Súmulas cristalizadas

A jurisprudência do TST e a morte nos canaviais

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27 de março de 2007, 17h53

A assessoria de imprensa do Tribunal Superior do Trabalho está sempre a presentear-nos com “manchetes jurisprudenciais” anunciando o conteúdo de decisões que, muitas vezes, não passam da singela aplicação de súmulas daquele pretório, já cristalizadas há longos anos. O lado bom deste viés jornalístico, contudo, reside em nos fazer recordar e repensar, certas matérias tormentosas que vinham deslizando para o esquecimento desde que o manto solene de alguma súmula fechou as cortinas do palco da polêmica.

Recentemente, uma destas notícias chamou nossa atenção: “Trabalho no corte da cana não é considerado insalubre”. Não há nada de novo sob o sol, neste caso, porque a orientação jurisprudencial 173 da SBDI-1 já proclama há sete anos que não é devido o adicional de insalubridade no trabalho exposto aos raios solares. No entanto, a notícia nos chega justamente em tempos nos quais o problema dos canavieiros vem deixando todos muito aflitos.

Veja-se o registro em matéria constante do site da Agência de Notícias do Planalto[1]: “Segundo relatório da DRT, morreram cerca de 416 pessoas no ano passado no estado de São Paulo nos canaviais”. A soma desta proclamação de que não há insalubridade nos canaviais, com a notícia de que morreram mais de quatrocentos trabalhadores executando este tipo de trabalho, nos desperta intensa preocupação.

A posição do Tribunal faz gala de um positivismo implacável próprio, paradoxalmente, daquela que muitos chamam de “Justiça Social”. A OJ em questão é um primor de lógica kelseniana: “Em face da ausência de previsão legal, indevido o adicional de insalubridade ao trabalhador em atividade a céu aberto (artigo 195, CLT e NR 15 MTb, Anexo 7)”. Nesta lógica perfeita da chamada Teoria Pura do Direito, inexistem lacunas na lei porque aonde se esbarra num vazio, significa, apenas, que a ordem jurídica não deferiu aquilo que gostaríamos.

É interessante recuperar o raciocínio desenvolvido pela SBDI-1 para chegar a esta conclusão, num dos primeiros precedentes a respeito[2]. A primeira parte do silogismo nos traria algumas esperança: “A NR-15 do Ministério do Trabalho tem como insalubre a atividade sob radiações não ionizantes, as quais, segundo o item 1 do seu Anexo 7, consistem nas emissões de microondas, ultravioletas e de laser, verbis: "Para os efeitos desta norma, são radiações não ionizantes as microondas, ultravioletas e laser.

“Como é do conhecimento da cultura média, não há dúvida de que o sol emite raios ultravioletas, o que a princípio tornaria o trabalho realizado sob a sua ação atividade insalubre”. No entanto, logo em seguida, vem a contramarcha: “todavia, questão outra é, se mediante esse singelo raciocínio, é legalmente devido o adicional em questão”. O julgador aponta, então, que a norma ministerial exige que, tais radiações sejam “comprovadas através de laudo de inspeção do local de trabalho”.

E já que existe tal condição, o Tribunal extrai a seguinte conclusão: “Como se vê, ao condicionar a existência jurídica da insalubridade à inspeção e laudo, naturalmente que a norma excluiu a exposição ao sol como elemento possivelmente causador da condição insalubre: impraticável seria a medição, dadas as contínuas variações, próprias das condições meteorológicas em geral. O homem vive na natureza com as suas contingências e vive na sociedade com suas vicissitudes. Se algumas condições naturais podem ser agressivas, a adequação da roupa típica desnatura a insalubridade legal. Se se exigisse o trabalho fora das condições normais de exposição às condições climáticas, então poderíamos discutir caracterização da insalubridade. Logo se conclui que o espírito da norma não poderia incluir a radiação solar, dirigindo-se a proteção, em verdade, a outras fontes geradoras das radiações não ionizantes, cuja medição seja coerente exigir”.


