Violência e democracia

O que nos impede de efetivar os direitos sociais?

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10 de março de 2007, 0h01

"[O povo] não deve sentir a verdade da usurpação: ela foi um dia introduzida sem razão e tornou-se razoável; é preciso fazer que ela seja vista como autêntica, eterna, e esconder o seu começo se não quisermos que logo tenha fim." (Pascal)

Em artigo entitulado “Basta de Violência aos Direitos Sociais”, contrapondo-me a manifestações que publicamente atacaram a legislação trabalhista, acusando-a de culpada da crise econômica, manifestei-me no seguinte sentido:

“Trata-se de manifestações muito graves, que põem em risco toda a sociedade e que por isto não podem ficar imunes a uma veemente contraposição, coisa que a grande imprensa dominante parece não querer.

Neste sentido, aliás, deveria o Ministério Público do Trabalho agir, de forma urgente, interpelando judicialmente os autores das passagens supra, requerendo expresso direito de resposta em defesa da ordem jurídica, além de denunciar os autores pela apologia ao desrespeito à lei e descrédito às instituições públicas deste país”.

Alguns leitores denominaram-me “antidemocrático”. Um deles, aliás, mais exaltado, até me chamou de ditador, extrapolando o ponto da discussão e fazendo suposições de como eu, na qualidade de um “ditador”, me comportaria nas minhas relações pessoais e profissionais. Por ter fugido, completamente, dos parâmetros de um debate saudável, quanto a estes aspectos não vale a pena nada dizer. Como se diz popularmente, “melhor deixar prá lá!”

A questão é: teria sido tal requerimento um ato antidemocrático?

O termo democracia, etimologicamente, significa governo do povo. Trata-se, neste sentido, de um modo de governo pelo qual o próprio povo decide o seu destino. Na sua acepção mais pura, o governo se realiza mediante pronunciamento direto do povo (“democracia direta”). Mas, como as complexidades sociais tornaram este modo de agir impossível, avançou-se para a noção de democracia representativa (governantes eleitos pelo povo, sendo que a própria noção de “povo” amplia-se para inclusão de todas as pessoas)[1].

Há, ainda, outra noção importante a destacar que é a do Estado de Direito, que impõe o império da ordem jurídica a todos, inclusive aos governantes, que, por isto mesmo, para exercerem a sua função devem se submeter às leis. O Estado Democrático de Direito é uma oposição ao absolutismo.

Um Estado Democrático de Direito, portanto, é o regime da lei, gerida por governantes eleitos pelo povo. Mas, como não se pode a cada mudança de governo alterarem-se os modos de se organizar a sociedade, criam-se instituições (idéia que dura – Harriou) para que a sociedade tenha um modo de se auto-organizar que transcenda a figura do próprio governante.

Pois bem, diante desses pressupostos de compreensão necessária, nada é mais democrático do que a defesa da ordem jurídica e das instituições que têm como função fazer valer esta mesma ordem.

Claro, empresta-se à democracia também um outro significado, qual seja o da liberdade de expressão. Neste sentido, a idéia de democracia tem a função precípua de possibilitar que todos os modos de ver o mundo sejam manifestados livremente e considerados para a formação das bases jurídicas que regulam o Estado Democrático de Direito, não se eliminando a possibilidade das minorias e das opiniões divergentes insurgirem-se até mesmo contra a ordem estabelecida.

Mas, a liberdade de expressão, como direito fundamental, integra-se, igualmente, ao império da ordem jurídica. Assim, há limites a serem respeitados, sob pena de se atingir o pecado do juízo arbitrário das próprias razões, sem obediência a nenhum postulado do convívio social.

É por isto mesmo que a Constituição brasileira, que se baseia na noção de Estado democrático de direito, ao mesmo tempo que garante a livre manifestação do pensamento, vedando o anonimato (inciso IV, artigo 5o.), assegura, logo no inciso seguinte, o direito de resposta, proporcional ao agravo, assim como o direito de reparação quando a manifestação cause algum dano.

Além disso, é a própria Constituição que garante a todo cidadão, o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder (inciso XXXIV, do artigo 5o.).

Lembrando-se que cabe ao Ministério Público, a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (artigo 127, da Constituição), quando um cidadão considera que uma manifestação é agressiva à ordem pública, tem ele todo o direito de peticionar ao Ministério Público, que, dentro da sua prerrogativa, avaliará se a petição é pertinente, ou não. Considerando pertinente adotará a medida que entenda cabível, podendo até mesmo ser esta uma ação judicial, na qual pedirá ao juiz (seguindo as regras do juiz natural, inscrito no inciso LIII, do artigo 5o, da CF) que, em um processo marcado pela garantia constitucional da ampla defesa (“aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” inciso LV, do mesmo artigo 5º.), se pronuncie a respeito, aplicando o direito ao fato, isto é, dando razão, ou não, ao pleito formulado.


Entretanto, os que me acusaram de ditador por ter feito tal requerimento, para defenderem a “democracia”, acabaram negando-me o mesmo direito e proferiram de plano a sua sentença, agredindo, ademais, o preceito constitucional do juiz natural (inciso LIII, do artigo 5o: “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”).

Ora, se tais pessoas tivessem considerado que eu agredi o direito da livre manifestação e requerido, então, uma atuação do Ministério Público com relação à minha conduta, estariam exercendo um lídimo direito. No entanto, não foram coerentes com sua própria crítica e acabaram extrapolando os limites das suas próprias razões. Agiram democraticamente? Preocuparam-se em defender a democracia? Não, evidente que não.

O que gerou a crítica, portanto, não foi bem a intenção de se defender a democracia e sim a oposição à idéia central com relação à defesa dos direitos sociais. Neste aspecto, ademais, é interessante verificar como o desvio de valores que nos envolve muitas vezes não permite que se perceba o alcance do que, realmente, está envolvido em uma discussão.

No que se refere ao ponto central do texto, a defesa da eficácia dos direitos sociais, o problema é que já virou comum nos meios de comunicação em massa deste país, tornando-se fato natural, o ataque aos direitos sociais, e isto, por certo, justifica e incentiva tanto a prática de não se fazer cumprir dos direitos em questão quanto a defesa aberta de tal conduta, fazendo supor que qualquer manifestação que a tente impedir seja ao mesmo despropositado e anti-democrático.

Vale notar que no texto referido, procurei, exatamente, fazer o alerta de que o desrespeito aos direitos sociais é algo de extrema gravidade para a nossa sociedade. Bem verdade que pela desinformação, ou informação distorcida, boa parte da população não tem noção do que sejam os direitos sociais e para que se destinam, mas isto se dá, justamente, pela difusão irresponsável de certos meios de comunicação em massa.

Buscam impregnar a idéia de que os direitos sociais são custos que causam entrave à economia. Mas isto não tem o menor sentido. Basta lembrar que o auge econômico do capitalismo, de 1945 a 1970 (“anos gloriosos do capitalismo”), se deu graças ao implemento concreto das políticas públicas de bem-estar social, que se fizeram necessárias após o término da 2a. grande Guerra.

Ora, desde que se firmou uma nova ordem mundial na famosa conferência de Bretton Woods passou-se a exigir dos Estados "elevados níveis de crescimento econômico", para se sustentar[2]. Mas, as crises do petróleo, de 1973-74 e 1978-79 obstaram esse objetivo. Além disso, "a expansão do comércio internacional significava maior competição para as empresas nacionais, ao mesmo tempo em que a desregulamentação financeira permitia maior liberdade de movimentação do capital. Essas mudanças, por sua vez, levaram a uma ampla reestruturação empresarial e a uma crescente oferta de mão-de-obra não qualificada — o que se traduziu em índices mais elevados de desemprego, menor receita fiscal e maior pressão sobre os recursos governamentais. Foi o começo da crise do Estado do bem-estar social”.[3]

Como efeito, “nos países industrializados, já em breve haverá pessoas encarregadas de manter as ruas limpas, a salários próximos de zero: ou gente que encontrará um modesto abrigo como empregados domésticos,”[4] acrescentando que a era do bem-estar social não passou de “um piscar de olhos na história da economia"[5].

