Divisão de bens

Justiça do Distrito Federal reconhece união estável homossexual

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8 de março de 2007, 17h28

A Justiça do Distrito Federal reconheceu a união estável de um casal de mulheres para fins previdenciários e para divisão de bens. “A pretensão justifica-se com base além do princípio da igualdade: forte, também, na dignidade humana, numa sociedade justa e igualitária, na ausência de discriminação por atuação positiva da família, sociedade e Estado”, afirmou o juiz Rogério Volpatti Polezze, da 22ª Vara do Distrito Federal.

A ação foi proposta por uma servidora pública do Ministério da Fazenda e sua companheira. Elas argumentaram que já viviam em união estável há mais de 24 anos, com conhecimento de amigos e familiares. Segundo elas, o pedido foi feito administrativamente, mas negado.

Em sua contestação, a União sustentou que o não-reconhecimento da união estável não ofende ao princípio da igualdade, “tendo o poder constituinte originário sido claro ao restringir o conceito de família à união estável entre homem e mulher”. Para a defesa, não cabe ao Judiciário decidir tais questões. O parágrafo 3º, do artigo 226 da Constituição Federal diz que para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

Segundo o juiz, o casal apresentou “prova robusta de convivência duradoura, configurando às claras uma relação estável homoafetiva”. A União não contestou as provas.

Além de se basear nas provas, o juiz usou o texto constitucional para fundamentar a sua decisão. Citou o artigo 1º, que trata do respeito à dignidade humana. E também o artigo 3º que fala dos objetivos fundamentais da República, como a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor. Ainda o clássico artigo 5º, onde o constituinte previu que todos são iguais perante a lei.

O dispositivo que trata da família, “base da sociedade”, que foi usado como base da defesa da União também foi discutido pelo juiz. Além de citar, o parágrafo 3º, grifou o 4º que entende como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descentes.

Para decidir, Polezze também discorreu sobre o dinamismo do texto constitucional. “Trata-se de verdadeira expressão do poder constituinte, poder político, que, exatamente por sua natureza inovadora, não pode ser visto com amarras rigorosas, sob pena de fazer com que se torne, em poucos anos, um texto engessado”, concluiu.

O casal foi defendido pelo advogado Eduardo Piza Gomes de Mello, do escritório Piza de Mello e Primerano Netto Advogados Associados.

Família brasileira

A interpretação judicial sobre a união homossexual pode vir a criar, inclusive, a quarta família brasileira. No atual contexto, a Constituição prevê três enquadramentos de família. A decorrente do casamento, a família formada com a união estável e a entidade familiar monoparental (quando acontece de apenas um dos cônjuges ficar com os filhos).

Ao julgar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade em fevereiro de 2006, o ministro Celso de Mello afirmou que a união homossexual deve ser reconhecida como uma entidade familiar e não apenas como “sociedade de fato”. A manifestação foi pioneira no âmbito do Supremo Tribunal Federal e indicou que a discussão sobre o tema deve ser deslocada do campo do Direito das Obrigações para o campo do Direito de Família.

A opinião do ministro foi explicitada no exame de uma ação proposta pela Associação Parada do Orgulho Gay, que contestou a definição legal de união estável: “entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família” (artigo 1.723 do Código Civil).

Celso de Mello extinguiu o processo por razões de ordem técnica, mas teceu considerações sobre o que afirmou ser uma “relevantíssima questão constitucional”. O ministro entendeu que o STF deve discutir e julgar, em novo processo, o reconhecimento da legitimidade constitucional das uniões homossexuais e de sua qualificação como “entidade familiar”. Ele chegou até mesmo a indicar o instrumento correto para que a questão volte ao Supremo: a ADPF, Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.

