Juiz vs. procuradores

Gilmar Mendes age em causa própria, dizem procuradores

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11 de março de 2007, 16h46

O embate entre o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, e procuradores da República voltou a esquentar com uma reportagem da Folha de S.Paulo. Em texto assinado pelo jornalista Frederico Vasconcelos, representantes do MPF, afirmam que as críticas do ministro decorrem do fato de ele ter sido alvo de ação por improbidade administrativa por suposto enriquecimento ilícito durante o governo de Fernando Henrique, quando era Advogado-Geral da União.

Gilmar Mendes fez primeiro um levantamento para demonstrar que quase todas as investidas dos procuradores da Repúblicam são arquivadas por inépcia. Depois elencou casos em que detectou o uso das ações por vingança, interesses políticos e mesmo para atender objetivos financeiros pessoais.

O jornal informa que o procurador Luiz Francisco de Souza entrou em 2002 com uma ação de improbidade contra Mendes por enriquecimento ilícito. Durante o tempo em que ocupava a advocacia da União, Mendes seria sócio-cotista do Instituto Brasiliense de Direito Público. Souza afirma que o ministro “lecionava em sua própria empresa, no horário de trabalho, e permitia a liberação de subordinados para assistir aulas”. “Permitiu que seus subordinados usassem o poder da entidade e do órgão que dirigia para beneficiar-se e para que sua empresa obtivesse receita e lucros”.

A procuradora da República Ana Lúcia Amaral declarou à Folha que Mendes “tem demonstrado em seus votos um rancor desmedido em relação ao MPF, possivelmente por ter sido acionado por improbidade administrativa”. Ana Lúcia também guarda mágoas. Ela foi uma das subscritoras das denúncias do Caso Anaconda que, segundo ela, foram quase todas trancadas ou arquivadas pelo STF. Gilmar Mendes foi relator em algumas das decisões.

O jornal coloca sob suspeita três decisões do STF. A que desqualificou como falsificação o uso de placas de automóveis da polícia por juízes; o trancamento da ação contra Casem Mazloum, acusado de interceptação telefônica; e o trancamento da ação penal contra o desembargador federal Roberto Haddad por falsificação de documento da Receita Federal. No caso das placas, o STF entendeu que não se pode considerar falsas placas autênticas, que efetivamente identificam com quem as mesmas se encontravam. Considerou haver mau uso das chapas, mas não falsificação. A imputada interceptação telefônica contra Mazloum caiu porque se resumia à gravação de um diálogo em que o juiz dizia conhecer uma pessoa que fazia grampos — algo diferente de o juiz, propriamente, grampear alguém. No caso do polêmico Roberto Haddad, o Supremo decidiu como sempre faz com contribuintes que retificam suas declarações: extinguiu a punibilidade.

Essas acusações já haviam servido de recheio para o livro “Juízes no banco dos réus”, de autoria de Frederico Vasconcelos. A obra é uma ode ao trabalho do Ministério Público Federal e tem Ana Lúcia Amaral como uma de suas principais fontes.

A Folha relaciona também a suspensão da quebra dos sigilos do subprocurador-geral da República Antônio Augusto César, envolvido na Operação Anaconda. Como relator, Mendes entendeu que a denúncia era inepta, “por não conter uma descrição detalhada do crime de corrupção passiva”. Gravações autorizadas pela Justiça mostram César tratando, em código, de decisões judiciais. Contudo, o voto que prevaleceu, embora no mesmo sentido, não foi o de Gilmar, mas o do ministro Joaquim Barbosa. Aliás, decisões semelhantes, rejeitando as ações do MPF têm sido adotadas por todos os ministros do STF.

O ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles reclamou da forma como Mendes criticou procuradores na sessão de julgamento da reclamação de Ronaldo Sardenberg “sem um dado consistente sequer”, Mendes “tisnou a honra funcional” dos procuradores Raquel Branquinho, Walquíria Quixadá, Guilherme Shelb, José Alfredo de Paula Silva e Luiz Francisco Fernandes de Souza, ao atribuir-lhes “uso político de ações de improbidade”. Na chefia da PGR, Fonteles participou do arquivamento das ações e representações feitas contra os colegas que continua defendendo. Entre os casos que perpassaram sua gestão estão alguns como aquele em que Luiz Francisco assinou ação de improbidade fraudada produzida fora da PGR; o fato de Guilherme Schelb ter recebido apoio financeiro de investigado que se safou pelas suas mãos; e a iniciativa de Valquíria Quixadá, de tentar resolver intramuros, na Procuradoria, a recuperação de investimentos de um fundo que naufragou e no qual os procuradores tinham aplicações.