A lógica da globalização impõe o desemprego e a diminuição do rendimento daquele que ainda consegue trabalho, já que, como observam Hans-Peter Martin & Harald Schumann, exemplificativamente, empresas alemãs apenas criariam emprego em países baratos, favorecidas pela abertura do mercado, pela elevação da tecnologia nas telecomunicações e pelos baixos preços dos transportes[6].

Isso nos conduz, evidentemente, a um nivelamento por baixo e os apelos para justificar a nova ordem social à população são os por demais conhecidos: “o Estado do bem-estar social avançou demais”; “a disparidade social é inevitável”; “não há como manter a política do bem-estar social”; “a crise econômica exige sacrifícios de todos” etc…


E a situação atinge níveis de enorme complexidade quando se sabe que “Em escala mundial, mais de 40.000 empresas transnacionais de todos os portes aproveitam-se da rivalidade entre seus empregados, exatamente como fazem os Estados. Quarenta por cento de imposto sobre rendimentos de capital na Alemanha? É demais, a Irlanda se contenta com 10%, a Malásia e alguns Estados norte-americanos até renunciam a tributos durante cinco ou mesmo dez anos para atrair investimentos produtivos. Pagar 45 marcos por hora de trabalho a um operário especializado? Caríssimo, os britânicos trabalham por metade disso, os checos por um décimo. Apenas 33% de adicional para investimento em novas fábricas na Itália? Muito pouco, na ex-Alemanha Oriental o Estado oferece 80% generosamente."[7]

E, quando nesta competição por investimentos produtivos entra o dragão chinês tudo se complica ainda mais. O efeito dessa concorrência internacional é evidente. O capital, que antes patrocinava o bem-estar social, agora suga as reservas dos Estados, que poderiam ser destinadas àquele fim[8].

Importante destacar, também, que o achatamento das garantias sociais não se dá em virtude de crise, pois os lucros do capital têm sido cada vez maiores, mas em virtude de concorrência internacional e que essa “interdependência econômica de forma alguma é fenômeno natural, mas sim provocado por uma política deliberada, consciente de suas metas”[9].

Caminha junto à globalização a doutrina neoliberal, que, no fundo, sustenta: o mercado é bom, as interferências do Estado são ruins.

O próprio paradigma do sucesso capitalista americano não pode ser levado muito a sério, pois, como advertem Hans-Peter Martin & Harald Schumann, “em nenhum outro lugar a decadência social se mostra tão claramente quanto no país que deu origem à contra-revolução capitalista: nos EUA, a criminalidade assumiu proporções epidêmicas.

No Estado da Califórnia, que seria, considerado individualmente, a sétima potência econômica do mundo, as despesas com presídios ultrapassam o total do orçamento para cultura."[10] Como diz Ethan B. Kapstein, “Nada menos de 2% de todos os homens americanos em idade de trabalhar estão na prisão."[11]

Os vencedores são em número cada vez menor e, conseqüentemente, os perdedores se avolumam. O fosso entre ambos aumenta e os vencedores tratam de se proteger dos perdedores, quer seja em uma sociedade individualmente considerada, quer seja em âmbito nacional, isto é, a mesma relação passa a existir entre Estados vencedores e perdedores.

Contra isso, frisam alguns, nada há que se possa fazer. Entretanto, "se os governos, em todas as questões cruciais do futuro, nada mais conseguem senão apontar os imperativos da economia transnacional, toda a política torna-se uma farsa, uma demonstração de impotência, e o Estado democrático perde sua legitimação como tal"[12].

Os políticos, os "representantes" do povo, no entanto, talvez não compreendam a amplitude dessa situação. Simplesmente justificar tudo o que de mal tem ocorrido à população com o argumento da concorrência internacional, logo-logo fará com que a população se revolte contra tudo que for estrangeiro e aí, a globalização, em vez de criar um mundo novo sem fronteiras, fará com que cada vez mais ganhem força os movimentos separatistas e xenófobos, provocando, evidentemente, conflitos internos e internacionais, pois, naturalmente, como advertem Hans-Peter Martin & Harald Schumann, "os que foram excluídos reagem, de seu lado, excluindo outros"[13].

Com isso a própria democracia tende a ruir e é essa a grande armadilha que a globalização reserva a todos. A situação, ao contrário do que se queira acreditar, é extremamente grave. Pinta-se um quadro bastante parecido ao que existia antes da Segunda Guerra. Um mundo globalizado comercialmente, mas fragmentado, politicamente[14].


Além disso, a ameaça da pobreza[15] provoca pânico em grande parte da população mundial, que ainda possui um certo poder, tanto político quanto econômico e a tendência da guerra acaba ficando cada vez mais próxima da realidade: "A história não repete. Mesmo assim, a guerra continua sendo a válvula de escape mais provável, quando os conflitos sociais se tornam insuportáveis, mesmo em forma de guerra fratricida contra minorias étnicas ou regiões separatistas”.[16]

É interessante perceber que o modelo que se reproduz com vista a atender interesses econômicos hegemônicos acaba produzindo, paradoxalmente, seus antídotos, que se infiltram nas próprias regras do livre mercado. O livre mercado empurra as garantias sociais para baixo e agravam o fosso entre vencedores e perdedores, estes em número cada vez maiores[17]. Por outro lado, sob o aspecto político, esses perdedores, principalmente quando se lhes integram pessoas de camadas mais elevadas da sociedade — ou pelo menos quando estas estão sob o sério risco de integrarem-se aos perdedores — continuam tendo voz e voto nos regimes democráticos e é, exatamente, neste sentido, que o livre mercado vale-se de formadores de opinião e de meios de comunicação em massa para difundir suas idéias hegemônicas, aniquilando, em concreto, a democracia[18].

Claro, não se destrói a retórica da democracia e por isto é que toda defesa das livres regras do mercado, mesmo tendo a intenção de eliminar as possibilidades de percepção da usurpação, apresenta-se como defesa da democracia, atacando-se como autoritárias, antidemocráticas, as iniciativas de resistência, sobretudo quanto estas se destinam a evitar o “livre” avanço da fórmula básica do “sucesso” econômico em nível mundial da redução do custo social.

Mas, de forma ainda mais paradoxal, como a própria “democracia” que se oferece não permite que se obtenha uma verdadeira eficácia dos direitos sociais, acaba-se potencializando o advento de uma revolta maior, primeiramente em níveis de criminalidade e, posteriormente, em direção ao surgimento de regimes políticos totalitários e depois à guerra.

Mesmo assim, sobretudo em países que não sofreram, diretamente, os efeitos das guerras mundiais, tem-se desapegado do modelo sócio-democrático e como bem pondera Ethan B. Kapstein[19], "O mundo talvez esteja caminhando inexoravelmente em direção a um desses trágicos momentos que levarão os historiadores do futuro a perguntar: Por quê nada foi feito em tempo hábil? Não estavam as elites políticas e econômicas conscientes da profunda perturbação que as mudanças econômicas e tecnológicas estavam causando aos trabalhadores? O que os impediu de tomar as medidas necessárias para evitar uma crise social global?"

