Perseguição política

Grupo do MP atua como braço judicial de partidos, diz Gilmar Mendes

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18 de março de 2007, 13h32

O ministro Gilmar Mendes do Supremo Tribunal Federal retoma as críticas ao uso político das ações de improbidade administrativa por membros do Ministério Público, em entrevista publicada neste domingo em O Estado de S. Paulo. De acordo com o ministro, há um grupo de integrantes do MP que atua como braço judicial de partidos políticos através da proposição de ações de improbidade administrativa. “Esse tipo de prática é um desserviço que partidos políticos e seus simpatizantes prestam ao Ministério Público”.

Quando questionado sobre a freqüência desse tipo de prática, Gilmar Mendes assegura que é muito maior do que se imagina. Segundo ele, existe algo organizado, restrito a um grupo de integrantes do Ministério Público, e não a toda instituição. “A corregedoria tem de dar resposta e punir os abusos notórios em defesa da própria instituição”, cobra o ministro.

Gilmar Mendes expõe a sua crítica em relação à proposição desse tipo de ação, que entende ser por “encomenda”, porque diz que a atuação do Supremo Tribunal Federal tem de contribuir com uma cultura de respeito ás garantias básicas do Estado de Direito. E reforça que a crítica, em muitos casos analisados pela corte, não é só sua, mas da corte.

Leia a íntegra da entrevista publicada na edição deste domingo (18/3) em O Estado de S. Paulo:

‘Há ações de improbidade de encomenda e com fins partidários’

Rui Nogueira

Gilmar Ferreira Mendes, de 51 anos, vice-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), não tem dúvida de que o País enfrenta um problema na aplicação da Lei de Improbidade. Em síntese, diz que há muitas ações “feitas de encomenda”, além de denúncias que sofrem pura e simplesmente de um mal jurídico que ele chama de “inépcia absoluta”.

Na visão do ministro, a embocadura político-partidária de procuradores que durante muito tempo se especializaram em alvejar integrantes do primeiro e segundo escalões do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) banalizou o uso da Lei de Improbidade Administrativa, aprovada em 1992. Essas ações estão hoje no centro de um julgamento no Supremo, sem data prevista para o término, mas com 7 dos 11 votos já proferidos.

O STF está julgando o caso do embaixador Ronaldo Sardenberg, ex-ministro de Ciência e Tecnologia (1999-2002) e atual presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), acusado pelo Ministério Público de improbidade por ter usado um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) para viajar em férias a Fernando de Noronha (PE). Sardenberg quer anular a ação, sob o argumento de que ela só poderia ter sido aberta no Supremo, não na primeira instância – seis votos da corte concordam com a defesa. O ex-ministro alega que manteve direito a foro privilegiado porque o ato foi praticado quando estava no governo.

Entidades de juízes, dos membros do Ministério Público (Conamp) e dos procuradores da República (ANPR) dizem que a vitória de Sardenberg vai invalidar cerca de 10 mil processos contra políticos e outros agentes públicos processados sob acusação de corrupção e desvio de dinheiro. Para o ministro Gilmar Mendes, o julgamento do Supremo sobre o caso Sardenberg não extingue as ações de improbidade administrativa. “Pode, isso sim, botar ordem nas coisas”, afirmou.

Na opinião dele, transformar faltas relevantes e graves do ponto de vista moral e administrativo em crimes de improbidade “é uma apropriação de instituições para fins político-partidários”. Na entrevista ao Estado, ele chegou a citar o caso do processo em que os procuradores pedem que o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan (1995-2002) “devolva milhões” ao erário por ter autorizado pagamentos a correntistas de bancos que haviam sofrido intervenção a partir de 1995, em operação ligada ao Proer, o Programa de Reestruturação do Setor Financeiro.

“O ministro (Malan) agiu como agente do Estado”, diz Mendes, que não deixa de considerar o Ministério Público uma instituição “relevantíssima e indispensável”. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Quando o sr. fala em “inépcia” nas denúncias oferecidas por alguns procuradores, a que tipo de denúncia está se referindo?

O Artigo 41 do Código do Processo Penal é muito preciso ao enunciar os requisitos para que alguém seja denunciado. É preciso expor o fato supostamente criminoso, qualificar o acusado e sua responsabilidade. Prevê ainda que a denúncia será rejeitada se, entre outros motivos, o fato narrado não constituir crime. Não raro, denúncias são apresentadas sobre fatos que podem ser relevantes e graves do ponto de vista moral e administrativo, mas que não configuram crimes. Outras vezes, não se consegue imputar qualquer nexo de responsabilidade entre o autor e o suposto fato criminoso. No Estado de Direito não existem soberanos. Todos, felizmente, estão submetidos às regras previamente fixadas, sejam eles juízes, policiais ou membros do Ministério Público. É provável que parte da opinião pública tenha dificuldade em entender esse complexo mecanismo. O Estado acusador não pode, porém, desconhecer as regras e oferecer denúncia inconsistente, precipitada ou sem prova, pois ela será fatalmente rejeitada.

Pode dar um exemplo que retrate a natureza desse tipo de erro?

O caso Collor (1990-1992) tornou-se emblemático. O STF não identificou em toda a denúncia oferecida pelo Ministério Público o ato de ofício que comporia o conceito legal de corrupção passiva praticada pelo então presidente.

Alguns procuradores alegam que o sr. estaria combatendo as ações contra autoridades por improbidade administrativa.

