Realidade digital

Mundo virtual não ignora as instituições jurídicas

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27 de março de 2007, 14h24

Evidentemente que nunca, em toda a recente história da tecnologia da informação, a realidade virtual esteve tão próxima, tão intimamente relacionada com o mundo físico.

Enquanto nós, operadores do Direito Informático, buscávamos e debatíamos soluções para os problemas do mundo que entendíamos ser o autêntico “mundo virtual”, no incessante objetivo de “ruminar” tais informações aos representantes do legislativo e judiciário, surge uma comunidade, ou melhor, um ambiente que sem dúvida, promete ser mais popular que o famoso Orkut, não só pela “roupagem” negocial da estrutura digital apresentada, mas pela velocidade com que ganha adeptos. Algo que nos faz repensar algumas opiniões, até então cultivadas.

Uma extraordinária revolução na forma de interação social e econômica, que evidentemente relativiza o preconceito até então pacificado, no sentido de que o mundo virtual não é um mundo à parte, e sim uma extensão do mundo real.

Um planeta que já conta com uma população de mais de 3 milhões de pessoas, astro este que representa com fidelidade a acepção de “globalização”, reunindo pessoas de todo o globo, com as mais variadas intenções e interesses, e que favorece o acesso ao mercado global, sem o enfrentamento das clássicas barreiras alfandegárias. O que pensávamos que só existia em filmes de ficção científica é uma realidade. Estamos falando do Second Life1.

O Second Life, desenvolvido pela empresa Linden Labs e lançando em 2003, já é hoje uma “febre” nacional, com direito à Avenida Paulista, Cristo Redentor, e porque não, a mendigos nas ruas. Atualmente conta com um território de aproximadamente 263 mil quilômetros quadrados e virtuais. Estima-se que os brasileiros, os que mais permanecem conectados na Internet, invadam o ambiente eletrônico, tal como fizeram com o Orkut, do Google.

Para se tornar um e-cidadão do Second Life, basta ser maior de 18 (dezoito) anos e possuir cartão de crédito internacional, podendo-se testar o mundo de graça por 7 (sete) dias, ou fazer a adesão ao custo de U$$9,95, com direito a um lote virtual para construção de casa ou estabelecimento comercial, lembrando que a inflação dos imóveis ainda não é medida pela localização do terreno, mas pelo que pretende-se construir.

Falamos de uma mídia MMORPG, Massive Multiplayer Online Role Playing Game, onde cada participante cria a seu critério o seu personagem virtual, o chamado avatar e já está apto a se interar na sociedade digital, se é que alguém vai se interessar por um personagem sem casa, trabalho ou bens… Um fato é constante tanto no mundo real como no virtual: É preciso progredir!

Alguém poderia naturalmente preconizar que se trata de mais um game, sem representação alguma no mundo real, tal como Everquest ou World of Warcraft, entretanto, não ousaria avocar de game um ambiente eletrônico que vêm movimentando milhões de dólares no mundo, onde grandes multinacionais tem construído suas versões eletrônicas e lucrando! Esta é a diferença, o Second Life enfatiza o que chamamos v-bussines, ou virtual business, e como bem assevera Sandy Kearney2, diretor da IBM para negócios virtuais e mundo 3D, “nós sempre nos colocamos a seguinte questão: se há 20 anos soubéssemos o que seria a rede hoje, o que teríamos feito de forma diferente?”. A IBM também está no Second Life e já realiza reuniões virtuais com seus principais clientes.

E por falar em 20 anos, impossível não citar o visionário John Naisbitt 3, do Best Seller “MegaTrends”, que no início da década de oitenta já observava que “agora, mais de cem anos depois da criação dos primeiros aparelhos de comunicação de dados, estamos no limiar de uma gigantesca revolução na comunicação. As tecnologias combinadas da telefonia, computação e televisão fundiram-se num sistema integrado de comunicação e informação que transmite dados e permite interação instantânea entre pessoas e computadores. Da mesma forma que a rede de transportes levou no passado os produtos da industrialização, esta rede de comunicação levará os novos produtos da sociedade da informação.(…)Pela primeira vez, temos uma economia baseada num recurso-chave não apenas renovável, mas autogregador. O problema não é a fonte esgotar – o problema é nos afogarmos nela.

Tamanha é a inovação trazida pelo Second Life, que tal Mundo tem cambio, moeda e economia própria. Senhores, apresento-lhes o Linden Dollar, a moeda oficial do mundo eletrônico, que pode ser convertida para dólares reais a qualquer momento, na casa de câmbio LindeX Currency Exchange4 (Casa de Câmbio LindeX), um mercado real em um mundo virtual. O Second Life está sujeito aos mesmos problemas econômicos das sociedades reais, com inflação e especulação imobiliária, entretanto, a oscilação do dólar real não afeta o ambiente.


Tratando-se de uma sociedade virtual com economia real, uma máxima prepondera: onde está a Economia, deve estar o Direito. Mas que Direito? Aqueles aprisionados nos limites do código fonte ou na licença de uso da empresa criadora do Second Life? Ou nos direitos de derivação do adaptador do código aberto (open source)? Direito Internacional? Ainda constatamos a auto-tutela no âmbito Internacional, um estágio primitivo da evolução da jurisdição! Mas e agora, temos mais um fator complicador?