Ao viver na natureza, com as suas contingências, os quatrocentos e dezesseis canavieiros falecidos, mencionados na notícia acima, pereceram por causa do ambiente de trabalho que não é agressivo em termos jurídicos, muito embora o laudo produzido naqueles autos informasse que é agressivo no mundo real. No rigor positivista, ao demais, estas mortes não seriam indenizáveis já que no figurino kelseniano, a caracterização da culpa exige a infração de uma norma. Assim, naquela lógica, já que inexiste insalubridade, não se pode falar em norma violada, logo, não se poderia falar em indenização.

Então, porque morrem os trabalhadores da cana? Num artigo com este título[3], encontramos a descrição do trabalho em questão: “Um trabalhador que corta hoje 12 toneladas de cana em média por dia de trabalho realiza as seguintes atividades no dia: Caminha 8.800 metros; Despende 366.300 golpes de podão; Carrega 12 toneladas de cana em montes de 15 k em média cada um, portanto, ele faz 800 trajetos levando 15 K nos braços por uma distância de 1,5 a 3 metros; Faz aproximadamente 36.630 flexões de perna para golpear a cana; Perde, em média 8 litros de água por dia, por realizar toda esta atividade sob sol forte do interior de São Paulo, sob os efeitos da poeira, da fuligem expelida pela cana queimada, trajando uma indumentária que o protege, da cana, mas aumenta a temperatura corporal. Com todo este detalhamento pormenorizado da atividade do corte de cana, fica fácil entendermos porque morrem os trabalhadores rurais cortadores de cana em São Paulo”.

Não se concebe que exista alguma razão para que o trabalho assim descrito não tenha encontrado albergue nas Normas Regulamentadoras 15 ou 17 do MTE. Acrescente-se, ainda, que este relatório está um pouco desatualizado, eis que, nos tempos mais recentes, outro “paper” da Fundacentro[4], aponta que “as novas variedades de cana geneticamente modificadas têm maior concentração de sacarose mas menos peso. Isto obriga o cortador a cortar mais cana para obter o peso exigido e, portanto, a trabalhar com mais esforço”. É o problema de quem percebe salário de produção por tonelada.

Tudo isto vem ocorrendo justamente no setor de atividade econômica que se mostra a “menina dos olhos” de um governo que se alardeia desenvolvimentista. Veja-se que os planos do governo federal para a cana de açúcar são majestosos[5]: “O Brasil pretende triplicar suas exportações de etanol nos próximos sete anos. Para isso, precisa de perto de US$ 13,4 bilhões para investimentos e aumentar sua produção, disse a investidores japoneses o ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Luís Carlos Guedes Pinto. Segundo o ministro, o país quer mais do que dobrar sua produção de etanol para 35 bilhões de litros. As exportações poderão chegar a 10 bilhões de litros. De acordo com ele, o Brasil prevê construir 89 novas usinas produtoras de etanol durante os próximos sete anos. Neste período, a produção de cana-de-açúcar vai subir para 627 milhões de toneladas – são 427 milhões de toneladas atualmente”

No entanto, não se menciona sequer um trocado que será investido para melhorar o ambiente de trabalho destas centenas de trabalhadores que vem morrendo anualmente nos canaviais. Nem ao menos se dá notícia de que o Ministério do Trabalho tenha planos de reconhecer este tipo de trabalho como insalubre. A assim chamada Justiça Social não socorre estes trabalhadores e o governo deixa-os esquecidos. Em que portas eles devem bater para obter suporte? Notícia recentemente publicada mostra que os empresários já percebem para onde estão caminhando[6]:

A ação do MST junto aos canavieiros já preocupa os donos de usinas e fazendeiros interessados em arrendar as terras para a cana. Há duas semanas, eles se reuniram em Presidente Prudente (SP) para discutir o "risco José Rainha". Parabéns ao José Rainha mas, numa sociedade republicana, estes empresários deveriam estar preocupados com o risco Justiça Social ou com o risco Ministério do Trabalho.