Ou seja, “com uma ignorância espantosa, os engenheiros da nova economia global se livram dos alicerces de seu sucesso”[20], achatando salários, aumentando as jornadas de trabalho, eliminando as garantias sociais. Tem pleno sentido, portanto, a advertência de Martin & Schumann, no sentido de que “A mesma utopia do mercado que se auto-regula é seguida hoje por todos aqueles que inscreveram em suas bandeiras os lemas da contenção do Estado de bem-estar social e da desregulamentação irrestrita. Contudo, ‘esse fundamentalismo de mercado é uma forma de analfabetismo democrático”[21] e poderíamos dizer, também, de analfabetismo histórico. Sob o ponto de vista histórico, porque desconhece, ou finge desconhecer, quais as conseqüências que essa política gerou e que, certamente, novamente fará surgir; sob o ponto de vista político, por que não se percebe que tal idéia é o fomento da corrosão democrática. Como observa o sociólogo Ulrich Beck, "somente pessoas que têm moradia e emprego seguro, e, portanto, um futuro material, são cidadãos que se dedicam à democracia e a mantêm viva. A simples verdade é que sem segurança material não existe liberdade política."[22]


Assim, não se pode conceber que democrático seja, exatamente, a impossibilidade de se rechaçar com veemência os ataques aos direitos sociais, pois sem estes é que se aniquilam a democracia e a paz mundial.

Lembre-se, a propósito, que o mundo firmou compromisso com o implemento e a concretização dos direitos sociais no período pós-guerra, exatamente, em função da compreensão de que fora a injustiça social uma das grandes responsáveis pelo massacre de quase toda uma geração. Neste sentido, foram elaborados vários instrumentos normativos de âmbito internacional.

No preâmbulo da OIT, por exemplo, está declarado que “uma paz universal e durável somente pode ser fundada sobre a base da justiça social” e que, no entanto, existem “condições de trabalho que implicam para um grande número de pessoas a injustiça, a miséria e as privações que geram um descontentamento que põe em perigo a paz e a harmonia universais”, sendo “urgente melhorar essas condições, por exemplo, no que diz respeito à regulamentação das horas de trabalho, a fixação de uma duração máxima da jornada e da semana de trabalho, o recrutamento de mão-de-obra, a luta contra o desemprego, a garantia de um salário que assegura condições de existência digna, a proteção dos trabalhadores contra as doenças comuns ou profissionais e os acidentes do trabalho, a proteção das crianças, dos adolescentes e das mulheres, as pensões por idade e invalidez, a defesa dos interesses dos trabalhadores no estrangeiro, a afirmação do princípio do ‘trabalho igual, salário igual, a afirmação do princípio da liberdade sindical…”

No mesmo sentido, o próprio Tratado de Versalhes, documento que pôs fim à 1ª. Guerra mundial, traz, expressamente, o princípio de que “o trabalho não deve ser considerado como simples mercadoria ou artigo de comércio, mas como colaboração livre e eficaz na produção das riquezas”.

E, no Protocolo de San Salvador – Protocolo Adicional à Convenção Interamericana Sobre Direitos Humanos em Matéria de

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, é possível encontrar a declaração de que:

“Recordando que, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, só pode ser realizado o ideal do ser humano livre, isento de temor e da miséria, se forem criadas condições que permitam a cada pessoa gozar de seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como de seus direitos civis e políticos; Levando em conta que, embora os direitos econômicos, sociais e culturais fundamentais tenham sido reconhecidos em instrumentos internacionais anteriores, tanto de âmbito universal como regional, é muito importante que esses direitos sejam reafirmados, desenvolvidos, aperfeiçoados e protegidos, a fim de consolidar na América, com base no respeito pleno dos direitos da pessoa, o regime democrático representativo de governo, bem como o direito de seus povos ao desenvolvimento, à livre determinação e a dispor livremente de suas riquezas e recursos naturais”

Fácil perceber, portanto, que a noção inicial de Estado Democrático de Direito avança para Estado Democrático de Direito Social, pelo qual passa a competir às instituições públicas (assim como a todos os cidadãos e instituições privadas) – como decorrência do compromisso internacionalmente assumido com as gerações passadas e futuras – o dever de defenderem os direitos sociais, buscando, concretamente, os meios de sua efetivação.

Por conseguinte, analisada a questão do ponto de vista da ordem jurídica e dos compromissos históricos firmados pela humanidade, pode-se dizer que constitui um atentado ao Estado Democrático de Direito Social (uma agressão à humanidade) defender, publicamente, sem qualquer motivação, contextualização e proposta alternativa de sociedade, a derrocada, ou mesmo a ineficácia, dos direitos sociais. Lembre-se, a propósito, que a Constituição brasileira fixou o princípio (talvez, “antidemocrático”, na visão de alguns) de que não se aceitarão propostas de Emenda à Constituição que pretenda abolir os direitos e garantias individuais (artigo 60, § 4º., inciso IV).

Em outras palavras, as cláusulas pétreas da Constituição não podem ser alteradas e nelas se incluem os direitos fundamentais, dentre os quais encontram-se os direitos sociais (artigos. 6o. a 9o.) da Constituição Federal, pois conforme bem pontua Paulo Bonavides, “só uma hermenêutica constitucional dos direitos fundamentais em harmonia com os postulados do Estado Social e democrático de direito pode iluminar e guiar a reflexão do jurista para a resposta alternativa acima esboçada, que tem por si a base de legitimidade haurida na tábua dos princípios gravados na própria Constituição (artigos 1o., 3o. e 170) e que, conforme vimos, fazem irrecusavelmente inconstitucional toda inteligência restritiva da locução jurídica ‘direitos e garantias individuais’ (artigo 60, 4o., IV), a qual não pode, assim, servir de argumento nem de esteio à exclusão dos direitos sociais”[23].


Claro, é possível, democraticamente, discutir a essencialidade dos direitos sociais, mas para fazê-lo há de se fincar as bases da discussão na proposição de um novo modelo de sociedade, ou seja, em uma reestruturação geral dos arranjos sociais, políticos e econômicos que se desenvolvem sobre sua base.

Em outras palavras, sabendo-se que a fórmula jurídica da criação e difusão dos direitos sociais foi a saída encontrada pelas democracias ocidentais para obstarem uma revolução socialista e que, posteriormente, esta fórmula acabou avançando para o ponto da superação do antagonismo ideológico, para libertar os homens das prisões da “guerra fria”, fazer um ataque direto, generalizado, aos direitos sociais é abalar as bases democráticas do prometido capitalismo com justiça social, fazendo ressurgir a origem da discussão ideológica, da qual se alimentam tanto as ditaduras ditas “socialistas” quanto as ditaduras do “livre mercado”.

Costuma-se citar o exemplo chinês, apontando-o como exemplo de que a redução do custo do trabalho, efetivamente, impulsiona uma economia, mas se esquece de dizer que a China está longe de ser um exemplo de democracia e pouco se aproxima até mesmo do autêntico modelo liberal, já que apenas agora começa-se a discutir naquele país a possibilidade de garantir o direito de propriedade.

Assim, só há sentido em discutir, democraticamente, a pertinência dos direitos sociais se formos, democraticamente, pôr na berlinda o próprio modelo de sociedade. Ou seja, para pôr em discussão os direitos dos trabalhadores, que se integram aos direitos humanos com a cláusula do não-retrocesso, teremos que discutir, concomitantemente, o próprio modelo de sociedade, o que implica debater o alcance do direito de propriedade; a reforma agrária; a redistribuição de renda; a reorganização dos meios de produção; o financiamento das despesas públicas com educação, saúde, assistência social e moradia; a fonte do custeio dos investimentos em ciência, tecnologia e infra-estrutura etc.

Um simples ataque gratuito e generalizado aos direitos dos trabalhadores, que acaba por incentivar o descumprimento das normas trabalhistas e a propor a sua retirada do mundo jurídico, sem levar em conta os efeitos perversos que isto necessariamente traz para a sociedade e para a vida de milhões de pessoas, é o mesmo que, a partir da consideração de que o andar térreo de um prédio está velho, destruí-lo, sem se dar conta de que todos os andares acima serão, igualmente, destruídos.

Aliás, sabendo-se da resistência impetuosa de certos segmentos que ostentam poder econômico (que possuem, por isto mesmo, força política) aos direitos sociais, para não permitir que se pusessem em risco os valores consagrados como essenciais para a humanidade a partir do final da 2a. Guerra mundial foi que se institucionalizou, em âmbito internacional, com efeitos normativos supranacionais, o princípio do não-retrocesso.