Em sua decisão, o ministro cita a desembargadora gaúcha Maria Berenice Dias, que ressalta a importância do Judiciário como agente de transformação social: “Ao menos até que o legislador regulamente as uniões homoafetivas — como já fez a maioria dos países do mundo civilizado — incumbe ao Judiciário emprestar-lhes visibilidade e assegurar-lhes os mesmos direitos que merecem as demais relações afetivas. Essa é a missão fundamental da jurisprudência, que necessita desempenhar seu papel de agente transformador dos estagnados conceitos da sociedade.”

Leia a sentença


SENTENÇA Nº 237 /2007

PROCESSO Nº: 2005.34.00.037051-7

CLASSE: 1300 – AÇÃO ORDINÁRIA/ SERVIÇOS PÚBLICOS

AUTORA: XXXX XXXXX

RÉ: UNIÃO FEDERAL

SENTENÇA

XXXXX quer tutela jurisdicional que lhe permita designar formalmente XXXXX como sua companheira, beneficiária para fins estatutários e previdenciários, fazendo constar de seus assentamentos funcionais junto à União. As autoras argumentam que têm relação estável há mais de 24 (vinte e quatro) anos, com conhecimento de amigos e familiares. Afirmam que tentaram alcançar o pleito administrativamente, mas tiveram o pedido negado em decisão conhecida em 2004. Ao final, pedem que a demanda corra em segredo de justiça; determinação à ré de reconhecer a união estável entre o casal, não fazendo distinção por tratar-se de relação homoafetiva.

2- Decisão de fls. 365/367, indeferindo antecipação de tutela.

3- Contestação da ré (fls. 368/378), atacando pretensão inicial, por entender inexistir ofensa ao princípio da igualdade, tendo o poder constituinte originário sido claro ao restringir o conceito de família à união estável entre homem e mulher; o mesmo sucedendo em nível legal; diz que, ante manifestações legais, restringindo união estável apenas à relação heterossexual, restaria descabido ao Judiciário atender ao pedido.

4- Autoras apresentaram réplica (fls. 380/387).

5- Não foram requeridas provas, tendo, as autoras, salientado que a ré não contestou os fatos, mas apenas seus efeitos.

6- As autoras apresentaram alegações finais. A ré reafirmou sua contestação.

7- Relatei e decido.

8- Da incompetência do Juizado Especial Federal. Observo, a despeito do valor da causa atribuído, competência do presente Juízo, vez que as autoras procuram afastar decisão administrativa que lhes negou direito ora pleiteado judicialmente. Incide, na hipótese, o art. 3, §1, inciso III, Lei n 10.259/01, afastando a competência do Juizado Especial Federal.

9- Preliminarmente. A despeito de ter apontado no mérito, vejo que o óbice ao pedido inicial, assinalado pela União, relativamente ao descabimento de o Judiciário atender ao pedido inicial, em verdade, diz respeito à suposta impossibilidade jurídica do pedido, razão pela qual analiso tal barreira em preliminar.

10- Inocorre tal impedimento à análise do mérito. É que, diversamente do que defende a ré, não existe lei em sentido formal, afastando a extensão do conceito familiar de união estável às relações homoafetivas. Portanto, em rigor, tenho para mim que, no caso, ocorre clara lacuna legislativa, pois se cuidou de relação heterossexual, restando-se omisso o tratamento acerca das homossexuais.

11- Registro que – e, nesse ponto, adianto parte do mérito – caso houvesse lei (portanto, matéria infraconstitucional), negando o direito reclamado, estou certo de que tal diploma restaria maculado por flagrante inconstitucionalidade.

12- Disso, a situação abertamente diz respeito à lacuna, e não proibição legal.

13- No mérito, com razão, as autoras. Vejamos.

14- De início, observo que as autoras acostaram à inicial prova robusta de convivência duradoura, configurando às claras uma relação estável homoafetiva. Tanto é nítida a suficiência do que juntaram à inicial que a ré não contestou os fatos, mas apenas seus efeitos jurídicos. Por isso mesmo, desnecessário prolongar fase instrutória.

15- Discutamos, pois, apenas os efeitos dos fatos apresentados.

