Hora de desequilibrar

Entrevista: José Renato Nalini, desembargador do TJ-SP

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25 de março de 2007, 0h01

José Renato Nalini - por SpaccaSpacca" data-GUID="jose_renato_nalini.jpeg">Por que será que juízes tão eruditos, brilhantes e tecnicamente tão bem preparados, como são os brasileiros, compõem um sistema Judiciário tão lerdo e ineficiente, como este que se conhece no Brasil?

Entre as muitas respostas possíveis, o desembargador José Renato Nalini, do Tribunal de Justiça de São Paulo destaca duas. Em primeiro lugar, porque juízes, desembargadores e ministros continuam apegados aos formalismos e às questões processuais e desconectados da realidade. Em segundo lugar, porque um bom juiz não necessariamente é um bom administrador e o Judiciário brasileiro segue sendo mal administrado por bons juízes que nada sabem de gerenciamento.

Falta criatividade e ousadia para relativizar conceitos, como o da segurança jurídica, diz o desembargador em entrevista à Consultor Jurídico. “Estamos tão lentos que chegou a hora de desequilibrar. Para resolver o problema é preciso ter a coragem de deixar um pouco de lado a segurança jurídica”.

Por falar em erudição, Nalini acredita que não é apenas com conhecimento acadêmico que se faz um bom juiz. “O concurso para a escolha de novos juízes só avalia a capacidade de memorização do candidato, mas não avalia capacidade de trabalho, ética, vocação, talento, humildade, sensibilidade, humanismo, generosidade, bondade e compaixão dos candidatos”.

Segundo Nalini, o Judiciário peca por excesso de formalismo técnico de seus membros, de um lado, e por falta de capacidade gerencial, de outro. E da mesma forma que sugere novos métodos de seleção de juízes, ele recomenda a terceirização do recrutamento dos administradores dos tribunais: “Porque não confiar a contratação do administrador do tribunal a um headhunter como fazem as boas empresas do setor privado?”.

Com 61 anos de idade, 31 dos quais dedicados à magistratura, Nalini está convencido de que se insistir na sua disfuncionalidade, o Judiciário acabará sendo substituído, como já indica o surgimento de câmaras de conciliação e tribunais de arbitragem. “Como está o Judiciário só funciona em proveito próprio e para assegurar a irresponsabilidade do Estado, que é seu principal cliente”.

O desembargador José Renato Nalini começou como promotor de Justiça por três anos e desde 1976 atua como juiz. Ele presidiu o Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo por dois anos, até que houve a fusão com o Tribunal de Justiça. É mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo.

Participaram da entrevista os jornalistas Maurício Cardoso e Rodrigo Haidar.

Leia a entrevista

ConJur — O presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Celso Limongi, disse, recentemente, que o tribunal não consegue cumprir a sua missão de distribuir justiça e de dar uma resposta satisfatória à sociedade. Por que não funciona?

Nalini — Porque não sabemos administrar. A maior preocupação do tribunal é com a técnica, com a doutrina. O processo está cada vez mais sofisticado. Por não ter uma autonomia científica por muito tempo, a ciência processual cresceu, ocupou o seu espaço e expeliu todas as demais. O Direito substancial praticamente deixou de existir, porque o que interessa é o processo.

ConJur — Quer dizer que os juízes e desembargadores estão deixando o conflito de lado para se apegar às questões processuais?

Nalini — Há um exagero no ritualismo e no procedimentalismo, adotando a dogmática positivista mais ortodoxa. Quando se institucionaliza a questão, perde-se o conflito de vista. Apenas as teses são discutidas e o caso concreto fica esquecido. Uma grande parcela dos processos é resolvida perifericamente. O problema continua a existir e o juiz sente-se tranqüilo porque deu uma resposta técnica. Ele pensa: “não sou obrigado a ser tutor de capazes. Ele é maior, escolheu o advogado que quis, exerceu o direito de ação, o acesso à Justiça foi assegurado, observou-se o contraditório. Agora, se o advogado que ele escolheu é incompetente, no sentido vulgar, não é problema meu”.

ConJur — O problema não está na formação desses profissionais?

Nalini — O Brasil tem 1.038 escolas de Direito. Isso significa 30 mil bacharéis a cada seis meses, expelidos como pastéis de feira. O advogado não é treinado para pacificar ou para prevenir. Ele quer entrar em juízo. Mais de um milhão de advogados são credenciados na Justiça. Outros milhões de bacharéis tentam aprovação no Exame de Ordem. Isso faz com que a magistratura, o Ministério Público, a Defensoria Pública, a procuradoria, todas essas sejam opções de sobrevivência. Há um excesso de candidatos.