Como diz J.J. Gomes Canotilho, “O princípio da proibição de retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas (…) deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam, na prática, numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura e simples desse núcleo essencial”[24].

Na Constituição brasileira, por exemplo, os direitos sociais foram alçados a direitos fundamentais, incorporando-se aos direitos trabalhistas, expressamente, a cláusula do não-retrocesso, ao se estipular no inciso I, do artigo 7o, que os direitos ali elencados não eliminam outros que “visem à melhoria da condição social e econômica dos trabalhadores”.

Diante de todos esses dados sócio-jurídicos, extraídos da história e das normas positivadas, não há dúvida quanto à essencialidade dos direitos sociais para o desenvolvimento regular do modelo de sociedade que se convencionou chamar de “capitalismo”.

No entanto, mesmo diante de tantas obviedades, parte do segmento econômico, que vislumbra um benefício ainda maior com a redução dos custos sociais, faz questão de tornar nebulosas a interpretação e a aplicação desses preceitos. Essa ineficácia dos direitos sociais que se apresenta aparentemente em base acadêmica e “democrática”, no entanto, só interessa a esta pequena parcela da sociedade e mesmo assim de forma imediata, porque em longo prazo (hoje já não tão longo assim) não interessa a ninguém.

Lembre-se, a propósito, que, no Brasil, esta discussão já se arrasta por mais de 30 (trinta) anos, desde a eliminação da estabilidade em 1967, e já produziu efeitos desastrosos aos trabalhadores, sem benefício algum para a eficiência econômica do país, tanto que ressurgem a cada ano novas propostas de regressão social (enquanto isto, o nível de vida de diversos setores profissionais da própria classe média sofre uma derrocada constante).


De forma, propositalmente, enganosa, diz-se que o que rege as relações de trabalho no Brasil é a CLT de 1943, mas inúmeras são as leis publicadas posteriormente, sendo que em muitas delas várias reivindicações dos “economistas” foram atendidas, tais como o fim da estabilidade no emprego; a permissão de contratos precários (a tempo parcial, temporário, provisório); a eliminação da natureza salarial de alguns benefícios “in natura” (artigo 458, § 2º., da CLT); a formulação do banco de horas; sem falar na maior perversidade que, aliás, foi criada pela própria jurisprudência, qual seja, a terceirização, que até encontrou na lei o que se pensava impossível, qual seja, a perversão da perversidade, que foi a cooperativa de trabalho, que traduzida para a realidade, da forma como vem sendo utilizada, é a manutenção da exploração do trabalho pelo capital que se faz por intermediação de mão-de-obra sem a formação da relação de emprego, ou seja, sem a aplicação da legislação do trabalho (mostrando-se, por isto mesmo, totalmente inconstitucional).

Aliando-se a isto os fatos de que boa parte da legislação protetiva não é, concretamente, aplicada e o baixíssimo valor dos salários pagos, tem-se como resultado que o custo do trabalho no Brasil é um dos mais baixos do mundo. Então, se o problema econômico do país fosse esse, o sucesso econômico já teria ocorrido. No entanto, no ano de 2006 o Brasil só não cresceu menos que o Haiti, e a culpa foi de quem? Querem nos dizer que foi do 13o. salário do trabalhador. É possível acreditar nisto? E se tirarmos o 13o. e não continuarmos crescendo, a culpa será transferida para qual direito trabalhista?

E quando não houver mais nenhum direito e tudo continuar piorando vamos debitar a culpa em quê ou em quem? Será que aí, enfim, resolveremos discutir a sério os nossos problemas sócio-econômicos? Temo que aí seja tarde demais!

Não há mais espaço para continuarmos fingindo que estamos estabelecendo um embate democrático quando, simplesmente, estamos destruindo toda a rede de segurança social que é a única que pode garantir um mínimo de dignidade e justiça em uma sociedade capitalista. Esse debate, aliás, de democrático não tem nada, pois que somente se dá divulgação nos meios de comunicação em massa às idéias que repudiam a ordem jurídica social e as instituições públicas criadas para sua aplicação. Outro dia, fui consultado por uma repórter da TV Bandeirantes a respeito do problema da Super-Receita. Disse-lhe que era a favor do veto da Emenda 3. Ela me informou que estava fazendo uma reportagem democrática. Concedi-lhe, então, uma entrevista durante cerca de 20 minutos e à noite o âncora do jornal disse apenas que o veto à Emenda seria um grande prejuízo para a sociedade, apresentou dois entrevistados dizendo a mesma coisa e a minha fala, nada! É esta a democracia que não pode sofrer intervenção das instituições públicas?

Já passou mesmo da hora, portanto, de dar um basta nisto. Faz-se urgente reconhecer que o ataque aos direitos sociais, sem que se traga uma discussão séria e verdadeiramente democrática sobre a reconstrução do modelo de sociedade, constitui um grande risco para a estabilidade social, para a saúde e a vida de milhões de pessoas, e em escala mais ampla, para a própria paz mundial.

O problema é que no Brasil, oligárquico por natureza, está impregnada uma inversão de valores que nos assola, que nos impulsiona a pensar apenas de forma imediatista (na perspectiva do salve-se quem puder) e que não nos permite ver o quanto é pernicioso abandonar, sem mais nem menos, a rede de proteção social e até considerar anti-democrática a defesa veemente dos direitos sociais.

Mas, não pode haver dúvida: os direitos sociais, consagrados constitucionalmente, integram-se ao limite mínimo ético do compromisso firmado pela humanidade consigo mesma. Não há espaço para que se pense na retomada dos padrões jurídicos do Estado Liberal, assim como não há espaço para que se defenda, ainda que em nome da “democracia”, o racismo, a discriminação, o anti-semitismo, a prostituição infantil, a exploração econômica do trabalho da criança, a volta da escravidão.

Pôr em debate uma ou outra norma de proteção jurídica dos trabalhadores, de forma específica e clara, para avaliar a sua eficácia quanto aos fins que almeja atingir, é uma coisa. Outra, completamente, distinta, é o ataque generalizado à rede de proteção social, que produz um abalo sistêmico na estrutura social, provocado pela ineficácia que impõe às normas de proteção social.

Se não é possível pôr em dúvida a eficácia dos direitos humanos de primeira geração (os direitos civis e políticos), da mesma forma não é possível fazê-lo com relação aos direitos trabalhistas, já que se integram à noção de direitos humanos de natureza social.


Um veículo de informação em massa, formador de opinião, que conclui, por meio de uma visão propositalmente unilateral, que os direitos trabalhistas são a causa da crise econômica e sugere que a defesa de direitos por parte dos trabalhadores constitui ato de “banalização” da justiça, agride o Estado Democrático de Direito Social. Ainda que se admitisse, em tese, que o jornal pudesse ter o direito de ter a sua opinião, não se pode negar que as instituições públicas, que têm o dever de fazer valer a ordem jurídica, peçam, judicialmente, espaço para, democraticamente, expor o outro lado da história. Neste sentido, o próprio Jornal Folha de São Paulo, em Editorial do dia 03 de março de 2007, denomina de hipócrita a utilização do argumento da liberdade de expressão utilizado pelas emissoras de televisão para não cumprirem a determinação do Ministério da Justiça quanto à classificação indicativa da programação por faixas de horário, propugnando que a proteção da infância e da juventude (um direito fundamental) não pode sucumbir a este argumento e mesmo a “dificuldades técnicas” das emissoras.

Da mesma forma, quando se sugere que uma instituição pública, da importância histórica, pelos serviços já prestados, como a Justiça do Trabalho, é a culpada pelo desemprego porque faz cumprir as normas constitucionais de proteção ao trabalho, fere-se, frontalmente, o Estado Democrático de Direito Social e o mínimo que se deve fazer é exercer os instrumentos constitucionalmente previstos para a defesa da instituição e da ordem jurídica.