Não se abordou desta vez, mas há pelo menos um caso que se tornou piada entre os ministros. Foi o que vitimou Casem Mazloum. Em um erro costumeiro, conforme atesta a Receita Federal, o juiz clicou o país “Afeganistão” (que fica próximo a Brasil, na declaração eletrônica) para informar que possuia uma certa quantia em dólares (cerca de 9 mil). Na lista de bens que todo servidor público deve apresentar anualmente, contudo, o juiz informara que os tais dólares encontravam-se com ele. O equívoco foi apresentado pelo MPF como falsificação. O STF, naturalmente, mandou trancar a ação.

O jornal afirma ainda que o ministro Gilmar Mendes poderá ser beneficiado com a decisão que o STF vier a tomar sobre o caso Sardenberg. A ministra Ellen Gracie suspendeu o processo contra Mendes, condicionando-o à apreciação da reclamação de Sardenberg. Para o MPF, Mendes espera que prevaleçam os votos anteriores, extinguindo a ação de Sardenberg. Prevê assim que o seu caso seguiria o mesmo rumo.

Uso político

Gilmar Mendes provocou a discussão com relatos que mostram o uso político do Ministério Público nas ações por improbidade administrativa.

Consideradas as investidas contra autoridades do governo federal, de 180 Ações de Improbidade Administrativa ajuizadas entre 1994 e 2007, cerca de 95% tiveram como alvo integrantes do primeiro ou segundo escalão do governo Fernando Henrique Cardoso. Os tucanos foram alvejados pelo Ministério Público Federal 92 vezes.

Já no campo petista, apenas quatro nomes tiveram a mesma desventura: Luiz Gushiken, José Dirceu, Rogério Buratti e Waldomiro Diniz. Na seara tucana, praticamente todo o ministério de FHC, o presidente, inclusive, foi alvo de pelo menos uma dessas ações. A União foi processada 21 vezes (veja quadro das ações de improbidade do MPF do DF).

Mesmo no decorrer do governo Lula, os tucanos foram acionados 25 vezes. A União foi enquadrada cinco vezes — algumas delas por fatos ocorridos no governo FHC.

O núcleo de toda questão é uma discussão em torno de processo que envolve o ex-ministro de Ciência e Tecnologia, Ronaldo Sardenberg. Examina-se o caráter da ação e o seu cabimento no caso específico. O plenário debate se esse tipo de ação deve ser processada a partir da primeira instância. Examina-se se, fora do cargo, um ministro mantém o foro privilegiado no STF por atos praticados enquanto ministro. O julgamento está suspenso até que se decida se um julgamento onde quatro dos votos são de juízes aposentados reflete o posicionamento atual da Corte. Por equívoco, a Folha noticiou que o STF vai decidir a extinção das ações de improbidades.

Sardenberg fora flagrado usando de avião da Aeronáutica para visitar o arquipélago de Fernando de Noronha. No entendimento dos procuradores, abraçado pela revista, reconhecida a prerrogativa de foro do ex-ministro, mais de 10 mil processos contra prefeitos, vereadores, deputados, governadores e secretários seriam extintos. A rigor, o julgamento do caso Sardenberg só serve para ele mesmo ou, ainda, para ministros de Estado. Têm sido comum decisões mitigadas, como as que promovem o controle da constitucionalidade no tempo ou, ainda, a excepcionalização de circunstâncias, como se pratica no caso da Súmula 691 (sobre a supressão de instâncias em caso de flagrante ilegalidade).

A questão de fundo, contudo, é o debate em torno do mau ou bom uso que se faz das ações civis públicas por improbidade administrativa. Para Gilmar, o Ministério Público faz bem ao valer-se de ações civis públicas sempre que houver uso indevido de recursos públicos. Esse instrumento permite a punição do infrator e o ressarcimento ao erário. Mas, ao tentar punir o administrador público, em meras irregularidades, com a cassação de seus direitos políticos por oito anos, contamina-se o objetivo da ação. O que pode acabar favorecendo o suposto infrator — e que tem acontecido com certa freqüência.

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