História de muitas

Niquita e o Dia Internacional da Mulher

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9 de março de 2007, 11h52

Na infância, passava as férias em casa de meus avós, no interior de São Paulo. A residência deles ficava na avenida principal que, tempos atrás, não tinha muito movimento. Da sacada de meu quarto, eu observava carroças, bicicletas, homens a cavalo, alguns carros. Nada muito interessante, a não ser Niquita. Quando ela passava, eu ganhava o dia.

Niquita era uma preta velha, miserável, louca e carismática. Moradora de rua, vivia acompanhada de cachorros vira-latas. Vez por outra, “desfilava” em andrajos bem no meio da avenida, acompanhada dos cães, muito parecidos com ela: esqueléticos, sarnentos, esfomeados, desenganados da vida.

Não sei se Niquita era velha ou se era moça com aparência de idosa, por causa dos maus tratos, do sofrimento, do abandono, da pobreza. Tampouco sei se era mesmo louca. Diziam que era porque “falava sozinha” o tempo todo. Disparava impropérios, aos gritos, em seu itinerário para lugar nenhum, rodeada da matilha, todos andando juntos, porém sem rumo definido. Impressionante em Niquita é que ela não apenas passava, mas passava aos berros, vociferando contra tudo e contra todos. Não me lembro do que ela dizia, mesmo porque não conseguia ouvir direito, mas, com certeza, ela tinha razão. Niquita era enfática, decidida, fascinante.

Eu costumava buscar entre parentes e amigos informações sobre essa estranha mulher. Ninguém sabia nada sobre ela, eu só ouvia especulações, suposições. Mas será que nenhuma boa alma se incomodava com a situação de Niquita? De onde ela veio? Por que parecia sempre tão sozinha? O que lhe fizeram para que fosse jogada naquela situação e ficasse indignada, enlouquecida? Ora, diziam-me, ela simplesmente é louca.

Niquita discursava ininterruptamente, sem que ninguém a levasse a sério. Certa manhã, disse todos os palavrões existentes em língua portuguesa, repetidamente e irada.

Tanta amargura tinha que ter uma razão. Ou várias. Quis encontrar Niquita, conversar com ela, mas não consegui. Crianças são muito vigiadas e sem autonomia. Até que Niquita morreu. Foi um choque. Quem contou não tinha detalhes sobre o fato. Onde enterraram Niquita? E os cachorros, alguém iria cuidar deles? Do que ela morreu? Sofreu, estava sozinha?

Jamais consegui dados sobre essa mulher. Talvez algumas pessoas se preocupassem com ela ou mesmo tenham cuidado, um pouco, dela, mas não pude confirmar nada.

Assim é a história de muitas mulheres. Sofrimentos, injustiças, reclamações jamais proferidas ou ouvidas. Sem amparo, sem ajuda, sem respeito, sem amor, sem dinheiro. Pena que não tenham todas saído para a rua, seguidas de seus filhos, seus cachorros, seus bens mais preciosos, gritando impropérios contra a desigualdade social, racial, sentimental, estrutural.

Niquita não era louca. Estava coberta de razão. Não sei, em detalhes, o que aconteceu em sua vida, mas, só de olhar para ela, ficava evidente que não foi nada de bom.

O que fazer quando a dor é grande e a incompreensão é maior ainda?

Embora as mulheres tenham conseguido avançar bastante na conquista de seus direitos, muitas ainda são espancadas dentro da própria casa, estupradas por pais, padrastos, irmãos e tios, assassinadas por maridos, ex-maridos, ex-namorados, desrespeitadas no local de trabalho, humilhadas dentro e fora da família. E tudo acontece em silêncio, quase sem reclamação. Faltam direitos, como o controle do próprio corpo, equipamentos sociais de amparo à maternidade, salários dignos e equiparados aos dos homens, e participação proporcional nas instâncias de poder.

Hoje, revendo o passado, é possível entender porque Niquita impressionava todo mundo: expunha seu infortúnio publicamente, nos moldes de um bloco carnavalesco, e ainda reclamava sem parar, em altos brados, exatamente como se deve fazer.

Autores

  • Brave

    é procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus” e “Matar ou morrer — o caso Euclides da Cunha”, ambos da editora Saraiva. Foi Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça no governo FHC.

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