Impagáveis precatórios

Precatórios: calote no passado e insegura jurídica no futuro

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20 de março de 2007, 14h02

O Brasil está prestes a se tornar o único país do mundo onde o poder público somente precisará cumprir as leis e ordens judiciais de pagamento anualmente até 3% das despesas líquidas para os estados e 1,5% para as prefeituras. O que exceder ficará indefinidamente acumulado para os exercícios seguintes, dentro desses limites, sem prazo final para pagamento. Somente para o estoque de precatórios atual, ou seja, sem entrada de nenhum outro débito, a prefeitura de São Paulo levaria mais de 45 anos para solução do problema e o estado do Espírito Santo, acima de 140 anos.

Seria a mesma coisa que aprovar uma lei limitando o pagamento de dívidas judiciais para as pessoas físicas a 5% de seu salário mensal: um enorme estímulo para atrasos nos pagamentos de aluguel, cartão de crédito, cheque especial, etc., pois a execução estaria sempre dentro deste confortável limite.

É o confisco, proibido na Constituição, um verdadeiro ponto G do calote. Como se isto não bastasse, 70% destes percentuais seriam utilizados para leilões reversos, ou seja, o pobre do credor judicial que oferecesse o maior desconto receberia primeiro. Querem acabar com a ordem cronológica de pagamentos.

Esta história lembra a figura antiga do concordatário de má fé, que recomprava “por fora” seus débitos, com deságio, para levantar sua concordata judicial. Mais uma vez, a torpeza do calote seria premiada. Abrindo-se um parêntese, na outra ponta, ou seja, cobrança de créditos a seu favor, o Estado já se beneficia de multas por atraso de um dia, penhora online de contas bancárias, exigências de certidões e agora quer ainda penhorar bens e ativos dos supostos devedores sem qualquer interveniencia do Poder Judiciário.

Voltando a esta possível consagração do calote judicial público, previsto na redação original da PEC 12, isto poderá comprometer o “maior plano de aceleração de crescimento” jamais visto neste país, o PAC. Vejamos por quê.

Os estados e municípios (a União é razoável pagadora) praticam há décadas a inadimplência nas ordens de pagamento assinadas pelo Poder Judiciário, os chamados precatórios, documentos finais de longos processos onde o Estado foi perdedor.

O STF levantou um estoque acumulado de R$ 64 bilhões, mas os credores entendem que pode ser até o dobro, por falta de atualização, juros ou mesmo descontrole. Admitamos R$ 100 bilhões.

Duas moratórias extremamente favoráveis aos devedores já foram introduzidas na Constituição, em 1988 (oito anos) e 2000 (dez anos), com resultados pífios. A maioria dos devedores continua inadimplente e as sanções previstas funcionam mal: o seqüestro de rendas leva anos e raramente é efetivado e o STF jamais puniu um político por crime de responsabilidade.

Os devedores públicos crônicos insistem no mito das “dívidas impagáveis”, mas recentes estudos econômicos indicam que somente a cobrança efetiva de parte da dívida ativa (a União tem R$ 600 bilhões de créditos, o estado de São Paulo, acima de R$ 30 bilhões, e a prefeitura de São Paulo, R$ 29,4 bilhões) seria suficiente para pagamento dos precatórios.

Fica claro, até aqui, que o calote do passado pode ser renovado e consolidado, mas e o futuro? A situação será ainda pior. Imaginemos obras de infraestrutura, portos, estradas, usinas de energia, saneamento, sob o regime de Parcerias Público Privadas, as PPPs.

Após investimentos de bilhões, os empresários trabalhariam e aguardariam seu retorno contratual e, em caso de desequilíbrio financeiro, o poder público diretamente, ou por meio de autarquias, os compensaria por meio de fundos organizados para este fim, “de natureza privada e fora do regime de precatórios”.

Tais fundos são obscenamente inconstitucionais e imorais pois, se existem recursos e ativos para garantir possíveis, futuros e eventuais credores, por que não pagar os credores judiciais existentes, conforme ordens do Poder Judiciário?

Desde o direito romano, isto constitui fraude a credores, ou seja, o desvio de bens para garantia de novos credores, em detrimento de antigos. Querem criar credores de quinta e primeira classe.

Isto posto, sem os “fundos garantidores”, que certamente serão legitimamente atacados pelos atuais credores judiciais, restaria aos investidores em PPPs (“todos são iguais perante a lei”) entrar em juízo e, após anos no calvário processual, receberiam finalmente o seu precatório.

Hipoteticamente, digamos que um governador de tendência “bolivariana” decida rescindir contratos ou desapropriar ações de empresas concessionárias de rodovias, saneamento, bancos, jornais, televisões, fábricas, universidades particulares.

Pela redação original da PEC 12, o problema da indenização estaria resolvido: após anos no Judiciário, os proprietários poderiam optar entre o leilão judicial reverso ou aguardar na fila dos 30% de 3% ou 1,5%, sem qualquer prazo para pagamento.

Qual empresa, que investidores terão a ousadia de investir no PAC sob este regime insano que se pretende introduzir na Constituição? Tudo isto sem falar nos milhões de pequenos credores alimentares, sem alternativas e poder de reação. Estes estão morrendo aos milhares sem receber seus créditos judiciais. Crime contra os direitos humanos.

Ainda há tempo para correção desta Proposta, que, sim, tem o mérito de ter tirado o esqueleto do armário, mas a sociedade civil e o Congresso Nacional não podem permitir a concretização desta aventura antidemocrática, que não resiste aos testes mínimos de aritmética, moral e Direito.

Os credores judiciais e seus advogados estão dispostos a dialogar em bases realistas e práticas, com base em números e estudos econômicos, respeitando-se os princípios constitucionais e as decisões do Poder Judiciário.

Já existe uma proposta alternativa de redação àquela original da PEC 12, sugerindo a criação de Sociedades de Propósito Específico (SPE), administradas por credores, tribunais e instituições financeiras, que fariam a cobrança da dívida ativa, venderiam bens ociosos do Estado e pagariam os precatórios, com respeito à ordem cronológica, trânsito em julgado e outras cláusulas pétreas da Constituição.

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