ConJur — É assim também na escolha dos juízes?

Nalini — É assim que se produz a magistratura. De seis mil candidatos, cem são aprovados. Esses já entram se achando muito especiais. Se ele não tem ainda esse sentimento, a própria magistratura começa a enxergá-lo assim: “agora, vocês têm a sublime missão de fazer do homem, mulher, do quadrado, redondo, do preto, branco. Você está provido da potencialidade de mudar a realidade que só Deus tem”. Há um sistema perverso, que replica a idéia de que o Judiciário existe para atender o juiz. Deixamos de lado a capacidade de trabalho, ética, vocação, talento, humildade, sensibilidade, humanismo, generosidade, bondade e compaixão. Verificamos apenas se a pessoa decorou tudo.


ConJur — Como é possível escolher com base nessas características e não no conhecimento acadêmico?

Nalini — Através de uma escola. O Instituto Rio Branco, do Itamaraty, tem um modelo eficiente de recrutamento. Os que pretendem ingressar na diplomacia estudam por dois anos no Instituto, para que a escolha se dê pela análise de seu comportamento. Esse modelo seria ideal. Na época que eu fui assessor do presidente no TJ paulista, tivemos um concurso nesses moldes, mas que não foi para frente. Durante seis meses, o candidato aprovado passava por uma avaliação e ganhava 70% do salário de um juiz substituto.

ConJur — Há um período de “experiência” para o candidato aprovado para a magistratura, não?

Nalini — O período de vitaliciamento é uma formalidade. A pessoa só não continua se for louca ou se tiver cometido um crime. O concurso é caro, leva um tempo tremendo e um desembargador fica afastado das suas funções para preparar as questões. Eles não querem admitir que, depois de tudo isso, recrutaram mal. Por isso, dão um jeito de absorver o ingressante. É um método terrível de concurso. Quando as grandes empresas precisam de um executivo, contratam uma empresa especializada, um headhunter. Em qualquer um dos Poderes da República, ele é recrutado por um grupo aleatório e empírico. Muitas vezes, as pessoas não têm a menor noção de seleção de pessoas.

ConJur — Como são escolhidos os examinadores?

Nalini — O examinador é o desembargador mais antigo. Quando chega a sua vez, tenha ou não talento ou vontade, você vai aceitar porque fica quase um ano afastado do processo. Jamais uma grande empresa vai dizer para os mais antigos recrutarem um executivo só porque são mais antigos. Não deve ser assim. Pressupõe-se que os candidatos já conheçam o Direito. O que eles precisam aprender é a ser juiz em um país de miseráveis; a entender o que é responsabilidade social e qual é o papel da magistratura. O Direito é um instrumento de preservação do status quo ou um fator de redenção? Nada disso se questiona nos concursos.

ConJur — Teria como o Tribunal de Justiça contratar um headhunter?

Nalini — O Rio Grande do Sul já fez um concurso assim. Eles sempre foram pioneiros, essas novidades sempre nascem lá. Não há nenhuma heresia em terceirizar a escolha dos juízes. A administração dos tribunais deveria ser terceirizada. Juiz não sabe ser administrador.

ConJur — Existe espaço legal para o tribunal contratar um administrador?

Nalini — Sim. Mas também existe falta de coragem, falta de ousadia. Há um medo de inovar e receio de uma revolução.

ConJur — O que o administrador pode fazer que o juiz presidente não pode?

Nalini — A nossa estrutura é anacrônica. Não é mais preciso usar papel e requerimento para fiscalizar freqüência, assiduidade, produtividade, acréscimo de benefício. É absurdo. Será que o pessoal não percebe que há empresas com frota de carros e que têm uma administração mais racional dos veículos do que a nossa? No setor de compras também. Com uma gestão eficiente, perceberíamos que não falta pessoal. Iria sobrar gente. Os funcionários seriam mais motivados desempenhando atividades mais úteis para a sociedade.

ConJur — O Tribunal poderia funcionar como uma empresa?

Nalini — Deveria. Hoje, o discurso é falta de dinheiro e funcionário. Não é bem assim. É um absurdo que, com tantas leis obrigando o processo eletrônico virtual, ainda haja o monopólio dos oficiais de Justiça nas comunicações do processo. Uma só vara tem de oito a dez oficiais. Já temos e-mail, telefone e fax mas ainda temos de usar estafetas para entregar mensagens.

ConJur — Hoje é possível fazer intimação por e-mail?

José Renato Nalini — A Lei 11.419, que entrou em vigor no dia 20 de março, ordena.

ConJur — Há resistência à modernização?

