialmente no evento interpretativo: na escolha do método, tal como verificado na controvérsia sobre a tópica enquanto força produtiva de interpretação” (Häberle, Die Verfassung des Pluralismus, cit., p. 7).

A propósito, anota Häberle:

“O pensamento do possível é o pensamento em alternativas. Deve estar aberto para terceiras ou quartas possibilidades, assim como para compromissos. Pensamento do possível é pensamento indagativo (fragendes Denken). Na res publica existe um ethos jurídico específico do pensamento em alternativa, que contempla a realidade e a necessidade, sem se deixar dominar por elas. O pensamento do possível ou o pensamento pluralista de alternativas abre suas perspectivas para “novas” realidades, para o fato de que a realidade de hoje poder corrigir a de ontem, especialmente a adaptação às necessidades do tempo de uma visão normativa, sem que se considere o novo como o melhor” (Häberle, Die Verfassung des Pluralismus, cit., p. 3).

Nessa linha, observa Häberle, “para o estado de liberdade da res publica afigura-se decisivo que a liberdade de alternativa seja reconhecida por aqueles que defendem determinadas alternativas”. Daí ensinar que “não existem apenas alternativas em relação à realidade, existem também alternativas em relação a essas alternativas” (Häberle, Die Verfassung des Pluralismus, cit., p. 6).


O pensamento do possível tem uma dupla relação com a realidade. Uma é de caráter negativo: o pensamento do possível indaga sobre o também possível, sobre alternativas em relação à realidade, sobre aquilo que ainda não é real. O pensamento do possível depende também da realidade em outro sentido: possível é apenas aquilo que pode ser real no futuro (Möglich ist nur was in Zukunft wirklich sein kann). É a perspectiva da realidade (futura) que permite separar o impossível do possível (Häberle, Die Verfassung des Pluralismus, cit., p.10).

Feitas essas necessárias digressões, o caso em análise também está a cobrar, a meu ver, a adoção de um típico “pensamento do possível”.

É certo que este Supremo Tribunal Federal já declarou a constitucionalidade do art. 35 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, em decisão assim ementada:

“EMENTA: – Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Art. 35 e parágrafo único da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul. Fixa data para pagamento de remuneração aos servidores públicos do Estado e das autarquias. 3. Alegação de ofensa aos artigos 2º; 25; 61, § 1º, II, "c"; 84, II e VI, e 11 do ADCT, todos da Constituição Federal. 4. Parecer da Procuradoria-Geral da República pela improcedência da ação. 5. Inexistência de inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 35 da Constituição gaúcha. Correspondência com o que se encontra legislado no âmbito federal. Precedentes. 6. Ação julgada improcedente para declarar a constitucionalidade do art. 35 e parágrafo único da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul.”

Por outro lado, é preciso ressaltar que a eficácia da norma constitucional do art. 35 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul – que prescreve que “o pagamento da remuneração mensal dos servidores públicos do Estado e das autarquias será realizado até o último dia útil do mês do trabalho prestado” – depende de um estado de normalidade nas finanças públicas estaduais.

No caso em análise, é notório que a Administração Pública estadual não dispõe, neste momento, de recursos financeiros suficientes para o cumprimento de todas as suas obrigações, motivo pelo qual elegeu a forma que achou mais adequada e razoável para o equacionamento desse problema.

Nesse sentido, permito-me trazer à colação interessante caso julgado pela Corte de Cassação da Bélgica, mencionado por Perelman em “Lógica Jurídica”. Anota Perelman:

“Durante a guerra de 1914-1918, como a Bélgica estava quase toda ocupada pelas tropas alemãs, com o Rei e o governo belga no Havre, o Rei exercia sozinho o poder legislativo, sob forma de decretos-leis.

‘A impossibilidade de reunir as Câmaras, em conseqüência da guerra, impedia incontestavelmente que se respeitasse o artigo 26 da Constituição (O poder legislativo é exercido coletivamente pelo Rei, pela câmara dos Representantes e pelo Senado). Mas nenhum dispositivo constitucional permitia sua derrogação, nem mesmo em circunstâncias tão excepcionais. O artigo 25 enuncia o princípio de que os poderes ‘são exercidos da maneira estabelecida pela Constituição’, e o artigo 130 diz expressamente que ‘a Constituição não pode ser suspensa nem no todo nem em parte.’ (A. Vanwelkenhuyzen, De quelques lacunes du droit constitutionnel belge, em Le problème des lacunes en droit, p. 347).

Foi com fundamento nestes dois artigos da Constituição que se atacou a legalidade dos decretos-leis promulgados durante a guerra, porque era contrária ao artigo 26 que precisa como se exerce o poder legislativo.


(…)” (Perelman, Chaïm. Lógica Jurídica, trad. Vergínia K. Pupi. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2000, p.105).