16- Nesse diapasão, a Constituição Federal de 1988 apresenta fundamentos bastante sólidos à pretensão das autoras. Observem-se normas pertinentes:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I e II – omissis;

III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V – o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II e III – omissis;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”


“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 1º – O casamento é civil e gratuita a celebração.

§ 2º – O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

§ 3º – Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

§ 4º – Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

§ 5º – Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

§ 6º – O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.

§ 7º – Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.”

“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” (destaquei)

17- Da leitura do texto constitucional, concluo que a pretensão inicial justifica-se com base além do princípio da igualdade: forte, também, na dignidade humana, numa sociedade justa e igualitária, na ausência de discriminação por atuação positiva (e não apenas negativa, não se trata apenas de aceitar) da família, sociedade e Estado.

18- A dignidade da pessoa humana. Trata-se do principal direito constitucional, posto em absoluto destaque pelo constituinte originário, o que provoca efeitos inafastáveis na aplicação de todas as demais normas constantes da Constituição Federal:

“Existem autores que entendem que é a isonomia a principal garantia constitucional, como, efetivamente, ela é importante. Contudo, no atual Diploma Constitucional, pensamos que o principal direito fundamental constitucionalmente garantido é o da dignidade.

É ela, a dignidade, o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional posto e o último arcabouço da guarida dos direitos individuais. A isonomia serve, é verdade, para gerar equilíbrio real, porém visando concretizar o direito à dignidade. É a dignidade que dá a direção, o comando a ser considerado primeiramente pelo intérprete” (Nunes, Luiz Antonio Rizzatto, O princípio constitucional da dignidade da pessoal humana:doutrina e jurisprudência, São Paulo: Saraiva, 2002, 45)

19- O reconhecimento constitucional da importância da dignidade da pessoa humana é também reflexo de uma sociedade posterior a regimes totalitários, que, ainda que sob justificativa de vontade conforme a maioria, impunha atrocidades a partes da sociedade. Desnecessário lembrar o Estado Nazista Alemão, fazendo pouco de várias minorias (promovendo perseguições de religiões, bem como, o que se mostra eloqüente no caso concreto, de homossexuais).

20- Noutras palavras, o reconhecimento pela Constituição Federal da dignidade reforça idéia basilar de um núcleo duro, indispensável, inerente a qualquer pessoa, simplesmente, pelo fato de existir, barrando – e, aí, vê-se papel instrumental do princípio da igualdade – quaisquer diferenças, preconceitos, ainda que fossem revelador de entendimento de suposta maioria da sociedade.

21- Não vejo qualquer obstáculo forte para promover às autoras condições de terem uma relação amorosa saudável e feliz. Não constato qualquer motivo de monta para impor-lhes restrição no seu cotidiano, fazendo-as sentir cidadãs de segunda classe.

22- Restrição acerca dos direitos e efeitos jurídicos da união das autoras não se justifica, frise-se. É que o reconhecimento da pretensão inicial não interferirá em qualquer direito de qualquer outra pessoa. Diz respeito apenas e tão somente às autoras.

23- Isso equivale a reconhecer que, concretamente, o respeito a uma união homoafetiva revela, em primeiro plano, respeito à dignidade do casal; e, em segundo plano, que tal reconhecimento não prejudica outrem.

24- Não se aventa, então, nem mesmo, em tese, necessidade de fazer uso do princípio da proporcionalidade:

“Assim, por exemplo, o princípio da intimidade, vida privada, honra, imagem da pessoa humana, etc. deve ser entendido pelo da dignidade. No conflito entre liberdade de expressão e intimidade é a dignidade que dá a direção para a solução. Na real colisão de honras, é a dignidade que servirá – via proporcionalidade – para sopesar os direitos, limites e interesses postos, e gerar a resolução. A isonomia, é verdade, também participará, mas, sem sombra de dúvida, a luz fundamental, a estrela máxima do universo principiológico, é a dignidade da pessoa humana.” (idem, 55)


25- Na lide em exame, qual a colisão de interesses: o das autoras, enquanto casal, versus conceitos (preconceitos) de parte (ainda que eventual maioria, pouco importa) da sociedade que condenaria tal espécie de liame amoroso?