O ataque aos direitos sociais no Brasil, ademais, tem aspectos mais complexos e toma proporções muito graves, pois a sua forma generalizada, apoiada pela grande mídia, tem impedido que a população como um todo tenha a consciência da essencialidade desses direitos para o nosso modelo de sociedade. Enquanto em outros países, nos quais se produziu o modelo de Estado Social Democrático, qualquer tentativa de retirada de direitos sociais é alvo de contundente reação popular (como se verificou, recentemente, na França com a tentativa de precarização do contrato do Primeiro Emprego – que, no Brasil, sequer tem a aplicação do direito do trabalho, por meio do inconstitucional contrato de “estágio”; e na Itália, com a tentativa de retirada do direito à estabilidade no emprego), no Brasil, que sofre as conseqüências de uma inadequada formação cultural, não há qualquer reação a este tipo de agressão, que, aliás, nem como agressão é identificada, muito pelo contrário, qualquer reação individual contrária a ela é que passa a ser vista como uma agressão à “democracia”.

Assim, é exatamente em países como o nosso que a atuação das instituições públicas para a defesa dos direitos sociais tem maior relevância. Lembre-se, ademais, que os direitos sociais estabelecem obrigações para aqueles que, quase sempre, ostentam uma posição econômica favorável com relação a outros, considerados titulares dos direitos em questão. Como natural, todos aqueles que ostentam uma posição predominante na relação de poder possuem a seu favor a autotutela de seus interesses. É por isto mesmo que a eficácia dos direitos sociais depende da ação firme do Estado.

É esta, ademais, precisamente, a origem da denominação Estado Social (ou seja, a formação de um Estado que tem como função fazer valer em concreto os direitos sociais, nos quais se incluem o direito do trabalho, o direito à segurança social, o direito ao lazer, o direito à saúde, o direito à educação, o direito à moradia, o direito à infância, o direito, enfim, a uma vida digna – artigo 6º, da Constituição brasileira).

Não se chama Estado Social apenas porque o nome é bonito. A efetivação dos direitos sociais, como forma de respeito ao Estado Social Democrático, depende, portanto, sobremaneira, da independência dos juízes, cuja obrigação é vislumbrar o direito a partir da perspectiva do interesse social.

Assim, tem inteira razão Jean-Claude Javillier, quando diz que “não há nenhuma sociedade democrática sem uma independência da magistratura: ela é a garantia de uma efetividade das normas protetoras dos direitos essenciais do homem”[25].

Neste mesmo sentido, conclui Fábio Konder Comparato: “A independência funcional da magistratura, assim entendida, é uma garantia institucional do regime democrático. O conceito institucional foi elaborado pela doutrina publicista alemã à época da República de Weimar, para designar as fontes de organização dos Poderes Público, cuja função é assegurar o respeito aos direitos subjetivos fundamentais, declarados na Constituição.”[26]


Sem a percepção do que constitui o império da ordem jurídica constitucional, corre-se o risco de que as agressões à democracia não sejam sequer percebidas. Recentemente, o ex-ministro Jobim defendeu uma revisão constitucional (aliás, a proposta está no Congresso), cujo efeito, certamente, será o da tão almejada retirada dos direitos trabalhistas da Constituição. Implementar essa tal “revisão” é democrático? Não, é golpe, já que a Constituição, que regula os meios pelas quais ela pode ser alterada, não prevê nenhum tipo de “revisão” (ou melhor, as revisões que previa já ocorreram).

O poder do Congresso, de criar normas constitucionais, é derivado e, portanto, deve seguir os padrões jurídicos fixados na própria Constituição, estando, por isto mesmo, sujeito ao controle de constitucionalidade, que é, como diz Paulo Bonavides, “fruto de uma feliz reflexão acerca da supremacia da Constituição sobre as leis ordinárias”[27].

Propugnar que o Estado defenda a ordem jurídica social não é, portanto, nenhum absurdo ou ato anti-democrático. O entrave que se tem contra esta idéia, por conseguinte, só pode ser de ordem cultural. Nunca é demais lembrar que em quase 400 anos de história do Brasil convivemos com a escravidão (aqueles sim, diriam alguns, foram verdadeiros tempos de prosperidade e liberdade…).

Neste contexto, se a defesa da atuação do Estado fosse para a proteção da ordem jurídica liberal, para repudiar, por hipótese, uma manifestação pública contrária ao direito das pessoas de portarem pelas ruas bolsas “Louis Vuitton”, nada se diria, pois, é claro, na ordem jurídica pressuposta do Estado Liberal todo mundo é livre para usar a bolsa que quiser, e fazer publicamente um ataque a quem usa um determinado tipo de bolsa agride a liberdade individual e até incentiva o advento de atos criminosos e discriminatórios contra tais pessoas, sem falar, é claro, na agressão ao direito de imagem da empresa que a produz, devendo o manifestante ser acionado para a reparação do dano comercial experimentado pela empresa.

Mas, não é a mesma coisa, dizer que um direito do trabalhador, consagrado constitucionalmente é um entrave para a economia? O trabalhador não tem o direito de se sentir agredido por isto, sobretudo por conta do incentivo que isto representa para que certos empregadores (geralmente os que possuem maior poder econômico) não respeitem os seus direitos? Não devem as instituições públicas agir na defesa desse interesse, nitidamente, social?

O problema é que na onda da inversão de valores que nos assola, os direitos dos trabalhadores não são vistos como direitos e sim como meros custos.

Nesta lógica invertida, o Ministério Público deve defender a propriedade privada, mas não deve defender os direitos dos trabalhadores. Aliás, o Estado, com o exercício de seu poder de polícia, deve assegurar a liberdade de ir e vir, incluindo-se na noção de liberdade o “direito” de não se cumprir os direitos dos trabalhadores e de defender idéias que façam apologia de tal conduta. Deve criar mecanismos para defender os consumidores (PROCON) e o meio-ambiente (IBAMA), mas atuar em defesa dos direitos dos trabalhadores é ditadura…

Valeria, ademais, aprofundar o estudo dessas incoerências culturais, que nos conduz a uma grave falta de isonomia entre direitos liberais e direitos sociais, o que, fora, aliás, a idéia principal do texto em comento. Vejamos, por oportuno, alguns outros exemplos dessa ausência de tratamento isonômico que gera graves distorções na construção dos valores de nossa sociedade.

1. se um trabalhador que não recebe salários há três meses furta uma manteiga na padaria, a ordem jurídica deve prevalecer para que se apene o criminoso, enquanto que aquele que não lhe pagou os salários cometeu apenas um “inadimplemento contratual”, fazendo-se, aliás, letra morta dos dispositivos constitucionais que, expressamente, dizem que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia” (inciso LXVII, artigo 5o, da CF) e que “constitui crime a retenção dolosa do salário” (inciso X, do artigo 7o, da CF);

2. se uma pessoa furta um pãozinho na padaria é um criminoso; se as horas extras dessa mesma pessoa não são pagas, o ato do agressor é um "inadimplemento contratual";

3. se uma pessoa, passando fome, furta um pacote de manteiga no supermercado, terá contra si o peso da lei, da ordem e a tão reclamada eficácia das instituições públicas, mas se este mesmo supermercado não recolhe o FGTS dos seus empregados, o seu ato é justificado pela "crise econômica" e acaba não representando, concretamente, nenhum ilícito;


4. se o empregado se embriaga habitualmente isto denigre a imagem da empresa e o empregador pode lhe dispensar por “justa causa”, mas se o empregador bebe vinhos e assedia, sexualmente, as suas secretarias, o empregado não pode dispensar o empregador por “justa causa”, pois a improbidade, a incontinência de conduta ou o mau procedimento do empregador não gera nenhuma repercussão para a imagem do trabalhador.

