Poder de fiscalização

Lei semelhante à já analisa em ADI pode ser alvo de Reclamação

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8 de março de 2007, 0h02

Se o Supremo Tribunal Federal decidir, em controle abstrato, pela constitucionalidade ou não de determinada lei e, mesmo assim, a administração pública ou o Judiciário relutar ou insistir em aplicar lei semelhante, o caso pode ser levado ao Supremo por meio de Reclamação. O entendimento é do ministro Gilmar Mendes.

Ele suspendeu, liminarmente, decisão da 1ª Vara do Trabalho de Petrolina (PE), que considerou como pequeno valor para pagamento de débitos do município de Petrolina no valor de R$ 4,2 mil.

No Supremo, o município alegou que a Lei municipal 1.899/06 determina como pequeno valor a quantia de R$ 900 para pagamento de débitos. Entretanto, segundo o município, esta lei foi afastada pelo juízo trabalhista, que considerou a “matéria de atribuição privativa de lei federal”, sendo regulada pelo artigo 87 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que estipulou como pequeno valor a quantia referente a 30 salários mínimos.

Para o município, esta decisão afronta o entendimento do STF na ADI 2.868, que possibilitou aos estados membros fixar valor referencial inferior ao do artigo 87 do ADCT (30 salários mínimos).

“Em relação à lei de teor idêntico àquela que já foi objeto do controle de constitucionalidade no STF, poder-se-á, por meio da reclamação, impugnar a sua aplicação ou rejeição por parte da administração ou do Judiciário, requerendo-se a declaração incidental de sua inconstitucionalidade, ou de sua constitucionalidade, conforme o caso”, disse Gilmar Mendes. Ou seja, caso o STF tenha julgado a constitucionalidade de uma lei, por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade ou Ação Declaratória, não pode deixar de analisar a constitucionalidade de outra lei, com teor idêntico, quando provocado por Reclamação.

Conforme a decisão, esta análise da Reclamação reflete um “poder implícito” conferido ao STF para preservar a sua competência ou garantir a autoridade de suas decisões, “fiscalizando incidentalmente a constitucionalidade das leis e dos atos normativos”.

Gilmar Mendes entendeu ser possível reconhecer a constitucionalidade da lei municipal que limitou o pequeno valor em R$ 900, pois o entendimento do STF “assegurou a autonomia das entidades federativas, de forma que estados e municípios possam adequar o sistema de pagamento de seus débitos às peculiaridades financeiras locais”.

Veja a decisão

MED. CAUT. EM RECLAMAÇÃO 4.987-6 PERNAMBUCO

RELATOR : MIN. GILMAR MENDES

RECLAMANTE(S) : MUNICÍPIO DE PETROLINA

ADVOGADO(A/S) : JÚLIO JOSÉ TORRES DOS SANTOS

RECLAMADO(A/S) : JUIZ DO TRABALHO DA 1ª VARA DO TRABALHO DE PETROLINA (PROC Nº 01233-2005-411-06-00-6)

INTERESSADO(A/S) : ALMIR DA SILVEIRA COSTA

DECISÃO: Trata-se de reclamação, com pedido de liminar, ajuizada pelo Município de Petrolina/PE, em face de decisão do Juiz da 1ª Vara do Trabalho da Comarca de Petrolina/PE, proferida nos autos da Reclamação Trabalhista no 01233-2005-411-06-00-6.

O reclamante narra que, por meio da Lei Municipal no 1.899, de 19 de dezembro de 2006, estabeleceu em R$ 900,00 (novecentos reais) o referencial de pequeno valor para fins de aplicação do art. 100, § 3o, da Constituição Federal.

Assim procedendo, teria exercido sua autonomia legislativa para a definição do referencial de pequeno valor, tal como garantido pelo art. 87 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Apesar disso, a autoridade reclamada teria afastado a aplicação dessa norma municipal e, em sede de reclamação trabalhista, considerado como de pequeno valor uma condenação de R$ 4.217,69 (quatro mil, duzentos e dezessete reais e sessenta e nove centavos).

Após, em 30 de janeiro de 2007, o Município reclamante peticionou ao juízo reclamado informando a existência da Lei Municipal no 1.899/2006. A seguinte decisão foi então proferida (fl. 24):

A matéria trabalhista é regida por lei federal. Portanto, o teto legal para execução independe de precatório; é fixado por lei desta natureza. Assim, considerando-se que a lei federal (art. 87 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, acrescido pela Emenda Constitucional nº 37/2002) fixou o teto em 30 salários mínimos, deve este ser observado. A lei municipal não pode disciplinar matéria de atribuição privativa de lei federal. Cumpra-se, pois, a ordem exarada para pagamento.” (fl. 24).