26- Se for esse o contraste (a colisão de interesses), isso seria motivo para barrar a pretensão inicial?

27- Óbvio que não, pois, repise-se, aqueles que se sentirem ofendidos estariam comportando-se de forma nitidamente preconceituosa, fechando os olhos para felicidade íntima de grupos homossexuais. De um lado, preconceito; de outro, pessoas que não estariam recebendo tratamento suficiente conforme sua dignidade.

28- Ora, existência de preconceito contra homossexuais é fato, e, por isso mesmo, deve ser visto de frente e desestimulado por todos, em especial, pelos Poderes Constituídos.

29- O dinamismo das normas constitucionais. A Constituição Federal não pode ser interpretada como qualquer lei. É muito mais: trata-se de verdadeira expressão do poder constituinte, poder político, que, exatamente por sua natureza inovadora, não pode ser visto com amarras rigorosas, sob pena de fazer com que se torne, em poucos anos, um texto engessado, incapaz de atender ao dinamismo natural de qualquer sociedade:

“Já se expôs, um pouco mais atrás, a prevalência, na moderna doutrina, da concepção objetiva da interpretação, pela qual se deve buscar, não a vontade do legislador histórico (a mens legislatoris), mas a vontade autônoma que emana da lei. O que é mais relevante não é a occasio legis, a conjuntura em que editada a norma, mas a ratio legis, o fundamento racional que a acompanha ao longo de toda a sua vigência. Este é fundamento da chamada interpretação evolutiva. As normas, ensina Miguel Reale, valem em razão da realidade de que participam, adquirindo novos sentidos ou significados, mesmo quando mantidas inalteradas a suas estruturas formais.

(…)

Essa interpretação evolutiva se concretiza, muitas vezes, através de normas constitucionais que se utilizam de conceitos elásticos ou indeterminados, como os de autonomia, função social da propriedade, redução das desigualdades etc., que podem assumir significados variados ao longo do tempo. Por vezes, uma emenda constitucional, introduzindo modificação em algum subsistema constitucional, pode alterar a compreensão de conceitos e institutos já existentes.” (Barroso, Luís Roberto, Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora – 3 ed. – São Paulo: Saraiva, 1999, 143-144)

30- Indiscutível que a Constituição, por natureza, é fruto de forças políticas diversas, por vezes, antagônicas. Não é raro encontrar exemplos de aparente conflito dentre suas normas. De qualquer forma, tal realidade não impede sua aplicação prática (nem poderia, claro, sob pena de aceitar-se anarquia). Solução para aparentes conflitos é o princípio da unidade da Constituição, que impõe ao intérprete “dever de harmonizar as tensões e contradições entre normas” (idem, 188).

31- Nesse turno, questiono: num ponto, a Constituição é pródiga, ao posicionar-se contra preconceitos e discriminações, colocando em alto relevo proteção à dignidade; num outro ponto, prevê união estável apenas de – numa interpretação literal – um homem com uma mulher, nada dizendo de um casal homossexual (masculino ou feminino). Então, o que concluir: os homossexuais não podem ter reconhecido direito de viver uma relação amorosa estável com respectivos reflexos jurídicos?

32- Não, não é essa a resposta, pois: (i) estar-se-ia colocando de lado princípio da dignidade (e o da igualdade, nitidamente instrumental); e (ii), além disso, manter-se-ia claro conflito na aplicação da Carta ao mundo dos fatos, retirando da esfera jurídica dos homossexuais o direito à união estável, a viver uma relação amorosa como qualquer pessoa.

33- Claro prejuízo para a dignidade dos homossexuais.