A partir do momento em que um “game” passa a movimentar dinheiro real e envolver dados, inclusive bancários, de pessoas reais, a partir do momento em que é possível ter direito de propriedade no mundo virtual e converte-lo em dinheiro real, a partir do momento em que se pode trabalhar para ganhar Linden Dollars, bem como vender, comprar, empregar, prestar serviços, pagar impostos, fraudar, furtar, dentre outras ações comuns no mundo físico, é por demais forçoso admitirmos a não ingerência do direito existente no mundo cibernético.

O problema reside na aplicabilidade: Imaginem um delegado de polícia que ao perguntar ao cidadão o que ele procura em sua delegacia, é surpreendido com a resposta: “Venho fazer um boletim de ocorrência pois acabaram de me furtar 1.000 Linden Dólares, ou seja, dinheiro virtual que tenho no meu Banco Virtual no Second Life”! Imaginem o Procon recebendo inúmeras denúncias de empresas virtuais que entregaram o produto aos avatares com defeito ou avariados. Ou uma reclamação trabalhista em face de uma Empresa Virtual instalada no Second Life! Hilário?

O fato é que, onde existem relações sociais existem conflitos de interesses, e se estas interações se dão no Second Life, é evidente que como detentor da jurisdição, no mundo real, o Estado-juiz deverá ser chamado para pacificar os litígios, pouco importando, a priori, a forma com que a partes provocam o Estado, bem como o modelo do provimento jurisdicional que este irá proferir. A pedra de toque sim, será a probatória. Mas e agora? Enfrentaremos os mesmos problemas que afrontamos com o Orkut, no que cerne a entrega de dados de indiciados ao Ministério Público? O Second Life está sob a jurisdição nacional?

Indo adiante, talvez seria o caso da auto-regulamentação do mundo virtual, uma espécie de “grande pacto virtual social” com força real, uma modernização do contrato social russeauniano5, onde todos se comprometeriam em seus termos, e qualquer infração seria interpretada como falta, punível com uma “rescisão” com culpa para o infrator, que deixaria o mundo virtual? Em caso de transgressão ou crime, quem seria punido? O espectro virtual ou a pessoa humana que o manipula? Mas, alguém pode furtar meu avatar e praticar fraudes em meu nome!

Alguns liberalistas até defendem no mundo virtual o que a história provou ser um erro: a não existência de um poder e de um Estado. Talvez, Karl Marx ficaria exultante com o atual estágio do Mundo Virtual, já que em “Dezoito Brumário”, prega que “a centralização política de que necessita a sociedade moderna só pode erguer-se sobre as ruínas do aparelho governamental, militar e burocrático…A destruição do aparelho do Estado não porá em perigo a centralização”.

Nesta hipótese, retrocederíamos em termos jurisdicionais! Voltaríamos a fase da vingança privada, onde restabeleceríamos a auto-tutela e a autocomposição? Em termos de Mundo Virtual, seria prudente incorporarmos o velho direito romano arcaico e reaviventarmos a figura do pretor, em sua versão eletrônica, onde nos comprometeríamos perante ele através do litiscontestatio, a aceitar a decisão de um árbitro, em um conflito de interesses ocorrido?

Por outro lado, excêntrica corrente contrária não deixa de visualizar comunidades de relacionamentos virtuais, como o Orkut, e agora o Second Life, como poderosos mecanismos de controle de governamental, onde a vida de milhares de pessoas e empresas estão expostas e acessíveis a poucos cliques. Salientam que o Leviatã6, de Hobbes, é cada vez mais possível com tais tecnologias. Estaríamos favorecendo voluntariamente a criação de uma “UCT” da série “24 horas”7, com dados de todas as pessoas do globo, ou até mesmo, lançando o embrião do “Departamento de Pré-Crime”, mostrado na ficção científica “Minority Report”8!

Ideologias de lado, é mais do que explícito que o Second Life também está sujeito às falhas de seu sistema de segurança e à atuação de crackers, que podem expor informações pessoais dos usuários, e nesta conjuntura, qual será a política de privacidade adequada? Em sendo o código do programa cliente livre, em licença GPL (General Public Licence) ou similar, manipulado por milhares de programadores, a inserção de um malware9, que prejudicasse usuários, poderia ser imputável à empresa proprietária do projeto?


Em sendo um serviço pago, e em tendo um usuário sofrido um golpe no Ambiente Virtual, poder-se-ia conceber a existência de uma relação de consumo e a responsabilidade judicial e subsidiaria da empresa proprietária? Embora o ambiente seja apenas o meio de interação e negociação, não devemos esquecer de salientar o que ocorreu com a jurisprudência nacional nos casos dos leilões eletrônicos, onde por vezes responsabilizou o site meio, por fraudes cometidas por usuários a outros usuários, sob o fundamento de que é preciso “selecionar os integrantes que compõem a rede” e “oferecer opção de seguro e mecanismos seguros de negociação e interação10”.

