Justiça Robin Hood

Papel de juiz é ser justo, e não fazer distribuição de renda

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8 de março de 2007, 14h29

Muitos afirmam que ser injusto com os ricos em questões patrimoniais para favorecer os pobres não é injustiça, mas distribuição de riqueza. Deve-se reconhecer a vinculação ainda imprecisa entre os conceitos de justiça social e de prestação jurisdicional. De qualquer modo, uma abordagem contemporânea do tema deve levar em conta a advertência de Celso Antônio Bandeira de Mello, professor da PUC-SP, seguramente um dos maiores nomes na área do Direito Administrativo em nosso país:

“As disposições constitucionais relativas à justiça social não são meras exortações ou conselhos, de simples valor moral. Todas elas são — inclusive as programáticas — comandos jurídicos e, por isso, obrigatórias, gerando para o Estado deveres de fazer ou não fazer. Há violação das normas constitucionais pertinentes à Justiça social — e, portanto, inconstitucionalidade — quer quando o Estado age em descompasso com tais preceitos, quer quando, devendo agir para cumprir-lhes as finalidades, omite-se em fazê-lo. Todas as normas concernentes à Justiça social geram imediatamente direitos para os cidadãos, não obstante tenham teores eficácias distintos. Tais direitos são verdadeiros “direitos subjetivos”, na acepção mais comum da palavra”.

A questão necessita ser investigada. O Judiciário brasileiro tem sido simultaneamente acusado de ser favorável aos pobres e aos ricos. Esquizofrenia à parte, seria o cúmulo da incerteza jurisdicional. Acrescenta-se a afirmação de que o privilégio teria uma natureza paroquial, favorecendo o reinado das oligarquias regionais.

Nossa magistratura não padece de tantas incertezas. Os juízes não se escondem atrás da lei, embora não possam ignorá-la, pois também devem respeito à legalidade, princípio necessário ao funcionamento do Estado Democrático de Direito. A legalidade, entretanto, só merece esse nome quando submetida à devida filtragem constitucional, vetor de realização de uma sociedade justa, que supere desigualdades sociais sedimentadas ao longo de séculos de cultura exploratória. Outros se apegam à aplicação literal (ou quase) da lei, em atitude que, aferrada ao positivismo clássico, muitas vezes reproduz a desigualdade social.

Construiu-se no Brasil uma estrutura legal que traduz na lei as desigualdades sociais e sustenta uma estrutura de poder de natureza oligárquica. Os donos do poder — tão bem retratados na obra clássica de Raymundo Faoro — ditaram regras pelo exercício do poder de legislar, seja pela lei em sentido estrito, emanada do Poder Legislativo, ou de outros diplomas normativos, às vezes até mais eficazes, como medidas provisórias, decretos, regulamentos, portarias. Os antigos coronéis de Victor Nunes Leal substituíram como instrumentos de opressão a enxada e o voto, agora se apresentando, embora com pele de cordeiro, como lobos esfaimados da era eletrônica e globalizante.

Aliás, as chamadas elites políticas e econômicas (leia-se o sistema financeiro, o mercado “oligopolizado” e seus representantes no poder político) não escondem a dificuldade de convivência com o controle judicial de constitucionalidade de suas diversas “leis”, “medidas” e “regulamentos” de toda ordem, sempre procurando utilizar seu fantástico arsenal de influência na mídia impressa e eletrônica para desacreditar não só o próprio Judiciário como Poder da República, mas também os juízes como seus agentes políticos, evidentemente no sentido abrangente da expressão e sem qualquer conotação partidária, diante da justificada proibição de exercício dessa atividade pelos magistrados.

Até mesmo episódios de corrupção, felizmente ainda em escala diminuta, especialmente se comparada com a do mesmo fenômeno nos outros Poderes, são hiperdimensionados nos meios de comunicação de massa, o mais das vezes sensíveis aos seus patrocinadores e anunciantes, embora a imprensa brasileira já tenha atingido um grau de excelência onde jornalistas exercem seu ofício — tão indispensável para a democracia como a função judicial — com independência dos departamentos comerciais das respectivas empresas.

Toda essa situação, entretanto, não mais consegue exercer seu predomínio absoluto, seja pela própria evolução da dinâmica social, ou ainda porque aquela legislação está sendo gradualmente transformada pela obrigatória adequação ao texto da Constituição-cidadã de 1988.

Aqui reside, de forma expressiva, a força transformadora do Judiciário, que, ao garantir direitos fundamentais, encontra a fonte primordial de sua legitimidade e responsabilidade como poder. Solucionar o caso concreto de acordo com princípios constitucionais, que muitas vezes implicam em alteração substancial do texto frio da lei, impõe o desafio de afastar sua defasagem em relação aos fatos sociais em constante mutação.

A força transformadora deriva do salutar exercício da cidadania, de que constitui exemplo recente a rejeição, simbolizada no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da ADI 2.591/DF, da enorme pressão para afastar a incidência do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) nas relações mantidas pelos bancos e demais instituições do sistema financeiro com os consumidores. É evidente que se essa aplicação lhes estivesse sendo favorável, não haveria porque tentar suprimi-la pela declaração de inconstitucionalidade, em boa hora repudiada pelo STF.

A democratização dos poderes do Estado amplia os debates e a intervenção dos vários setores da sociedade. A organização das forças vivas do país, essência da Constituição, é fundamento para o desejado equilíbrio dos resultados alcançados — ainda que nem sempre.

As organizações sociais, institutos de defesa do consumidor, entidades de proteção aos direitos humanos, cumprem seu relevante papel pleiteando a regulamentação da reforma agrária, o respeito aos direitos trabalhistas e o combate ao trabalho escravo, a definição de crimes contra as relações de consumo e os demais direitos fundamentais, com especial atenção para a violência contra a mulher, a discriminação das minorias, a proteção da infância e da adolescência, bem como do meio-ambiente, além do crescentemente justificado clamor pela segurança pública, deveres historicamente negligenciados pelo Estado.