34- Disso, única solução, de forma a prestigiar dignidade, igualdade e proibição de preconceitos e discriminações, é reconhecer que a Constituição não exclui a relação estável dos homossexuais.

35- Nesse ponto, chamo atenção, servindo-me do princípio da unidade, para algumas considerações:

(i) diante do art. 227 acima, fosse o caso de um casal heterossexual ter filho homossexual, não seria dever de todos, inclusive, da família, a proteção contra qualquer discriminação em face de tal orientação sexual do filho, promovendo sua felicidade completa, inclusive, dele próprio constituir adiante uma família (homossexual)?

(ii) diante da dignidade e igualdade, qual a diferença de monta entre um casal heterossexual sem filho (por qualquer razão) e casal homossexual?

(iii) os parágrafos 3 e 4 do art. 226 não são bastante claros no sentido de estender o conceito de família para além de uma união entre um homem e mulher?


(iv) então, porque, diante de princípios basilares do ser humano, além de imprecisões próprias de um texto constitucional (que servem para enriquecer a aplicação das normas constitucionais ao longo do tempo), iríamos fechar os olhos, ignorando realidade de milhões de pessoas(1)?

36- Conclusão pela exclusão e discriminação não me soa razoável.

37- Direito fundamental. Estou certo de que o pedido inicial estampa um direito fundamental, qual seja: o de reconhecer direito de qualquer casal homossexual ser visto além de uma sociedade de fato, mas, sim, como família.

38- Noutras palavras, discute-se, neste feito, o direito de as autoras, formando um casal homossexual, de legitimamente serem reconhecidas como uma família: homossexuais têm direito de formarem família?

39- Eventual resposta negativa, como visto antes, contraria a essência respeitosa da nossa Constituição relativamente a diferenças de qualquer ordem, que, sendo avessa a preconceitos, quer uma sociedade diversificada, justa e solidária.

40- O Superior Tribunal de Justiça tem precedentes eloqüentes, reconhecendo direitos de os homossexuais formarem casais verdadeiros (e não meras sociedades fáticas):

“PROCESSO CIVIL E CIVIL – PREQUESTIONAMENTO – AUSÊNCIA – SÚMULA 282/STF – UNIÃO HOMOAFETIVA – INSCRIÇÃO DE PARCEIRO EM PLANO DE ASSISTÊNCIA MÉDICA – POSSIBILIDADE – DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO-CONFIGURADA.

– Se o dispositivo legal supostamente violado não foi discutido na formação do acórdão, não se conhece do recurso especial, à míngua de prequestionamento.

A relação homoafetiva gera direitos e, analogicamente à união estável, permite a inclusão do companheiro dependente em plano de assistência médica.

– O homossexual não é cidadão de segunda categoria. A opção ou condição sexual não diminui direitos e, muito menos, a dignidade da pessoa humana.

– Para configuração da divergência jurisprudencial é necessário confronto analítico, para evidenciar semelhança e simetria entre os arestos confrontados. Simples transcrição de ementas não basta.” (STJ, Terceira Turma, REsp 238715 / RS, Relator(a) Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, DJ 02.10.2006 – destacou-se)

“RECURSO ESPECIAL. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. RELACIONAMENTO HOMOAFETIVO. POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DO BENEFÍCIO. MINISTÉRIO PÚBLICO. PARTE LEGÍTIMA.

1 a 3 – omissis;

4 – Em que pesem as alegações do recorrente quanto à violação do art. 226, §3º, da Constituição Federal, convém mencionar que a ofensa a artigo da Constituição Federal não pode ser analisada por este Sodalício, na medida em que tal mister é atribuição exclusiva do Pretório Excelso. Somente por amor ao debate, porém, de tal preceito não depende, obrigatoriamente, o desate da lide, eis que não diz respeito ao âmbito previdenciário, inserindo-se no capítulo ‘Da Família’. Face a essa visualização, a aplicação do direito à espécie se fará à luz de diversos preceitos constitucionais, não apenas do art. 226, §3º da Constituição Federal, levando a que, em seguida, se possa aplicar o direito ao caso em análise.

