Limites na linha

Quebra de sigilo telefônico é exceção, reafirma Supremo

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6 de março de 2007, 19h54

A interceptação judicial telefônica só pode ser permitida para viabilizar a produção de prova e, ainda assim, como exceção. A regra é a inviolabilidade da comunicação telefônica. A tese foi reforçada pelo ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, ao rejeitar pedido da Interpol, feito por meio da Polícia Federal brasileira.

O pedido era o de quebra de sigilo telefônico da mulher de um francês foragido, cuja extradição foi deferida pelo próprio Supremo. Os policiais acreditam que, com os dados telefônicos da mulher, chegariam ao foragido. O pedido foi barrado.

Em seu parecer, pela rejeição do pedido, o Ministério Público Federal ressaltou que o pedido é de “interceptação telefônica dirigida a quem sequer está sendo investigado — a esposa do extraditando”. Assim seria impossível atendê-lo.

O ministro Celso de Mello acolheu o parecer e reforçou que a lei restringe “a possibilidade de interceptação telefônica, limitando-a, apenas, a uma única e específica função: a de viabilizar a produção de ‘prova em investigação criminal e em instrução processual penal’”. Ainda de acordo com o ministro, “o objetivo visado pela autoridade policial ultrapassa os fins que legitimam a utilização, sempre excepcional, da interceptação telefônica”.

Celso de Mello também discorreu sobre os direitos do extraditando. Segundo o ministro, “a essencialidade da cooperação internacional na repressão penal aos delitos comuns não exonera o Estado brasileiro – e, em particular, o Supremo Tribunal Federal – de velar pelo respeito aos direitos fundamentais do súdito estrangeiro que venha a sofrer, em nosso país, processo extradicional instaurado por iniciativa de qualquer Estado estrangeiro”.

Na decisão, Celso ressaltou que assumir a condição de extraditando não tira do estrangeiro "a condição indisponível de sujeito de direitos e de titular de garantias fundamentais, cuja intangibilidade há de ser preservada pelo Estado a que foi dirigido o pedido de extradição: o Brasil".

Leia decisão

EXTRADIÇÃO 1.021-2 REPÚBLICA FRANCESA

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

REQUERENTE(S): GOVERNO DA FRANÇA

EMENTA: EXTRADIÇÃO. PRISÃO CAUTELAR DECRETADA. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA PRETENDIDA PELA AUTORIDADE POLICIAL PARA EFEITO DE EXECUÇÃO DO MANDADO DE PRISÃO. HIPÓTESE QUE NÃO SE AJUSTA ÀS EXCEÇÕES TAXATIVAMENTE PREVISTAS NA CONSTITUIÇÃO. O SÚDITO ESTRANGEIRO, EMBORA SUBMETIDO A PROCESSO EXTRADICIONAL, NÃO SE DESPOJA DA SUA CONDIÇÃO DE SUJEITO DE DIREITOS E DE TITULAR DE GARANTIAS CONSTITUCIONAIS PLENAMENTE OPONÍVEIS AO ESTADO BRASILEIRO. PEDIDO DE INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA INDEFERIDO.

DECISÃO: O ora extraditando, contra quem foi expedido mandado de prisão cautelar (fls. 79 e 87/88), ainda não foi capturado, por se encontrar, “atualmente (…), em lugar incerto e não sabido (…)” (fls. 94).

Por tal razão, o Senhor Delegado de Polícia Federal, representante da INTERPOL, com a finalidade de cumprir o mandado de prisão em referência, postula seja autorizada, por esta Corte Suprema, interceptação telefônica destinada a viabilizar a localização do extraditando em questão (fls. 93/96).


A excepcionalidade desse pleito levou-me a determinar a prévia audiência do eminente Procurador-Geral da República (fls. 131).

O Ministério Público Federal, em parecer da ilustre Subprocuradora-Geral da República, Dra. CLÁUDIA SAMPAIO MARQUES, aprovado pelo eminente Procurador-Geral da República, assim se pronunciou sobre o pedido em causa (fls. 133/135):

1. A República Francesa, por meio da Nota Verbal 468, de 6 de outubro de 2005 e com base em Tratado de Extradição firmado entre a França e o Brasil, requereu a prisão preventiva para fins de extradição de (…).

2. O Ministro Relator, em 20 de dezembro de 2005, após verificar os requisitos previstos nos artigos 76 a 82 da Lei n.º 6.815/80, bem como no Tratado de Extradição, deferiu o pedido (fl. 79).

3. Ocorre que o extraditando encontra-se foragido, situação que vem impedindo a execução do mandado. Por essa razão, requereu o Delegado de Polícia Federal, Representante da Interpol, que seja autorizada a interceptação telefônica em duas linhas pertencentes à esposa do Extraditando, considerando ser esta a melhor forma para encontrar o estrangeiro em questão (fls. 93/96).

4. O Ministério Público Federal, instado a manifestar-se, posiciona-se contrariamente ao deferimento do pedido.

5. Como bem ressaltou o e. Ministro Celso de Mello, o objetivo visado pela autoridade policial ultrapassa os fins que legitimam sua utilização. A regra é a inviolabilidade das comunicações telefônicas, tendo como exceção as hipóteses de crimes apenados com reclusão e desde que a interceptação sirva como prova em investigação criminal e em instrução processual penal. Nesse sentido, a lição de José Afonso da Silva:

‘(…) Abriu-se excepcional possibilidade de interceptar comunicações telefônicas, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual. Vê-se que, mesmo na exceção, a Constituição preordenou regras estritas de garantias, para que não se a use para abusos. Oobjeto de tutela é dúplice: de um lado, a liberdade de manifestação de pensamento; de outro lado, o segredo, como expressão do direito à intimidade’ (…).