Perelman responde à indagação sobre a legitimidade da decisão da Corte, com base nos argumentos do Procurador-Geral Terlinden. É o que lê na seguinte passagem do seu trabalho:

“Como pôde a Corte chegar a uma decisão manifestamente contrária ao texto constitucional? Para compreendê-lo, retomemos as conclusões expostas antes do aresto pelo procurador-geral Terlinden, em razão de seu caráter geral e fundamental.

‘Uma lei sempre é feita apenas para um período ou um regime determinado. Adapta-se às circunstâncias que a motivaram e não pode ir além. Ela só se concebe em função de sua necessidade ou de sua utilidade; assim, uma boa lei não deve ser intangível pois vale apenas para o tempo que quis reger. A teoria pode ocupar-se com abstrações. A lei, obra essencialmente prática, aplica-se apenas a situações essencialmente concretas. Explica-se assim que, embora a jurisprudência possa estender a aplicação de um texto, há limites a esta extensão, que são atingidos toda vez que a situação prevista pelo autor da lei venha a ser substituída por outras fora de suas previsões.

Uma lei – constituição ou lei ordinária – nunca estatui senão para períodos normais, para aqueles que ela pode prever.

Obra do homem, ela está sujeita, como todas as coisas humanas, à força dos acontecimentos, à força maior, à necessidade.

Ora, há fatos que a sabedoria humana não pode prever, situações que não pôde levar em consideração e nas quais, tornando-se inaplicável a norma, é necessário, de um modo ou de outro, afastando-se o menos possível das prescrições legais, fazer frente às brutais necessidades do momento e opor meios provisórios à força invencível dos acontecimentos.’ (Vanwelkenhuysen, Le problème des lacunes en droit, cit., pp. 348-349).

(…)” (Perelman, Lógica Jurídica, cit., p.106).

Nessa linha, conclui Perelman:

“Se devêssemos interpretar ao pé da letra o artigo 130 da Constituição, o acórdão da Corte de Cassação teria sido, sem dúvida alguma, contra legem. Mas, limitando o alcance deste artigo às situações normais e previsíveis, a Corte de Cassação introduz uma lacuna na Constituição, que não teria estatuído para situações extraordinárias, causadas ‘pela força dos acontecimentos’, ‘por força maior’, ‘pela necessidade’" (Perelman, Lógica Jurídica, cit. p. 107).

Portanto, desde essa perspectiva de análise, a interpretação das normas constitucionais em questão, no sentido de um pensamento jurídico de possibilidades, pode fornecer soluções adequadas ao problema em exame.

O ato da Chefe do Poder Executivo do Estado do Rio Grande do Sul enquadra-se numa situação excepcional, em que as finanças públicas estaduais encontram-se em crise. As garantias constitucionais da irredutibilidade e do pagamento em dia da remuneração dos servidores públicos devem ser interpretadas, nesse contexto fático extraordinário, conforme o “pensamento do possível”.

Neste juízo sumário de delibação, portanto, entendo que a medida adotada pela Governadora do Estado do Rio Grande do Sul não desborda dos parâmetros de proporcionalidade e razoabilidade, tendo em vista a situação excepcional em que se encontram as contas públicas estaduais. Não vislumbro afronta às garantias constitucionais em referência ou ao princípio da moralidade pública.

Ressalte-se, outrossim, que não há, no caso, redução de remuneração. Ademais, o Estado do Rio Grande do Sul não está se recusando a pagar a remuneração de seus servidores, mas apenas prorrogando parte desse pagamento até o dia 10 de abril do presente ano, por absoluta impossibilidade financeira. A medida é tópica, abrangendo apenas o pagamento da remuneração atinente ao mês de março de 2007, o que demonstra a sua adoção num quadro de força maior, de extrema e excepcional necessidade.

Assim, entendo que se encontra devidamente configurada a ocorrência de grave lesão à ordem pública, considerada em termos de ordem administrativa.

Está devidamente demonstrada, ainda, a existência de grave lesão à economia pública estadual, na medida em que o cumprimento da decisão ora impugnada gerará o pagamento imediato de aproximadamente R$ 3.000.000,00 (três milhões de reais), conforme informações da Secretaria de Fazenda do Estado do Rio Grande do Sul.

Finalmente, assevere-se que poderá haver, no presente caso, o denominado “efeito multiplicador” (SS 1.836-AgR/RJ, rel. Min. Carlos Velloso, Plenário, unânime, DJ 11.10.2001), diante da existência de inúmeros servidores em situação potencialmente idêntica àquela dos associados da impetrante.

Ante o exposto, defiro o pedido para suspender a execução da liminar deferida pelo desembargador relator do Mandado de Segurança nº 70019045624.

Comunique-se, com urgência.

Publique-se.

Brasília, 28 de março de 2007.

Ministro GILMAR MENDES

Vice-Presidente

(RISTF, art. 37, I)

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