José Renato Nalini — Sim. Quando implantei o sistema de Habeas Corpus por e-mail no extinto Tribunal de Alçada Criminal, o primeiro balde de água fria veio do Ministério Público. O Decreto-Lei 552, de abril de 1969, impõe a necessidade de remessa dos autos de Habeas Corpus para o MP. Essa é uma norma que veio logo depois do Ato Institucional 5. É da época da Ditadura, em que se desconfiava do Judiciário. Conversei com o procurador-geral, expliquei que teríamos o tribunal mais rápido do mundo na tutela da liberdade. Mas não adiantou. A alegação foi que a medida ia desativar a Procuradoria de Habeas Corpus. Há ainda uma questão cultural. Quando vi que não chegavam pedidos de HC por e-mail fui até o protocolo do tribunal. Tinha uma fila enorme. Expliquei para os advogados que o pedido podia ser feito por e-mail. Eles disseram que preferiam o papel, porque era mais confiável.


ConJur — Falta dinheiro no Judiciário?

Nalini — Não. O problema é gestão. Quando presidi o Tribunal de Alçada Criminal havia 1,3 mil funcionários. Quando saí tinha 900, sem prejuízo do serviço. Houve muita reclamação. Mesmo assim, cortei uma porção de gastos. Na unificação dos tribunais, toda a inovação e o pioneirismo foram neutralizados. Fomos absorvidos pelo anacronismo. O tribunal precisa se descentralizar, conforme prevê a Constituição Federal. Não tem sentido ter 360 caciques reunidos em São Paulo.

ConJur — Como assim?

Nalini — Temos de levar o tribunal para as grandes regiões do estado. Se fizermos um levantamento, vamos ver que muitos desembargadores não moram na capital. Por que não ter câmaras do TJ em São José do Rio Preto, por exemplo? O salão do júri do fórum é usado poucas vezes por ano e pode ser usado para abrigar uma câmara. A descentralização está prevista no parágrafo 6º, artigo 125, da Constituição Federal. Mas ninguém quer fazer isso.

ConJur — Por quê?

Nalini — Falta coragem. Argumentam que não há número suficiente de processo. Não é verdade. Não é necessário reunir 100 juízes em Campinas. Basta colocar dez em Campinas, dez em Ribeirão Preto, dez em São José do Rio Preto, dez em Santos. Com isso, acaba a remessa física do processo. O advogado que mora no interior não precisa vir até aqui para fazer sustentação oral. O presidente do Tribunal de Justiça não tem condições de administrar 360 desembargadores, mais os 2 mil substitutos de segundo grau. Não falta dinheiro, não falta pessoa. Falta criatividade e ousadia para relativizar alguns dogmas que já não têm razão de ser. A segurança jurídica, por exemplo. O mundo está cada vez mais incerto. Os juízes têm de ter coragem de serem funcionais e oportunos. Quando forem invocados, dar respostas rápidas. Muitos dizem que a rapidez sacrifica a segurança jurídica. Estamos tão lentos que agora é a hora de desequilibrar. Deixar um pouco a segurança para tentar resolver o problema.

ConJur — Não tem nada mais inseguro do que essa ineficiência.

Nalini — É um suplício para a pessoa. Cria um desalento e um descrédito. No chamado mundo civilizado, você fala “Eu vou te levar à Justiça”. Aqui, o agressor fala “Vai para a Justiça”. Isso é sintomático, porque as pessoas sabem que não funciona. O Judiciário tem um corpo seleto. Os juízes são eruditos e preparados tecnicamente, mas o sistema não funciona. É preciso que esse corpo funcione e assuma uma responsabilidade para dizer “eu posso mudar a realidade, eu posso fazer Justiça”. O que é muito diferente de apenas aplicar a lei processual e ficar com a consciência tranqüila.

ConJur — Realmente é um potencial imenso.

Nalini — Existem alguns protagonismos individuais, mas o Judiciário tem fobia de que o juiz seja atípico. O segredo para sobreviver na magistratura é ficar escondido, não se sobressair. O discurso oficial é de que os juízes precisam ser criativos, transformadores da realidade, que faça Justiça e concretize as mensagens normativas da Constituição. Na prática, é diferente. Houve um tempo em São Paulo que se um juiz se destacasse muito no Juizado Especial, era direcionado para julgar em uma área que não tinha intimidade. Por exemplo, um juiz que gosta de informática, poderia ser chamado para atuar na área criminal.

ConJur — Não é preciso valorizar a primeira instância?

Nalini — A solução é insistir na formação institucional. A escola deve priorizar o conteúdo institucional da magistratura. O juiz precisa ter noção do que significa a sua decisão no caso concreto. Ele não é alguém que está completamente desvinculado do que faz. Precisa refletir sobre ser juiz em um estado periférico e iníquo. Entender o que é ter a maior carga tributária do mundo, que é uma economia que não cresce.