Repare-se que mesmo para a lei que tantos acusam de proteger em demasia os trabalhadores, os atos faltosos do empregado geram “justa causa” e os atos faltosos do empregador (nos quais não se inclui nenhuma reprimenda de ordem moral como há nas hipóteses do empregado) geram uma “rescisão indireta” do contrato de trabalho. Voltando, ao aspecto da bebida, o empregado porque bebe pinga é um embriagado e o empregador porque bebe vinho o faz por prazer, sendo considerado até mesmo um “sommelier”;

5. se um juiz defere uma liminar, para determinar uma reintegração de posse, não age de forma arbitrária ou ditatorial; mas se defere uma tutela antecipada para determinar o pagamento imediato das verbas rescisórias (de caráter alimentar – devidas de forma incontroversa) de um trabalhador, então se diz que o juiz foi arbitrário e que não garantiu à empresa o duplo grau de jurisdição;,

6. se um empregado comete algum erro, na avaliação exclusiva e unilateral, do empregador, este pode, sem processo, sem respeitar o direito de defesa, o contraditório etc., impor ao empregado multa, advertência ou suspensão; mas se o empregado não concordar com a pena imposta deve recorrer ao Judiciário, garantindo-se ao empregador direito de defesa, contraditório, duplo grau etc.

Embora não fosse necessário, porque está muito claro o que se está dizendo, mas como muitas vezes só se lê o que se quer ler, cumpre consignar que não se está defendendo nenhuma postura ilegal dos empregados, está-se apenas reivindicando um tratamento jurídico e moral igualitário entre todas as pessoas da sociedade, sejam elas ricas ou pobres.

Indo além nesta abordagem, na questão da reforma agrária, por exemplo, a perversão que assistimos é ainda maior. Disse, recentemente, em pronunciamento público, o Sr. ministro da Justiça, renomado e respeitado jurista, Márcio Thomaz Bastos, referindo-se à ação de ruralistas e integrantes do MST, que “ninguém está acima da lei”, para explicitar que nenhuma ação dos dois grupos em conflito, que extrapolasse os limites da lei, seria suportável.

Nenhuma objeção ao que disse o ministro. Seu pronunciamento é correto e deve ser seguido. No entanto, a sua manifestação abriu o espaço para lembrar que o preceito de que ninguém está acima da lei, que traduz a expressão máxima do Estado de Direito, foi apresentada de forma incompleta. Na verdade, no Estado Democrático de Direito, ninguém está acima da lei, incluindo-se neste “ninguém” também os governantes.

Este lembrete é oportuno para destacar que antes de apontar a espada da lei (ou como disse de forma infeliz, o ex-ministro do desenvolvimento Agrário, Raul Julgman – Folha de São Paulo, 29/07/03, p. A-7 –, “baixar o pau da lei…”) em direção aos movimentos sociais, é preciso que o governo faça uma espécie de haraquiri e volte a espada contra si mesmo, já que não tem cumprido a lei e os conflitos sociais em grande medida são um reflexo da ilegalidade cometida pelo governo (não se entenda aqui, no entanto, apenas o “Governo Lula”, mas também todos os que lhe antecederam).

Se os ruralistas têm o direito de manter sua propriedade com base em previsão legal, esta propriedade, quando rural, não pode ser improdutiva (conjugação dos incisos XXII e XXIII, do artigo 5o, da CF e incisos II e III, do artigo 170, CF, e conforme expressamente previsto no artigo 184, da CF). Este fato por si só, evidentemente, não gera o direito às invasões perpetradas pelo MST, mas estas só acabam ocorrendo diante da insuportável inércia dos governos em promover uma efetiva política de justiça social, prevista no artigo 170, da CF, que passa, inexoravelmente, por uma completa e organizada reforma agrária no país.

E esta situação é insuportável especialmente para aqueles que passam fome e não têm onde morar, o que representa o descumprimento do compromisso assumido pelo Estado brasileiro com a “prevalência dos direitos humanos” (inciso II, do artigo 4o, da CF).

Destaque-se que a desapropriação das terras improdutivas se fará por indenização prévia e justa (artigo 184). Lembre-se, a propósito, que é direito de todo o cidadão brasileiro, como reflexo do dever que fora atribuído ao Estado, e conseqüentemente, aos governantes: viver em uma sociedade justa e solidária (inciso I, do artigo 2o, da CF); e vivenciar a erradicação da pobreza (inciso III, artigo 2o, CF). Vale recordar, também, que compete aos governantes promover uma política de pleno emprego, nos termos do art. 170, inciso VIII, da CF e da Convenção 168, da OIT, ratificada pelo Brasil, mediante o Decreto 2.682, de 22/07/98.


Entretanto, não nos incomodamos com a inércia do Estado em fazer valer a Constituição quanto à efetivação da reforma agrária, mas esta é uma inércia que fere o Estado Democrático de Direito. Requerer a ação do Ministério Público para que o Estado atue nessa direção será, igualmente, um ato anti-democrático, já que o Estado tem o direito de exercer sua liberdade de não agir?

Falando ainda de desvirtuamentos de ordem cultural, na semana passada, o Ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, disse que “planeja” proibir alguns setores do funcionalismo de fazer greves, para preservar o atendimento ao cidadão. No entanto, a Constituição garantiu o direito de greve e não pode o próprio Estado planejar proibir a greve. Interessante é dizer que esta proibição inconstitucional se dá para proteção dos cidadãos. Mas, afinal, os servidores não são cidadãos? Claro os abusos devem ser coibidos, pois nenhum direito é absoluto e no exercício dos direitos há de se respeitarem os direitos alheios. Daí a defender que é possível “proibir” a greve vai uma distância enorme.

Voltando ao aspecto da democracia, difunde-se em nossa realidade idéias que tentam nos convencer de que só há democracia nos Estados capitalistas e que “as sociedades que romperam com o capitalismo sucumbiram à servidão, à miséria e à violência arbitrária”. Diz-se que quem se posiciona contra o capitalismo está, ao mesmo tempo, contra a democracia.

Não tenho, concretamente, o propósito de me manter nessas distinções ideológicas. O que pretendo destacar é apenas mais um ponto de incoerência ao se utilizar a democracia como argumento para a defesa de uma mera ideologia. Vale lembrar que em nome de diversos “ismos”, e até em nome de Deus, já se sacrificaram várias gerações. Da lógica argumentativa, presa à ideologia, que cega as pessoas, criaram-se teses acadêmicas, com caráter quase religioso, d´onde se alimentaram a intolerância e vários conflitos humanos.

A experiência política dos países latino-americanos, Brasil incluso, na última década, foi marcada pela influência do embate ideológico, conhecido como “Guerra Fria”. No Brasil, na Bolívia, na Argentina, em Cuba e no Chile, os movimentos sociais buscaram emancipação econômica para lutar contra as “distorções sociais criadas pela dependência”[28] aos Estados Unidos.

Como esclarecem José Jobson de Arruda e Nelson Pilletti, “ao longo do tempo, o domínio se traduziu na grande concentração de terras (latifúndios), na desigualdade de rendas, em pobreza, altos índices de mortalidade infantil e analfabetismo”[29].

Reivindicando, pois, justiça social, foi que se formaram os movimentos sociais latino-americanos: México (1910-1917), com Francisco Pancho Villa e Emiliano Zapata; Bolívia (1951), com Francisco Paz Estenssoro; e Cuba (1959), com Fidel Castro e Che Guevara. Desses movimentos resultou, é verdade, a ditadura de Fidel, em Cuba, mas as demais ditaduras que se instalaram (na Bolívia, em 1964, com o golpe militar de René Barrientos; no Chile, em 1973, com o golpe encabeçado por Augusto Pinochet e no Brasil, em 1964, com o golpe militar), tiveram, todas elas, apoio dos Estados Unidos e foram motivadas pelo fato de que os governos desses países, com presidentes democraticamente eleitos, cabe frisar (Victor Paz Estenssoro, na Bolívia; Salvador Allende, no Chile e João Goulart, no Brasil, que fora eleito vice-presidente e assumira após a renúncia de Jânio Quadros) demonstravam, abertamente, seu interesse em promover ações típicas do ideário socialista, embora não completamente e com características muito próprias.