Destarte, não pretendemos esgotar o assunto acerca do Second Life, eis que inúmeras questões ainda deverão ser refletidas e regulamentadas, além de discutidas no plano fático, como por exemplo, a do usuário que deixa o Mundo com diversos bens – seriam os bens deletados, seriam apoderados por qualquer indivíduo, como nas comunidades do orkut, ou conceberíamos uma “sucessão virtual”? A discussão ambiciona se acalorar, quando o assunto for a propriedade intelectual dos criadores de componentes do Second Life, e a contrafação virtual através de CopyBots, mecanismos que permitem a cópia de qualquer coisa no mundo, bastando ao avatar do contrafator ter contato com a coisa.

Seja como for, um ponto é de claridade solar: Não estamos lidando com um simples jogo ou comunidade, mas com um mundo virtual que se relaciona e gera direitos e obrigações no mundo real, reflexos estes que deverão ser a tônica dos futuros debates sobre a interferência estatal na vida dos cidadãos digtiais.

Pedimos vênia para trazer à colação os ensinamentos do Filósofo Michel Foucault, em sua obra “Vigiar e Punir”, eis que a ânsia em regulamentar e punir infrações do Mundo Virtual pode levar a iniqüidades irreparáveis. Para o autor, o poder moderno não é mais, essencialmente, uma instância repressiva e transcendente, mas uma instância de controle, que envolve o indivíduo mais do que o domina abertamente.

Neste cenário, a consideração de que a Internet não é um mundo paralelo pode estar sendo relativizada, entretanto, não se pode, até mesmo por disposição Constitucional, dilatar a segundo plano, a atuação jurisdicional concreta, em casos envolvendo um “segundo mundo”.

Enquanto o Mundo Virtual se estrutura, um ponto primoroso deve ser observado no Second Life: a integração entre pessoas de diversas classes e posições sociais. É possível conversar com artistas, músicos e até mesmo entregar um curriculum diretamente nas mãos de grandes diretores e presidentes de multinacionais, sem ter de passar por diversos seguranças e departamentos de RH. Pelo menos por enquanto!

Neste raciocínio, talvez fosse interessante que o Congresso Nacional também migrasse para o Second Life! Assim, poderíamos contribuir diretamente com nossos representantes, sem intermediários e assessores, na aprovação de projetos de suma importância a nosso país, bem como cobrar com mais eficiência a atuação dos mesmos congressistas, reinventando, através de um “segundo mundo”, aquilo que chamamos no “velho mundo” de “democracia”.

Notas:

[1] http://secondlife.com/ e http://www.secondlifebrasil.com.br

[2] http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u20955.shtml

[3] http://www.squalidade.com.br/NomesJaK.html: John Naisbitt é um futurologista que já vendeu milhões de livros, dos quais se destaca o título Macro tendências. Nesta obra, ele prevê, entre outras, as seguintes reestruturações: passagem de uma sociedade industrial para uma economia de informação; as duas faces da atuação das empresas serão a tecnologia e a respectiva resposta humana; a passagem de uma atuação de curto prazo para o longo prazo; a redescoberta da capacidade de inovar e obter bons resultados; a maior capacidade individual para assumir responsabilidades e tomar decisões; o modelo da democracia representativa está a tornar-se obsoleto numa era de partilha de informações; as hierarquias estão a desaparecer e a dar lugar a redes de trabalho informais; as pessoas têm capacidade de tomar cada vez mais decisões sem restrições por parte da sociedade.

[4] http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u21212.shtml

Acesse www.gamingopenmarket.com/market.php?symbol=SLL para ver a cotação dos L$

[5] http://www.culturabrasil.org/rousseau.htm

[6] A questão da defesa de um Estado absoluto, forte marca em todo o corpo do Leviatã, se historicizada – e esta contextualização histórica passa principalmente pela compreensão do impacto que um clima de instabilidade política, experimentado pela sociedade inglesa da época, causara nas investigações e reflexões de Hobbes -, é atenuada diante da rica diversidade teórico-filosófica desenvolvida pelo autor sobre o homem, o Estado e a sociedade.

[7] http://seriesonline.terra.com.br/24/index.html

[8] Em um futuro onde os crimes são previstos e evitados pela polícia antes mesmo de acontecerem, um dos principais integrantes do corpo policial é acusado de que cometerá o assassinato de alguém que não faz a menor idéia de quem seja. Dirigido por Steven Spielberg (A.I.) e com Tom Cruise, Colin Farrell e Max von Sydow no elenco. Recebeu uma indicação ao Oscar.

[9] “Malware” é a designação genérica dos programas desenvolvidos com a intenção de causar danos a computadores ou usuários.

[10] http://www.conjur.com.br/static/text/37341,1

Autores

  • é analista de segurança da informação e advogado especializado em Direito Tecnológico e das Telecomunicações. Associado do Opice Blum Advogados Associados e presidente da Comissão de Propriedade Intelectual de Segurança da Informação da 21ª Subsecção da OAB-SP.

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