Em verdade, já em 1998, em artigo doutrinário, suscitei problemas com a aplicação da ação de improbidade em relação a agentes políticos, tendo em vista o regime de responsabilidade a que estão sujeitos. É fácil ver essa questão se se considera a situação do presidente da República. Segundo a Constituição, ele somente pode ser processado criminalmente pelo STF após a licença concedida por dois terços da Câmara. O mesmo ocorre no crime de responsabilidade, quando deverá ser processado pelo Senado, após licença outorgada pela Câmara. Porém, a subsistir a tese sustentada por alguns, o presidente poderia ser afastado também no caso de ação de improbidade oferecida por um promotor de primeiro grau, após decisão cautelar de um juiz substituto. Será isso que a Constituição autoriza? Não preciso me embrenhar na discussão política. É fácil ver também que essa concepção de uso universal da ação de improbidade permite a utilização dessas ações para fins político-partidários. Temos muitos exemplos de instauração de inquéritos civis e de ações de improbidade a pedido de determinados parlamentares. Era um tipo de ação “encomendada”, na qual o procurador atuava como braço judicial de partido político. A motivação era aparecer na mídia, depois, algo assim: “Fulano de tal, que está sendo processado por improbidade…” Na Advocacia-Geral da União, tive oportunidade de denunciar e questionar o mau uso da ação de improbidade. E, claro, como era de se esperar, também fui alvo desse tipo de ação pelos motivos mais ridículos, como, por exemplo, por me negar a entregar a um procurador (Aldenor Moreira) uma lista com nomes e endereços dos ocupantes de cargos em comissão na AGU.

Por que o procurador Luiz Francisco de Souza abriu uma ação de improbidade contra o sr., acusando-o de enriquecimento ilícito?

Infelizmente, alguns membros do Ministério Público se tornaram os mais eminentes símbolos negativos de uma instituição importantíssima do modelo constitucional de 1988. Imaginavam-se a serviço de uma grande causa partidária. As estatísticas mostram cabalmente que se tratavam de ações orquestradas. Isso não tem nada a ver com a atividade institucional do Ministério Público, que é relevantíssima e indispensável. Esse tipo de prática é um desserviço que partidos políticos e seus simpatizantes prestam ao Ministério Público. Evidentemente, pela minha atuação na AGU, pelas críticas que sempre fiz a esse tipo de conduta, não poderia deixar de ser vítima de “ações encomendadas”. Nada proíbe que eu dê aulas em um instituto de Direito que ajudei a organizar.

Além do seu, há mais casos recentes emblemáticos?

Também no governo FHC, os então ministros Martus Tavares (Planejamento) e Pratini de Moraes (Agricultura) autorizaram a contratação de fiscais sanitários em caráter emergencial por causa do surto de aftosa. A medida era fundamental para assegurar a continuidade da exportação de carne para a Europa. Os dois foram processados por improbidade administrativa. O ato poderia até ser questionado em eventual ação civil pública, mas improbidade?! Tem-se um notório abuso. A ação foi julgada improcedente, após alguns anos.

Mas isso é tão freqüente, a ponto de configurar ação política?

Sim, é freqüente. Muito mais do que se imagina. Repito: há algo organizado, ainda que esse tipo de conduta seja imputável não ao Ministério Público enquanto instituição, mas a um dado grupo. É uma faceta do “aparelhamento”, apropriação de instituições para fins político-partidários. Não é admissível que um servidor do Estado use a função para fazer perseguição política ou de outra índole. A corregedoria tem de dar resposta e punir os abusos notórios em defesa da própria instituição. Também as representações criminais que se fazem contra os autores desse abuso não podem redundar em arquivamento sistemático.

Mas o Supremo, última instância para repor a verdade jurídica, digamos, não existe para isso mesmo?

Esse é o difícil papel de quem decide em última instância. Acredito que o Supremo não tem falhado na sua missão de aplicação adequada dos poderes que a Constituição lhe conferiu. A formulação de denúncias inconsistentes e a aceitação dessas denúncias pelas instâncias iniciais tornam a sua responsabilidade política ainda maior. Não raras vezes o Supremo é apontado por órgãos da mídia como aquele que impediu a punição devida. Em verdade, ele está apenas contribuindo para uma adequada evolução do nosso processo civilizatório. Esquece-se de que estamos em um Estado de Direito e não em um “Estado de força” ou “Estado do grito mais alto”.

O papel do STF não é entendido, parece que reforça injustiças?

A superficialidade das críticas é absurda. Recentemente, uma procuradora (Ana Lúcia Amaral) que atuou em um desses processos rumorosos criticava uma decisão do STF, dizendo que ela contrariava decisões de dois outros tribunais. Era uma situação, dizia a procuradora, de duas opiniões contra uma. Isso é uma teoria futebolística aplicada ao direito.

Por que o sr. se expõe nessa crítica ao Ministério Público?

O STF tem uma missão institucional que não se exaure na aplicação formal do direito às situações que lhe são oferecidas. É preciso que sua atuação contribua para a criação de uma cultura de respeito às garantias básicas do Estado de Direito. Daí dirigir as minhas críticas não apenas à atuação de alguns órgãos do Ministério Público, mas também à conduta de diversos setores da administração em geral. Devo dizer, porém, que a crítica à qualidade da acusação oferecida em muitos casos analisados não é minha, mas do Supremo, da instituição. Levantamento recente mostra que, só no ano passado, foram trancadas no STF pelo menos 18 ações por inépcia absoluta da denúncia. Em outras palavras, coube ao tribunal o ônus de cassar um elevado número de decisões, após longo período de tramitação e das ações, em razão da má qualidade da acusação.

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