É contra essa decisão que o reclamante se insurge. Alega, em síntese, que o ato impugnado viola os fundamentos determinantes da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADI no 2.868/PI, Rel. Min. Carlos Britto, Red. p/ o acórdão Min. Joaquim Barbosa, DJ 12.11.2004, a qual possui a seguinte ementa:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 5.250/2002 DO ESTADO DO PIAUÍ. PRECATÓRIOS. OBRIGAÇÕES DE PEQUENO VALOR. CF, ART. 100, § 3º. ADCT, ART. 87. Possibilidade de fixação, pelos estados-membros, de valor referencial inferior ao do art. 87 do ADCT, com a redação dada pela Emenda Constitucional 37/2002. Ação direta julgada improcedente.

Nessa ocasião, o STF teria fixado o entendimento de que os entes da federação têm liberdade para definir o valor de seus débitos de pequeno valor, valor esse que, poderia, inclusive, ser inferior ao previsto no art. 87 do ADCT.

O reclamante cita, ainda, as decisões liminares proferidas pelo Ministro Celso de Mello na Rcl no 2.986/SE (DJ 18.3.2005) e pelo Ministro Cezar Peluso na Rcl no 4.250/PE (DJ 22.5.2006) como precedentes favoráveis à sua pretensão.

Quanto à urgência da pretensão cautelar (periculum in mora), aduz que seria iminente o bloqueio de verbas públicas para a satisfação do crédito considerado pelo juízo reclamado, a seu ver erroneamente, como de pequeno valor.

Pede, em caráter liminar, a suspensão dos efeitos da decisão reclamada.

Passo a decidir o pedido de medida liminar.

Em análise sumária da controvérsia apresentada nestes autos, entendo presentes os requisitos para a concessão da medida liminar.

Creio que tal controvérsia reside não na concessão de efeito vinculante aos motivos determinantes das decisões em controle abstrato de constitucionalidade, mas na possibilidade de se analisar, em sede de reclamação, a constitucionalidade de lei de teor idêntico ou semelhante à lei que já foi objeto da fiscalização abstrata de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.

Após refletir sobre essa questão, e baseando-me em estudos doutrinários que elaborei sobre o tema, não tenho nenhuma dúvida de que, ainda que não se empreste eficácia transcendente (efeito vinculante dos fundamentos determinantes) à decisão(1), o Tribunal, em sede de reclamação contra aplicação de lei idêntica àquela declarada inconstitucional, poderá declarar, incidentalmente, a inconstitucionalidade da lei ainda não atingida pelo juízo de inconstitucionalidade.

Ressalto que essa tese não é estranha à Corte. No julgamento da Rcl nº 595 (Rel. Min. Sydney Sanches), o Tribunal declarou a inconstitucionalidade de expressão contida na alínea “c” do inciso I do art. 106 da Constituição do Estado de Sergipe, que outorgava competência ao respectivo Tribunal de Justiça para processar e julgar ação direta de inconstitucionalidade de normas municipais em face da Constituição Federal.

Esse entendimento segue a tendência da evolução da reclamação como ação constitucional voltada à garantia da autoridade das decisões e da competência do Supremo Tribunal Federal.

Desde o seu advento, fruto de criação jurisprudencial (2), a reclamação tem-se firmado como importante mecanismo de tutela da ordem constitucional.

Como é sabido, a reclamação para preservar a competência do Supremo Tribunal Federal ou garantir a autoridade de suas decisões é fruto de criação pretoriana. Afirmava-se que ela decorreria da idéia dos implied powers deferidos ao Tribunal. O Supremo Tribunal Federal passou a adotar essa doutrina para a solução de problemas operacionais diversos. A falta de contornos definidos sobre o instituto da reclamação fez, portanto, com que a sua constituição inicial repousasse sobre a teoria dos poderes implícitos (3).

Em 1957 aprovou-se a incorporação da Reclamação no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

A Constituição Federal de 1967 (4), que autorizou o STF a estabelecer a disciplina processual dos feitos sob sua competência, conferindo força de lei federal às disposições do Regimento Interno sobre seus processos, acabou por legitimar definitivamente o instituto da reclamação, agora fundamentada em dispositivo constitucional.