5 – Diante do § 3º do art. 16 da Lei n. 8.213/91, verifica-se que o que o legislador pretendeu foi, em verdade, ali gizar o conceito de entidade familiar, a partir do modelo da união estável, com vista ao direito previdenciário, sem exclusão, porém, da relação homoafetiva.

6- Por ser a pensão por morte um benefício previdenciário, que visa suprir as necessidades básicas dos dependentes do segurado, no sentido de lhes assegurar a subsistência, há que interpretar os respectivos preceitos partindo da própria Carta Política de 1988 que, assim estabeleceu, em comando específico: “Art. 201- Os planos de previdência social, mediante contribuição, atenderão, nos termos da lei, a: […] V – pensão por morte de segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, obedecido o disposto no § 2º”

7 – Não houve, pois, de parte do constituinte, exclusão dos relacionamentos homoafetivos, com vista à produção de efeitos no campo do direito previdenciário, configurando-se mera lacuna, que deverá ser preenchida a partir de outras fontes do direito.

8 – Outrossim, o próprio INSS, tratando da matéria, regulou, através da Instrução Normativa n. 25 de 07/06/2000, os procedimentos com vista à concessão de benefício ao companheiro ou companheira homossexual, para atender a determinação judicial expedida pela juíza Simone Barbasin Fortes, da Terceira Vara Previdenciária de Porto Alegre, ao deferir medida liminar na Ação Civil Pública nº 2000.71.00.009347-0, com eficácia erga omnes. Mais do que razoável, pois, estender-se tal orientação, para alcançar situações idênticas, merecedoras do mesmo tratamento


9 – Recurso Especial não provido.” (STJ, Sexta Turma, REsp 395904 / RS, Relator(a) Ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, DJ 06.02.2006)

41- Consta do voto do Sr. Relator, Min. Humberto Gomes de Barros, do primeiro aresto, cuja ementa foi transcrita, análise pertinente da atual realidade:

“É grande a celeuma em torno da regulamentação da relação homoafetiva (neologismo cunhado com brilhantismo pela e. Desembargadora Maria Berenice Dias do TJRS). Nada em nosso ordenamento jurídico disciplina os direitos oriundos dessa relação tão corriqueira e notória nos dias de hoje. A realidade e até a ficção (novelas, filmes, etc) nos mostram, todos os dias, a evidência desse fato social.

Há projetos de lei, que não andam, emperrados em arraigadas tradições culturais.

A construção pretoriana, aos poucos, supre o vazio legal: após longas batalhas, os tribunais, aos poucos proclamam os efeitos práticos da relação homoafetiva.

Apesar de tímido, já se percebe algum avanço no reconhecimento dos direitos advindos da relação homossexual.

O reconhecimento da sociedade de fato (CC/16, Art. 1.363 – cf. REsp 148.897/ROSADO) tem servido para a divisão do patrimônio amealhado pelo esforço comum.

O INSS, motivado pela Ação Civil Pública n.º 2000.71.00.009347-0, editou a Instrução Normativa 25, de 7 de junho de 2000, que estabelece os “procedimentos a serem adotados para a concessão de benefícios previdenciários ao companheiro ou companheira homossexual. “. O ato permite a concessão de pensão por morte ou auxílio-reclusão ao companheiro ou companheira homossexual. Já é clara a relevância dessa relação afetiva no Direito Previdenciário.

Recentemente, em julgado de que participei, o TSE (RESPE 24.564/PA), entendeu que o relacionamento homossexual estável gera a inelegibilidade prevista no Art. 14, §7º, da CF. É que, à semelhança do casamento, da união estável e do concubinato presume-se na relação homoafetiva o forte laço afetivo, que influencia os rumos eleitorais e políticos. Por isso, o TSE atestou a existência duma “união estável homossexual”.

