Desserviço público

Tribunal do júri não consegue cumprir seus propósitos

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27 de março de 2007, 0h03

O instituto do tribunal do júri, há tempos, exige e reclama atualização de seu ritual procedimental, de forma a adequá-lo às expectativas de uma sociedade cada vez mais dinâmica, informatizada, incluída digitalmente e, por isso mesmo, pouco afeita a formalismos e procedimentos morosos e destituídos de qualquer finalidade prática.

Na verdade, às vésperas de completar nove anos na magistratura, tenho me perguntado para quê serve e a quem interessa que se mantenha o julgamento de crimes dolosos tentados ou consumados contra a vida, através de Conselho de Sentença, formado por sete jurados leigos, escolhidos dentre os membros da sociedade, como “pares” do acusado, em sessão solene extensa, cansativa e, para quase todos, totalmente ininteligível.

Este seria apenas um dos vários aspectos negativos que rodeiam este instituto. Isso, certamente, tem contribuído de maneira indiscutível para a sensação de impunidade, que a morosidade no julgamento dos processos suscita na sociedade e, principalmente, que serve de estímulo aos agentes criminosos. Estes confiam na excessiva formalidade do procedimento para se safarem de se submeter à pena prevista para o delito cometido.

Como membro da magistratura, posiciono-me frontalmente contrária ao instituto, sendo a razão principal de tal postura, a morosidade que constitui a sua essência, decorrente do excessivo formalismo, além de sua composição, que favorece o proferimento de decisões dotadas de caráter muito mais sócio-político do que propriamente jurídico e, muitas vezes, movidas por sentimentos que variam do medo, passando pela coação, até à amizade.

Muito se tem filosofado acerca da necessidade da manutenção do tribunal do júri como forma de permitir a participação popular na administração da Justiça.

Minha pergunta, com base na minha experiência profissional decorrente dos anos em que presidi sessões de julgamento, felizmente já ultrapassada, é se a sociedade ainda ostenta interesse em participar da administração da Justiça e se não estaria pronta a abrir mão de tal direito, ou garantia, como queiram, em prol de um julgamento menos formal, menos solene e realizado pelo juiz togado, a exemplo do procedimento previsto para os demais crimes, alguns deles cometidos até com idêntico resultado, no caso, morte, e com requintes de crueldade, mas que, por razões de técnica legislativa, não se submetem ao crivo do tribunal popular.

Na verdade, lirismos à parte, o sistema em vigor, além de impor morosidade ao trâmite processual e retardar a decisão final, ainda estabelece uma série de dificuldades para que o Judiciário possa, enfim, fazer Justiça.

Com certeza, um procedimento que privilegia o formal em detrimento do material, por si só já se mostra eficaz em fomentar a impunidade. Tal aspecto se estende, e de maneira ainda mais nociva, à sessão de julgamento, contribuindo, sobremaneira, para o adiamento de julgamentos com base em alegadas nulidades decorrentes do não cumprimento de formalidades totalmente dispensáveis e que jamais poderiam, nos dias de hoje, ensejar argumentos de cerceamento de defesa.

Na verdade, a única e certa conseqüência de situações da espécie é o aumento do desgaste do Poder Judiciário, que já tem acumulado bastante descrédito – muito do qual, diga-se de passagem, sem que tenha contribuído para tanto, mas unicamente pela sua condição de aplicador da lei elaborada pelo Poder Legislativo, que raríssimas vezes foi cobrado por tal atribuição – e que poderia ser perfeitamente evitado desde que a própria Constituição se adequasse às novas expectativas sociais.

Na prática, percebe-se que a sociedade prefere que o Poder Judiciário faça o que já é constitucionalmente sua atribuição funcional: julgar. Não se vislumbra qualquer interesse dos que compõem a lista de jurados alistados, com raras exceções, na contemplação de seu nome como sorteado para compor a lista dos 21 e, menos ainda, em compor o Conselho de Sentença de qualquer das sessões de julgamento que venham a se realizar.

É bastante comum a solicitação dos jurados ao advogado de defesa e ao promotor de Justiça, no sentido de que sejam incluídos por estes, caso venham a ser sorteados para o Conselho de Sentença, nas recusas peremptórias, previstas no parágrafo 2º artigo 459, do Código de Processo Penal.