Com o advento da Carta de 1988, o instituto adquiriu, finalmente, status de competência constitucional (art. 102, I, l). A Constituição consignou, ainda, o cabimento da reclamação perante o Superior Tribunal de Justiça (art. 105, I, f), igualmente destinada à preservação da competência da Corte e à garantia da autoridade das decisões por ela exaradas.

Com o desenvolvimento dos processos de índole objetiva em sede de controle de constitucionalidade no plano federal e estadual (inicialmente representação de inconstitucionalidade e, posteriormente, ADI, ADIO, ADC e ADPF), a reclamação, na qualidade de ação especial, acabou por adquirir contornos diferenciados na garantia da autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal ou na preservação de sua competência.

A jurisprudência do Supremo Tribunal, no tocante à utilização do instituto da reclamação em sede de controle concentrado de normas, também deu sinais de grande evolução no julgamento da questão de ordem em agravo regimental na Rcl. nº 1.880, em 23 de maio de 2002, quando no Tribunal restou assente o cabimento da reclamação para todos aqueles que comprovarem prejuízo resultante de decisões contrárias às teses do STF, em reconhecimento à eficácia vinculante erga omnes das decisões de mérito proferidas em sede de controle concentrado.

A análise do quadro abaixo transcrito, sobre o número de representações propostas nos anos de 1990 a 2007, parece indicar que o referido instituto ganhou significativo relevo no âmbito da competência do STF(5).

Reclamações Constitucionais no Supremo Tribunal Federal

Processos distribuídos no período de 1990 a 2007

Ano Nº de processos Ano Nº de processos
1990 20 1999 200
1991 30 2000 522
1992 44 2001 228
1993 36 2002 202
1994 45 2003 275
1995 49 2004 491
1996 49 2005 933
1997 62 2006 837
1998 275 2007 6*

*atualizada até 31.1.2007 Fonte: BNDPJ/STF

Ressalte-se, ainda, que a EC n. 45/2004 consagrou a súmula vinculante, no âmbito da competência do Supremo Tribunal, e previu que a sua observância seria assegurada pela reclamação (art. 103-A, § 3º – “Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem aplicação da súmula, conforme o caso”).

A tendência hodierna, portanto, é de que a reclamação assuma cada vez mais o papel de ação constitucional voltada à proteção da ordem constitucional como um todo. Os vários óbices à aceitação da reclamação em sede de controle concentrado já foram superados, estando agora o Supremo Tribunal Federal em condições de ampliar o uso desse importante e singular instrumento da jurisdição constitucional brasileira.

Nessa perspectiva, parece bastante lógica a possibilidade de que, em sede de reclamação, o Tribunal analise a constitucionalidade de leis cujo teor é idêntico, ou mesmo semelhante, a outras leis que já foram objeto do controle concentrado de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.

Como explicado, não se está a falar, nessa hipótese, de aplicação da teoria da “transcendência dos motivos determinantes” da decisão tomada no controle abstrato de constitucionalidade. Tratase, isso sim, de um poder ínsito à própria competência do Tribunal de fiscalizar incidentalmente a constitucionalidade das leis e dos atos normativos. E esse poder é realçado quando a Corte se depara com leis de teor idêntico àquelas já submetidas ao seu crivo no âmbito do controle abstrato de constitucionalidade.

Assim, em relação à lei de teor idêntico àquela que já foi objeto do controle de constitucionalidade no STF, poder-se-á, por meio da reclamação, impugnar a sua aplicação ou rejeição por parte da Administração ou do Judiciário, requerendo-se a declaração incidental de sua inconstitucionalidade, ou de sua constitucionalidade, conforme o caso.

Na hipótese em exame, como já acentuado, não estamos a falar em “transcendência dos motivos determinantes” da decisão na ADI n° 2.868/PI. Não podemos olvidar, no entanto, que há uma controvérsia constitucional posta ao crivo do Tribunal: a compatibilidade ou não da Lei Municipal n° 1.899/2006 com o art. 87 do ADCT. E, por se tratar de uma questão constitucional idêntica àquela que foi objeto da ADI n° 2.868/PI, estou certo de que o Tribunal não pode se furtar à sua análise.