Cabe aos juízes pacificar as relações sociais e não comprometer-se previamente, antes mesmo ou no limiar de cada processo, com pobres ou ricos, poderosos ou destituídos de influência econômica ou política. A sociedade deve exigir dos magistrados o cumprimento da Constituição Federal. Sendo conhecido de todos, seu texto não pode afirmar-se como incerteza ou loteria.

Várias pesquisas revelam que os magistrados reconhecem seu dever de exercer um papel ativo para reduzir as desigualdades entre regiões, indivíduos e grupos sociais. Nada de Robin Hood, nem de justiça paroquial. No dia-a-dia do Judiciário brasileiro se busca decidir com isenção, porém sem neutralidade, que em termos de ciência ou de ética não passa de um nefasto embuste. Os magistrados não podem descumprir o dever constitucional da decisão justa.

Nesse campo, deve ser lembrado o caráter pioneiro da pesquisa O Perfil do Magistrado Brasileiro, realizada sob os auspícios do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), sob a condução dos sociólogos Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Rezende de Carvalho, Manuel Palacios e Marcelo Burgos, que deu origem à publicação pela Ed. Revan, em 1997, da obra Corpo e Alma da Magistratura Brasileira. Na apresentação do texto, destacam seus autores:

“O deslocamento da tradição normativista consiste na melhor e na mais geral caracterização do novo sistema de orientação do magistrado brasileiro. Quanto a este aspecto, vale registrar que a perspectiva de um Judiciário neutro em relação aos processos de mudança social contou com a adesão de apenas 16,5% dos juízes de primeiro grau em atividade. Deste modo, reconhece-se um sistema de orientação que tem na instituição do Poder Judiciário um ator coletivo que quer se envolver no processo de mudança social; um outro, centrado no juiz como um agente solitário que aproxima o direito da justiça — onde, aliás, se encontra o mainstream da corporação; e um, ainda, distante desses, compreendendo aqueles juízes que se mantêm fieis ao cânon da civil law — com ênfase no tema da “certeza jurídica”. Finalmente, observa-se a presença embrionária e minoritária de uma corrente que acentua o uso alternativo do Direito e as formas extra-judiciais de composição do conflito” (p.14).

A isenção do magistrado confere segurança à cidadania. Instrumentalizá-la significa instituir eficientes mecanismos de controle e responsabilização civil e criminal, além de proporcionar garantias de boas condições de trabalho, justa remuneração e adequado sistema de aposentação. Este último exige — sem nenhuma diferenciação relativa ao conjunto dos trabalhadores — a integralidade e paridade dos proventos em relação à remuneração percebida quando em atividade, mediante, como é óbvio, a contrapartida da consignação de percentual remuneratório durante período de tempo que permita suportar o valor percebido após a aposentadoria.

Com sua inegável autoridade a respeito, o professor Dalmo Dallari, titular da Faculdade de Direito da USP e membro da Comissão Internacional de Juristas, assim se manifesta: “Longe de ser um privilégio para os juízes, a independência da magistratura é necessária para o povo, que precisa de juízes imparciais para harmonização pacífica e justa dos conflitos de direitos. A rigor, pode-se afirmar que os juízes têm a obrigação de defender sua independência, pois sem esta a atividade jurisdicional pode, facilmente, ser reduzida a uma farsa, uma fachada nobre para ocultar do povo a realidade das discriminações e das injustiças”.

Todas as teorias da Justiça se preocupam em justificar formas de inserção dos cidadãos, independentemente de sua condição social, nos benefícios acumulados pela sociedade. O Estado foi construção vitoriosa, assinalada pelo sistema do wellfare state. Com intervenção mínima, defendida pelos adversários desse sistema, ou máxima, ele deve buscar a superação das desigualdades sociais que são condutos de perversão e iniqüidade. Como poder do Estado, o Judiciário está obrigado a fazê-lo.

Os juízes brasileiros não querem privilegiar, com tomada radical de posição prévia, quaisquer pessoas, pois isto corrompe a Justiça e revolta a sociedade. O compromisso deve ser o de realizar melhor e mais eficiente Justiça, pois só com essa atitude e com o sentimento do que o saudoso vulto de Miguel Reale chamou de “eticidade radical” da função de julgar, eles já cumprem sua missão constitucional de pacificar a sociedade com uma justiça que não lembre a paz dos cemitérios. Assim agindo, proporcionarão a parcela que lhes cabe de equilíbrio a um ambiente social amargamente marcado pela violência, desigualdade, desemprego/subemprego, discriminação e violação aos direitos fundamentais da pessoa humana, que certamente atingem com maior crueldade aos despossuídos.

Não compete ao Judiciário, nem aos juízes, desfraldar ilusória bandeira de responsabilidade pelo trânsito social entre as classes e segmentos da sociedade. Messianismo produz mercado de ilusões, mas certamente nada resolve. De qualquer modo, ao tratar os direitos do trabalhador, do consumidor, dos ofendidos pela agressão predatória do meio-ambiente, da mulher vítima de assédio ou de violência física ou sexual, das minorias, dos oprimidos em geral, com a dignidade que, além de postulado constitucional a todos assegurado, é princípio de uma verdadeira — e não falaciosa — modernidade, exigente de globalização da solidariedade, os juízes cumprem seu dever social.

Podem não redistribuir renda ou papéis sociais — não é esta a sua função, mas ao buscar garantir o valor do justo, atendem, somente assim, à razão de sua presença como vetor de civilização na democracia contemporânea, marcada pelo espírito republicano e participativo.

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