O fato inconteste é que esses governos foram derrubados pelas elites que se sentiam ameaçadas pelas reformas e por receio dos Estados Unidos de perder a sua hegemonia ideológica, baseada, obviamente, nos preceitos do capitalismo. Assim, as ditaduras que se formam nesses países a partir de então – cuja história não temos o direito de esquecer, pois que nos atinge diretamente – tiveram por base a luta contra o socialismo e a defesa do capitalismo.

Desse modo, se Cuba, URSS, China, Albânia e os países do leste europeu, em nome da igualdade, suprimiram a liberdade, nada foi muito diferente no Brasil, no Chile, na Bolívia e em certas ocasiões na Argentina, que, em nome da segurança e da defesa dos ideais capitalistas, suprimiram liberdades civis e políticas, ou seja, aniquilaram a democracia.

Disse, recentemente, o grande filósofo americano da atualidade, George W. Bush, que o mundo está dividido entre o bem e o mal e compete a todos a escolha entre apoiar os Estados Unidos, ficando do lado do bem, ou ser considerado, inevitavelmente, do lado do mal, no caso de oposição aos propósitos americanos.


Acho que temos capacidade para produzir pensamentos mais relevantes que esses e recuso, por isso, qualquer tipo de pecha injustificada, baseada apenas em postulados ideológicos. Deixar no ar que qualquer manifestação de indignação contra a injustiça social provocada pelo capitalismo mundial, propugnando a defesa dos direitos sociais, equivale a se qualificar como ditador e antidemocrático é uma bomba de nêutron, um autêntico atentado terrorista contra o conhecimento científico e a evolução da humanidade.

Na linha de perversão de valores que se alastra pelo mundo, aliás, tentam nos fazer crer que o Bush é o defensor “mor” da democracia mundial (quando a sua intenção verdadeira é apenas obter mais petróleo) e quem se puser em defesa dos direitos humanos contra sua escalada é anti-democrático.

Mas, como a defesa da ordem jurídica, instituída e garantida pelo Estado Social, pode ser um ato antidemocrático?

O problema, como dito acima, é que quando se fala de direitos sociais no Brasil tem-se a impressão de que não se está falando de direitos. Por uma razão isonômica, não se pode fazer apologia ao descumprimento dos direitos sociais, pois estes, no mínimo, são tão direitos como qualquer outro.

Não se trata, ademais, de negligenciar, desconhecer, a realidade das pequenas e médias empresas brasileiras. Muitas empresas, sobretudo as pequenas e médias, enfrentam dificuldades econômicas, que em grande medida constitui a causa do não cumprimento integral dos direitos trabalhistas (isto, aliás, foi reconhecido no texto, mas muitos não quiseram ver o que estava escrito). Entretanto, é muita inocência (ou má intenção) imaginar que se resolva tal problema com a redução dos direitos sociais, porque isto implica reduzir o valor do trabalho, diminuindo a distribuição da renda produzida e reduzindo, conseqüentemente, a fonte de custeio da rede de segurança social (a não ser, como dito, que se ponha em discussão a redefinição das fontes de custeio do sistema). A conseqüência é óbvia: agravamento do problema social do qual todos são vítimas, e, pior, sem benefício algum para as pequenas e médias empresas. Afinal, estas dependem do mercado consumidor interno e este é formado, sobretudo, pelos próprios trabalhadores.

O fato é que as pequenas e médias empresas brasileiras (impulsionadas por bravos e respeitados brasileiros) estão sendo assoladas pelos arranjos globais capitalistas de cunho naturalmente monopolista e que se acentuam quando o Estado não intervém no mercado para a sua proteção (que não deve ser pensada na perspectiva da redução dos direitos trabalhistas, pois isto, como visto, é pura ilusão de ótica). As grandes empresas impõem contratos economicamente inviáveis às pequenas e médias empresas que, sem alternativa, são obrigadas a descontar em cima dos trabalhadores. Aí vem um “economista” de plantão, que defende os interesses de grandes corporações, e diz que a solução do problema das pequenas e médias empresas é a redução do direito dos trabalhadores. Lá na ponta da perversidade do sistema, o trabalhador “paga o pato” e ainda é acusado de culpado pela crise econômica que devasta o país.

A partir desse falso pressuposto, veja o que acontece nas audiências trabalhistas que se realizam por este nosso Brasil afora: José (um trabalhador) reclama o recebimento de suas verbas rescisórias (aviso “breve”, como se diz popularmente, e outras parcelas). Total: cerca de R$ 2 mil. Trabalhou dois anos e de um dia para o outro, sem qualquer motivação, se viu desempregado. Prestava serviços para uma empresa, que, por sua vez, foi contratada por uma grande empresa. O contrato entre ambas obrigou a primeira a descumprir os direitos de José (um desempregado). Na audiência, a grande empresa diz que não tem nada com isto, que apenas usou o seu direito liberdade de contratar a pequena empresa.

Esta, considerada, então a real empregadora, diz que não tem como pagar o valor pretendido por José (um caloteiro, porque não pagou a conta da padaria). Então todos na audiência (juiz, advogados, prepostos – falando palavras esquisitas: prescrição; ilegitimidade; exclusão da lide; pressupostos processuais; dificuldade econômica…) voltam-se para o José (agora visto como um homem bom e compreensível) e perguntam: “E agora José?” Como se o dissessem: “Você causou este problema todo e agora precisa nos dar uma solução” (uma solução rápida, pois não há muito tempo a perder com esta audiência de uma reclamação com valor tão baixo). Indagam-lhe:

“Aceita receber apenas R$ 1 mil?”. E alguém diz: “Se fosse eu aceitava?” E o José, aceitando o “acordo”, sai dali achando que cometeu um grande crime ao ter tentado receber seu “aviso breve”…


E quando o José, que saía de casa para trabalhar todos os dias às 5h. da manhã; trabalhava até às 20h.; recebia um mísero salário de R$ 350,00 por mês; não recebeu pelas horas extras; e que foi dispensado depois de 02 (dois) anos, sem receber um tostão, ler no jornal que cobrar direitos é um ato de banalidade, e que isto é que gera o desemprego de milhares de pessoas, o que ele pensará? Não cobrará nunca mais seus direitos, para deleite dos economistas? Ou, amaldiçoará esta nossa sociedade? Difícil prever!

Concretamente, nosso problema é de natureza econômica e se nada for feito de forma séria tudo tende a piorar, pois a cada ano vários novos cidadãos precisam se integrar ao mercado de trabalho para obterem um meio de sobrevivência.

Assim, é necessário que sejam discutidos, urgentemente: o sistema econômico; a realização da reforma agrária; a reforma tributária (que pode desonerar pequenas e médias empresas, sem sacrificar ainda mais os trabalhadores); a eliminação da corrupção (com punição dos corruptos); a eliminação do desvio de verbas da previdência social; a moralização no serviço público, sobretudo para cumprimento da Constituição quanto à efetivação de concurso público para acesso ao serviço público, com eliminação das malfadadas terceirizações e restrito respeito à regras para preenchimento das funções de confiança e dos cargos em comissão (requerendo-se, aqui, desde já, a necessária intervenção do Ministério Público para a defesa da ordem jurídica constitucional); a tomada de consciência, por todos, quando à importância da efetivação do custeio da segurança social; os incentivos às atividades produtivas; a tributação especial da especulação financeira e das grandes fortunas; o incentivo ao turismo; a reestruturação da escola pública etc. etc. etc.