Quando não conseguem tal intento, apresentam justificativas as mais estapafúrdias ou, simplesmente, não comparecem, mesmo cientes da possibilidade de imposição de multa por ausência não justificada.

Os que são sorteados, por sua vez, geralmente demonstram descontentamento ou mesmo apatia, em face da expectativa da obrigação – não remunerada – de passar um dia inteiro – e às vezes, mais do que isso – participando de um ato do qual compreendem muito pouco ou quase nada do que é discutido. São obrigados a se manter atentos a todos os atos praticados durante a sessão, sendo a leitura de peças, inquestionavelmente, a mais tediosa de todas, deixando de lado seus afazeres pessoais, familiares e profissionais para, ao final, proferirem uma decisão com base em quesitos que não compreendem a finalidade.

A par de todas estas considerações, ainda é preciso levar em conta que estas pessoas se transformam em alvo das famílias da vítima e do acusado, sofrendo, por vezes, pressões de cunho emocional, quando não ameaças de toda sorte ou até promessas de recompensa pecuniária.

Exemplo loquaz de tal assertiva foi o julgamento de um homicida em cidade próxima a Juazeiro do Norte(CE), o qual foi absolvido, por unanimidade pelo Conselho de Sentença, sob a tese da legítima defesa, mesmo a vítima estando, no momento do crime, descalça, desarmada e vestida apenas com um calção.

Por fim, como se não bastasse, ainda são impostos à incomunicabilidade, a permanecer nas dependências do Fórum, aí fazendo as refeições. Cabe salientar que, nas cidades interioranas de alguns estados da Federação, o tribunal de justiça não custeia tais despesas, vendo-se o juiz obrigado a custeá-las do próprio bolso ou recorrer à Prefeitura Municipal, não havendo como se verificar a qualidade da comida servida àqueles e tendo sorte se não precisarem ali dormir, em face da precariedade das instalações.

Aos cidadãos, que pagam seus impostos e cumprem a lei, não devia ser imposta a obrigação de julgar criminosos perigosos, sem deter qualquer preparo técnico para tanto, expondo-se de forma totalmente desnecessária, sem, inclusive, receber qualquer retribuição por tal tarefa. Além disso, não se mostra eloqüente o argumento de que passam a ter o direito de prisão especial e preferência em concorrências públicas.

Tais circunstâncias, certamente, não são levadas em consideração pelos defensores do instituto, mais preocupados em defender a manutenção do julgamento de criminosos, autores de crimes hediondos, por seus “pares” do que em buscar a melhoria do sistema de entrega da prestação jurisdicional, nos moldes que venha ao encontro da expectativa social.

Questiono-me a quem interessa a manutenção de tal estado de coisas. Ao Poder Judiciário, garanto que não. Ao contrário do que possa parecer, ou mesmo do que tem sido divulgado pela mídia, nosso interesse na solução rápida e eficaz dos conflitos, de qualquer natureza, é tão intenso quanto o das partes interessadas. Isso se não for maior, uma vez que além do aumento da credibilidade no trabalho realizado pelos operadores do Direito, ainda teríamos um incremento na realização da paz social e a conseqüente diminuição no número de processos em trâmite.

Talvez a manutenção do julgamento nos moldes em que hoje é realizado interesse aos que têm anseio pela mídia e pelos holofotes, preocupação que não deve nortear a conduta dos aplicadores da Lei, exceto dos que não têm vocação para a missão.

A expectativa social é que o Judiciário, bem como a defesa e o Ministério Público, façam o que são pagos para fazer, qual seja promover a justiça, obedecendo estritamente o devido processo legal, respeitados o contraditório e a ampla defesa.

Defendo o fim do tribunal do júri nos moldes em que atualmente é realizado, transferindo para o juiz singular a competência para o julgamento dos crimes dolosos, tentados ou consumados contra a vida, com a extinção definitiva da figura do jurado e da sessão solene, alterando-se, ainda, o procedimento, para dotar o mesmo de uma maior simplicidade, informalidade e celeridade, sem prejuízo, obviamente, da legalidade e da garantia de um julgamento justo, em que seja assegurada a ampla defesa, podendo servir como paradigma o próprio procedimento previsto na Lei 9.099/95, para os crimes de competência do Juizado Especial Criminal.

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