É verdade que o Ministério Público, há alguns anos vem tentando negociações entre trabalhadores e empregadores para buscar melhorias. O grande impasse, contudo, reside em que, se é preciso acabar com a remuneração por produção para diminuir as mortes, os patrões estimulam os próprios trabalhadores a se opor, deixando claro que a extinção do pagamento por produção vai implicar na diminuição da remuneração. Neste andar da carruagem, inexistindo caminhos legais para romper este círculo de ferro, não é difícil prever que os trabalhadores vão ter que buscar as melhorias através da pressão direta sobre a parte contrária. As perspectivas são sombrias.


Resta-nos, portanto, terminar este comentário, voltando ao ponto de partida: a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho. Em outros tempos, bons tempos, o olhar daquele Tribunal sobre este tipo de problema não era tão governado pelo positivismo dogmático, como se vê da seguinte ementa[7]: “Fato gerador do direito à percepção do adicional de insalubridade é o trabalho prestado em ambiente nocivo à saúde do prestador de serviços. O simples fato de a atividade não constar do quadro oficial de que cogita o artigo 196 consolidado, não é de molde a excluir o direito ao adicional, uma vez constatada a insalubridade. Sobre o aspecto meramente formal – inclusão no quadro – prevalecem os princípios da razoabilidade e da realidade” (TST-1ª Turma RR 6.177/94, Relator ,ministro Marco Aurélio Mendes de Faria Melo).

Ao dar um passo para trás em direção a este passado jurisprudencial luminoso, a Justiça Social estaria dando um passo adiante em direção a uma sociedade mais justa e solidária. A uma sociedade, na qual o Poder Judiciário seja o fiador da garantia de que os direitos do trabalhador não fiquem contidos em kafkianas prisões feitas de parágrafos, alíneas e lacunas, mas vivam concretamente na realidade das relações de trabalho.

Retornando á jurisprudência deste passado não tão distante, o TST estaria caminhando para os braços do STF, em cujo território, cada vez se mostra mais firme o repúdio aos excessos do positivismo dogmático. Esta tendência na interpretação da lei mostra-se candente em recente voto do Ministro Eros Grau[8]:

“Permito-me, ademais, insistir em que ao interpretarmos/aplicarmos o direito — porque aí não há dois momentos distintos, mas uma só operação — ao praticarmos essa única operação, isto é, ao interpretarmos/aplicarmos o direito não nos exercitamos no mundo das abstrações, porém trabalhamos com a materialidade mais substancial da realidade. Decidimos não sobre teses, teorias ou doutrinas, mas situações do mundo da vida. Não estamos aqui para prestar contas a Montesquieu ou a Kelsen, porém para vivificarmos o ordenamento, todo ele. Por isso o tomamos na sua totalidade. Não somos meros leitores de seus textos — para o que nos bastaria a alfabetização —- mas magistrados que produzem normas, tecendo e recompondo o próprio ordenamento”.

Não é possível prever quantos trabalhadores da cana vão ter que morrer até que o TST cancele sua OJ 173 ou o MTE baixe atos regulamentares reconhecendo que este tipo de trabalho é mais do que insalubre, chegando a ter caráter de penosidade. Mantendo-se esta média de quatrocentas vítimas anuais (no Estado de São Paulo) podemos prever que ainda vamos perder muitas vidas, ainda, antes que os princípios da razoabilidade e da realidade voltem a reinar neste território tão fatídico.


[1] http://www.radioagencianp.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1461&Itemid=43

[2] [2](processo TST – E-RR 467419/1998, Relator Ministro Vantuil Abdala)

[3] Francisco Alves “Por que morrem os cortadores de cana?” in www.pastoraldomigrante.org.br

[4] http://www.fundacentro.gov.br/CTN/teses_pdf/Relatório%20final%202007.pdf

[5] http://www.investimentos.sp.gov.br/sis/lenoticia.php?id=1174&c=1

[6] http://br.noticias.yahoo.com/s/25022007/25/manchetes-expansao-lavouras-agravar-conflitos-fundiarios.html

[7] publicada in “Dicionário de Decisões Trabalhistas” de B.C. Bonfim e S. dos Santos, 21ª edição pág. 471

[8] http://www.stf.gov.br/imprensa/pdf/rcl3034.pdf (Agr. Reg. na reclamação 3.034-2, Paraíba)

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