Se nada disso resultar algum efeito benéfico (no que não se acredita), não se pode conceber que seria a mera diminuição dos já parcos direitos dos trabalhadores que o faria, até porque, como visto acima, este caminho da redução do custo do trabalho já está sendo trilhado no Brasil há pelo menos 30 (trinta) anos e até agora só agravou os problemas. Se isto, aliás, não for prova contunde do equívoco da proposição, o que será?

Deixar de lado a discussão em torno do custo do trabalho é importante, ademais, para que se inicie, de uma vez, uma discussão séria para a reconstrução completa de nossa sociedade a partir da formulação de um autêntico Pacto Social, que implicaria, é claro, a redistribuição igualitária da renda já produzida. Neste contexto, até uma rediscussão dos direitos dos trabalhadores poderia ser inserida, com reformulação de certos conceitos, ou seja, passando-se a admitir, para começar, como forma de reestruturação do mundo do trabalho, a co-gestão, a estabilidade no emprego e o fim do comércio de gente que se dá pela denominada “terceirização”.

Esta seria uma discussão séria e democrática. Mas não! É mais fácil enganar a população, não enfrentando, de forma séria e responsável, todas essas questões, e dizendo, simplesmente que o direito do trabalho é o culpado de tudo. O ataque generalizado e inconseqüente dos direitos dos trabalhadores, no entanto, como visto, é ato de perversão pura e simples da ordem democrática e, portanto, deve ser repelido por todos que desejam uma sociedade melhor, mais justa e menos violenta.

Aliás, sobre este último aspecto, costuma-se dizer que a violência, em hipótese alguma, pode ser creditada à miséria. Certamente, a violência possui diversas causas, inclusive de origem psicopática, ou seja, fruto da ação de pessoas portadoras de transtorno de personalidade, tanto que não são raros os casos de “crimes do colarinho branco” (embora seja raro o império da ordem jurídica para que sejam devidamente punidos os seus autores, que sequer são chamados de criminosos). Mas, não se pode desprezar o contexto social na formação do índice de criminalidade, até porque a psicopatia, sendo uma doença, não escolhe condição social e, no entanto, entre os assaltantes de banco e ladrões que furtam ou roubam carros, casas, bolsas, tênis não se tem, na enorme maioria dos casos, pessoas com boa formação educacional e solidez econômica.

Claro, nem todos os pobres se envolvem em crimes. Mas, se a partir do reconhecimento de que a quase totalidade dos criminosos advém da classe miserável desse país não se disser que uma coisa tem interferência na outra, corre-se o risco de dizer, também, que as crianças pobres que ficam nos sinais das grandes cidades fazendo malabarismo perante os carros o fazem por vocação (ou preguiça) e não por necessidade ou por mera falta de uma maior perspectiva na vida, ficando, aliás, sem resposta a indagação em torno do por que os nossos filhos (nós, os ricos) não têm a mesma vocação?


Mas, admitamos que a miséria não causa a violência. Isto, por acaso, legitima a miséria? Ou seja, só por isto não devemos pensar em acabar com a miséria? Aliás, seria esta uma boa oportunidade para provar quem tinha razão. Verificando dados concretos sobre o número da violência, após a diminuição da miséria, poderíamos concluir, sem maiores divagações filosóficas, se a miséria causa violência, ou não. E, de todo modo, ter-se-ia feito um bem para diversas pessoas, atraídas que foram para o padrão mínimo da dignidade humana.

O que nos impede, portanto, de buscar a efetivação dos direitos sociais? A que propósito servimos quando não queremos que os direitos sociais sejam concretizados? Só não me digam, por favor, que se o faz em nome da defesa da democracia!

Jorge Luiz Souto Maior juiz do trabalho, titular da 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí (SP), livre-docente em Direito do Trabalho pela USP e membro da Associação Juízes para a Democracia

[email protected]


[1]. Vide, a propósito, Dalmo de Abreu Dallari. Elementos de Teoria Geral do Estado. Editora Saraiva. São Paulo, 1995, pp. 123-135)

[2]. Ethan B., Kapstein, "Os trabalhadores e a economia mundial", Foreign Affairs, edição brasileira, publicação da Gazeta Mercantil, edição de 11/10/96, p. 5.

[3]. Idem, p. 5.

[4]. Ibidem, p. 12.

[5]. John Naisbitt apud Martin & Schumann, op. cit., p. 12.

[6]. A Armadilha da Globalização: o assalto à democracia e ao bem-estar social. Ed. Globo, São Paulo, 1997, p. 13.

[7]. Idem, p. 15-6.

[8]. "No mundo todo, cai drasticamente a porcentagem que capitalistas e detentores de patrimônio concedem ao financiamento de metas sociais dos governos." (Ibidem, p. 16)

[9]. Ibidem, p. 17.

[10]. Ibidem, p. 19.

[11]. Op. cit., "Os trabalhadores…", p. 5.

[12]. Martin & Schumann, op. cit., p. 20.


[13]. Idem, p. 20.

[14]. Em 1930, a revista inglesa, The Economist, publicava o seguinte comentário: "O maior problema da nossa geração consiste em que os fatos econômicos superam tanto os políticos que economia e política não conseguem manter o mesmo ritmo. Economicamente, o mundo tornou-se uma unidade comercial. Politicamente, continuou fragmentado. As tensões entre os dois desenvolvimentos opostos provocaram um abalo em cadeia na vida societária da humanidade." (Apud, Martin & Schumann, op. cit., p. 21)

[15]. "Uma força política tremendamente explosiva provém do medo do rebaixamento social que agora se manifesta. Não é a pobreza que ameaça a democracia, mas sim o pavor dela." (Martinn & Schumann, op. cit., p. 21).

[16]. Martin & Schumann, op. cit., p. 21.

[17]. "Do ponto de vista econômico, a integração dos mercados é altamente eficaz. Mas, na distribuição da riqueza assim gerada, a máquina econômica global, livre de controles estatais, não funciona nada bem e o número de perdedores excede de longe o de vencedores." (Martin & Schumann, op. cit., p. 319)

[18]. "Uma sociedade de constituição democrática só é estável quando os eleitores sentem e sabem que contam os direitos e interesses de cada um, e não só daqueles que têm superioridade econômica. Políticos democratas, portanto, precisam insistir no equilíbrio social e restringir a liberdade do indivíduo em benefício do bem comum. Ao mesmo tempo, porém, a economia de mercado exige a liberdade empresarial, se quiser progredir. Somente a perspectiva do ganho individual libera as forças que criam novas riquezas por meio de inovações e investimentos. Por isso, empresários e acionistas sempre tentaram impor o direito dos poderosos detentores do capital. O grande feito da política ocidental do pós-guerra consistiu na tentativa bem-sucedida de encontrar o equilíbrio certo entre esses dois pólos. A idéia do liberalismo com preocupação social assegurou aos cidadãos da Alemanha Ocidental quatro décadas de paz e estabilidade." (Martin & Schumann, op. cit., p. 314)

[19]. "Os trabalhadores e a economia mundial", Foreign Affairs, edição brasileira, publicação da Gazeta Mercantil, edição de 11/10/96, p. 3.

[20]. Martin & Schumann, op. cit., p. 314.

[21]. Ibidem, p. 316.

[22]. Apud, Martin & Schumann, op. cit., p. 317.

6. Ob. cit., p. 597.

[24]. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5 ed. Coimbra, Almedina, 2002, p. 337-8.

[25]. “Il n’est aucune société démocratique sans une indépendance de la magistrature : elle est la garantie d’une effectivité des normes protectrices des droits essentiels de l’homme.” (“ Recherche sur les Conflits du Travail », tese de doutorado em direito apresentada à Universidade de Paris I, p. 735).

[26]. “O Poder Judiciário no regime democrático, Revista Estudos Avançados, 18 (51), 2004, p. 152.

5. Curso de Direito Constitucional, Malheiros, São Paulo, 1997, p. 275.

[28]. Toda a História: história geral e história do Brasil. Editora Ática, 11ª. Edição. São Paulo, 2002, p. 409.

[29]. Idem, p. 409.

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