Na ADI n° 2.868/PI, de relatoria do Ministro Carlos Britto, o Tribunal fixou o entendimento de que é constitucional a lei da entidade federativa que fixa valores diferenciados àquele estipulado, em caráter transitório, pelo art. 87, inciso II, do ADCT. Entendeu-se, assim, que o art. 100, § 5o, da Constituição, permite que a lei fixe valores distintos como referencial de “pequeno valor” apto a afastar a incidência do sistema de pagamento, por meio de precatórios, dos débitos da Fazenda Pública.

A teleologia das normas constitucionais é a de assegurar a autonomia das entidades federativas, de forma que Estados e Municípios possam adequar o sistema de pagamento de seus débitos às peculiaridades financeiras locais. O referencial de “pequeno valor”, para afastamento da aplicação do sistema de precatórios, deverá ser fixado conforme as especificidades orçamentárias de cada ente da federação.

Parece claro, da mesma forma, que essa autonomia do ente federativo deverá respeitar o princípio da proporcionalidade. É dizer: não poderá o Estado ou o Município estabelecer um valor demasiado além, ou aquém, do que seria o valor razoável de “pequeno valor” conforme as suas disponibilidades financeiras. Cada caso é um caso, cujo juízo de proporcionalidade pressupõe a análise dos orçamentos de cada ente federativo.

A Lei do Município de Petrolina-PE fixou um valor de R$ 900,00 (novecentos reais), que me parece bastante razoável, mesmo se comparado com os parâmetros do art. 87 do ADCT. Recordo, neste ponto, que, no julgamento da ADI n° 2.868/PI, o Tribunal considerou razoável valor no montante de 5 (cinco) salários mínimos.

Ademais, ainda que o Tribunal não tenha se pronunciado expressamente sobre este tópico, a autonomia conferida aos entes federativos pelo art. 100, § 5o, da Constituição e pelo art. 87 do ADCT, abrange, inclusive, a possibilidade de que o referencial de pequeno valor não seja necessariamente fixado em quantidade de salários mínimos. O art. 87 do ADCT deixa claro que os valores nele estabelecidos têm vigência “até que se dê a publicação oficial das respectivas leis definidoras pelos entes da Federação”. A lei de cada ente da federação poderá fixar outros valores não vinculados ao salário mínimo.

Portanto, o referencial de pequeno valor – R$ 900,00 (novecentos reais) – fixado pela Lei Municipal n° 1.899/2006, para fins de aplicação do art. 100, § 3o, da Constituição Federal, deve ser respeitado pelo Juízo da 1ª Vara do Trabalho da Comarca de Petrolina/PE.

Com essas considerações, defiro o pedido de medida liminar para suspender os efeitos da decisão do Juiz da 1ª Vara do Trabalho da Comarca de Petrolina/PE, proferida nos autos da Reclamação Trabalhista no 01233-2005-411-06-00-6.

Comunique-se, com urgência.

Publique-se.

Requisitem-se informações ao Juízo da 1ª Vara do Trabalho da Comarca de Petrolina/PE.

Após, dê-se vista dos autos à Procuradoria-Geral da República.

Brasília, 7 de março de 2007.

Ministro GILMAR MENDES

Relator

Notas de Rodapé

1 — Rcl. nº 1.987, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 21.05.2004.

2 — Cf. Rcl. nº 141, Rel. Min. Rocha Lagoa, DJ de 25.01.1952.

3 — Cf. Rcl. nº 141, Rel. Min. Rocha Lagoa, DJ de 25.01.1952.

4 — Cf. CF de 1967, art. 115, parágrafo único, “c”, e EC 1/69, art. 120, § único, “c”. Posteriormente, a EC nº 7, de 13.04.77, em seu art. 119, I, “o”, sobre a avocatória, e no § 3º, “c”, do mesmo dispositivo, que autorizou o RISTF estabelecer “o processo e o julgamento dos feitos de sua competência originária ou recursal e da argüição de relevância da questão federal”.

5 — Quanto ao critério de numeração das Reclamações no STF, vale ressaltar que a Secretaria do Tribunal registrava, até a entrada em vigor do RISTF de 1970, em 15.10.1970, as Reclamações e as Representações em um mesmo “Livro de Andamento Processual de Representações e Reclamações”, e na mesma seqüência numérica (tal seqüência atingiu o nº 854, em processo distribuído em 02.10.1970). A partir do novo Regimento, a Secretaria passou a registrar somente as Representações no referido livro, iniciando novo registro para as Reclamações. Assim, em 04.11.1970, o novo “Livro de Andamento Processual de Reclamações” registrou, mais uma vez, a Reclamação de nº 1.

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