ConJur — A magistratura se preocupa com essa necessidade?

Nalini — Não. Ela se preocupa com o cumprimento da obrigação formal. Quer saber o número de sentenças que o juiz proferiu, se ele não falta e se não tem muitos desvios. Para sair da magistratura é preciso ser péssimo de serviço e de caráter também. Se um juiz é muito trabalhador e tem falhas no comportamento ele fica: “vamos salvá-lo porque ele trabalha direitinho”. Se é ruim no trabalho, mas tem bom caráter: “vamos salvá-lo porque ele é bonzinho”. A magistratura não se preocupa com o seu significado, com o seu sentido ou com a sua função social. O Judiciário vai ser substituído se continuar nessa disfuncionalidade, nesse distanciamento das aspirações do povo e nesse descompromisso com a Justiça. A arbitragem e a medição estão aí. Hoje, o Judiciário assegura a irresponsabilidade do Estado, que é o seu maior cliente. É uma Justiça para uso próprio.


ConJur — Distribuir Justiça é outra coisa.

Nalini — Se desse respostas à sociedade, o Judiciário seria o propulsor de outra prática social e estimularia as pessoas a pensar melhor antes de errar. E a resposta tem de ser rápida.

ConJur — Desembargador tem de se aposentar aos 70 anos?

José Renato Nalini — Não. Os 70 anos foram estabelecidos como limite em uma época em que a longevidade do brasileiro era muito reduzida. Hoje, vivemos até 90 anos. Aos 70 anos a pessoa está mais experiente e madura. Se estiver lúcida e bem de saúde, por que impedi-la de atuar? O professor Miguel Reale produziu até os 95 anos, e só parou quando morreu. Ele ficou 25 anos recebendo sem poder trabalhar. É insensato fazer isso em um país que tem tantos problemas como o Brasil. A aposentadoria compulsória é trágica para a economia e para a previdência social. Nos Estados Unidos o juiz é vitalício. Um dos problemas da Suprema Corte é convencer alguém a se aposentar. Outro ponto da discussão é a vontade dos jovens juízes de chegar ao Tribunal de Justiça. Isso torna a carreira mais cruel do que ela já é. O pessoal de baixo fica empurrando os da frente, como se o cidadão de 68 anos só estivesse ocupando espaço. É preciso repensar o plano de carreira.

ConJur — Para isso, só mudando a Constituição, não é?

Nalini — A juventude não quer essa mudança. No entanto, acena-se para a possível eliminação ou ao menos a extensão da compulsória. O presidente Lula nomeou seis ministros para o Supremo Tribunal Federal. Ou seja, já tem maioria absoluta se quiser acabar com a compulsória. Depois dos 70 anos, se quiser continuar na carreira, a pessoa deve passar por uma avaliação física, psicológica e de produtividade. O fato de o jovem querer chegar logo ao ápice da carreira não deveria ser motivo para eliminar aquele que tem experiência e que pode produzir.

ConJur — O Conselho Nacional de Justiça foi muito criticado por admitir exceções que ultrapassam o teto salarial da magistratura. O senhor concorda com essa decisão?

Nalini — A questão do teto é hipócrita. O salário não suscitaria tanta discussão se o Judiciário respondesse a tempo quando é chamado para se manifestar. O que incomoda a população é a prestação de um serviço público lento, imprevisível, hermético, às vezes, prepotente. Se o juiz realmente fizesse aquilo que se espera dele, ninguém reclamaria de pagar bem a ele.

ConJur — Se há normas que prevêem que o salário não pode passar de R$ 24,5 mil, por que não cumprir?

Nalini — Não está escrito na lei. A interpretação é a vulnerabilidade ou a potencialidade do Direito. Existe a norma e existe a leitura da norma. Existe a Constituição e existe a concretização da Constituição. Vivemos em um federalismo assimétrico. Ou se contempla a situação local, ou padroniza-se tudo. Por que um juiz substituto federal começa ganhando mais do que um desembargador de São Paulo, que é alguém que tem trinta anos de carreira? Nosso Judiciário é muito sofisticado para o país pobre que temos. São cinco Justiças, entre elas a trabalhista, que não precisaria existir. O ideal seria um Poder Judiciário Nacional.

ConJur — Por que a Justiça do Trabalho não precisaria existir?

Nalini — Estamos em um estágio em que emprego não existe. A população sobrevive na informalidade, na luta. Trabalho formal é praticamente uma loteria. Temos que pensar quanto custa a Justiça do Trabalho e o que ela significa para o país. Na Justiça do Trabalho, o juiz já começa ganhando quase R$ 20 mil.

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