.Neste processo, a r. sentença, verdadeira monografia sobre o fato social da homossexualidade, demonstrou que o conceito de união estável não abrange o concúbio entre pessoas do mesmo sexo.

Como disse acima, nada disciplina os direitos oriundos da relação homoafetiva. Há, contudo, uma situação de fato a reclamar tratamento jurídico.

A teor do Art. 4º da LICC, em sendo omissa a lei, o juiz deve exercer a

analogia.

O relacionamento regular homoafetivo, embora não configurando união estável, é análogo a esse instituto. Com efeito: duas pessoas com relacionamento estável, duradouro e afetivo, sendo homem e mulher formam união estável reconhecida pelo Direito. Entre pessoas do mesmo sexo, a relação homoafetiva é extremamente semelhante à união estável.

Trago esse fundamento pois, ainda que não tido por ofendido, ele está implícito nas razões do acórdão recorrido. Além disso, o STJ pode se utilizar de fundamento legal diverso daquele apresentado pelas partes. Não estamos estritamente jungidos às alegações feitas no recurso ou nas contra-razões (Cf. AgRg no REsp 174.856/NANCY e EDcl no AgRg no AG 256.536/PÁDUA. No STF, veja-se o RE 298.694-1/PERTENCE- Plenário). Vinculamo-nos, apenas, aos fatos lá definidos (cf. AgRg no AG 2.799/CARLOS VELLOSO, dentre outros). A interpretação dos dispositivos legais é feita dentro de um contexto.

Finalmente, não tenho dúvidas que a relação homoafetiva gera direitos e, analogicamente à união estável, permite a inclusão do companheiro como dependente em plano de assistência médica.

O homossexual não é cidadão de segunda categoria. A opção ou condição sexual não diminui direitos e, muito menos, a dignidade da pessoa humana.” (destacou-se)

42- Antecipação de tutela. Indispensável, (a) diante da clareza da procedência do direito pedido, (b) também, por tratar-se de assunto intrinsecamente relacionado à própria dignidade da pessoa humana, (c) levando-se em conta tempo já decorrido, forte no artigo 273, incisos I e II, Código de Processo Civil, conceder a antecipação pedida, para o fim de determinar à ré que promova os registros nos assentamentos funcionais, reconhecendo a união estável homoafetiva entre as autoras.

43- Diante do exposto, julgo PROCEDENTE a pretensão inicial (análise do mérito, art. 269, inciso I, do CPC), reconhecendo e determinando à ré que reconheça, para todos os fins (não fazendo qualquer distinção da união das autoras comparativamente a casais heterossexuais), que as autoras vivem em união estável homoafetiva. Por conseguinte, a ré deverá fazer registro da autora Lenivone como companheira da autora Tânia para fins de designação e concessão de benefícios previdenciários.

44- Forte na antecipação concedida, em 10 (dez) dias, a ré deverá promover a designação da autora Lenivone como dependente da autora Tânia, sob pena de multa diária no valor de R$200,00 (duzentos reais).

45- A ré deverá comprovar nos autos cumprimento da antecipação de tutela deferida.

46- A União deverá, também, ressarcir as autoras das custas, bem como deverá pagar honorários advocatícios, os quais arbitro no valor de R$300,00 (trezentos reais).

47- Defiro que o feito corra em segredo de justiça (fl. 33), devendo a secretaria providenciar com urgência as anotações pertinentes, em razão do longo lapso temporal sem respectiva análise, inclusive, tomando especial cautela, quando das publicações pertinentes ao feito.

48- Sentença sujeita à remessa necessária.

P.R.I.

Brasília/DF, 26 de fevereiro de 2007.

ROGÉRIO VOLPATTI POLEZZE

Juiz Federal Substituto da 22ª Vara do DF

Nota de Rodapé

1- É comum ler em periódicos que aproximadamente 10% (dez) por cento da população é formada por homossexuais.

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