6. Em princípio, não há, no presente caso, situação que autorize a violação à intimidade da titular das linhas, tendo em vista que os dados que serão obtidos não servirão como prova dos delitos imputados ao extraditando.

7. Afirmam Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes, que a interceptação telefônica é ‘fonte de prova’, tendo a função de trazer ao conhecimento do juiz fatos relevantes da culpa ou da inocência do investigado, indiciado ou acusado. Ora, é sabido que este tipo de questionamento é incabível na esfera extradicional.


8. Ademais, mesmo que se admitisse a interceptação na hipótese em análise, o seu deferimento não prescinde da demonstração, com elementos objetivos, de que não existe outro meio de localização do extraditando, para fins de cumprimento do mandado de prisão. Existindo outros meios disponíveis, estes deverão ser utilizados, sendo vedada a utilização da interceptação telefônica. Qualquer ato jurisdicional que se distancie ou não justifique de modo satisfatório essas exigências legais constitui violação indevida de direito e garantia constitucional, contaminando de ilícito qualquer material advindo deste ato.

9. Ademais, o que se deseja, no presente caso, é a interceptação telefônica dirigida a quem sequer está sendo investigado – a esposa do extraditando. Deve-se atentar para o fato de que a Lei 9.296/96 não só regulamentou, mas também restringiu bastante a aplicação do referido instituto, não se podendo admitir que ele seja ampliado de forma a contrariar direito fundamental assegurado pela Constituição da República Federativa do Brasil, qual seja, a inviolabilidade do sigilo de comunicação como regra e, apenas excepcionalmente, a interceptação para fins de investigação criminal e instrução processual penal.

10. Assim, manifesta-se o Ministério Público Federal desfavoravelmente ao pedido de interceptação telefônica formulado pela autoridade policial às fls. 93/96.” (grifei)

Passo a apreciar o pedido formulado nesta sede extradicional.

E, ao fazê-lo, indefiro a postulação em causa. É que, tal como corretamente observado pelo Ministério Público Federal, o objetivo visado pela autoridade policial ultrapassa os fins que legitimam a utilização, sempre excepcional, da interceptação telefônica.

Cumpre referir, neste ponto, que o ordenamento constitucional brasileiro estabelece, como regra, o sigilo das comunicações telefônicas (CF, art. 5o, inciso XII). De outro lado, a interceptação constitui exceção ao direito fundamental à inviolabilidade do sigilo de comunicação, tal como acentuado, com particular ênfase, pelo magistério doutrinário (VICENTE GRECO FILHO, “Interceptação Telefônica”, p. 12, item n. II, “a”, 1996, Saraiva; LUIZ FRANCISCO TORQUATO AVOLIO, “Provas Ilícitas”, p. 133, item n. 4.3.3, “a”, 2003, RT; CÉSAR DARIO MARIANO DA SILVA, “Provas Ilícitas”, p. 54/55, item n. 3.2, 2002, LEUD; PAULO RANGEL, “Breves Considerações sobre a Lei nº 9.296/96 – Interceptação Telefônica”, “in” Revista Forense, vol. 344/218; ÂNGELO AURÉLIO GONÇALVES PARIZ, “O Princípio da Proibição das Provas Ilícitas e os Direitos Fundamentais”, “in” Revista Jurídica, nº 301, p. 71, item n. 3.3, v.g.).

Impende observar, por necessário, que o ordenamento constitucional indica, de modo taxativo, as hipóteses – sempre excepcionais – em que a garantia da inviolabilidade das comunicações telefônicas pode ser legitimamente afastada.

Em situação de normalidade institucional, a Constituição somente permite a interceptação telefônica para fins de investigação criminal ou, ainda, para efeito de instrução processual penal, consoante assinalado por eminentes autores (JOÃO ROBERTO PARIZATTO, “Comentários à Lei nº 9.296, de 24-07-96”, p. 12, 1996, Editora de Direito; ANTONIO SCARANCE FERNANDES, “A Lei de Interceptação Telefônica”, “in” “Justiça Penal 4 – Críticas e Sugestões – Provas Ilícitas e Reforma Pontual”, p. 53, item n. 4, 1997, RT; MARIA GILMAÍSE DE OLIVEIRA MENDES, “Direito à Intimidade e Interceptações Telefônicas”, p. 157, item n. 4.2.3, 1999, Mandamentos; ÉLIO WANDERLEY DE SIQUEIRA FILHO, “Escuta Telefônica – Comentários à Lei nº 9.296/96”, “in” Revista do Tribunal Regional Federal 5ª Região, nº 37, p. 25, item n. 4, v.g.).


Cabe enfatizar, presente esse contexto de normalidade da ordem político-jurídica, que a Lei nº 9.296/96, ao regulamentar o inciso XII do art. 5º da Constituição Federal, também restringe – em prescrição absolutamente compatível com o texto constitucional – a possibilidade de interceptação telefônica, limitando-a, apenas, a uma única e específica função: a de viabilizar a produção de “prova em investigação criminal e em instrução processual penal” (art. 1º, “caput”).

Essas hipóteses excepcionais, no entanto, que autorizam o afastamento da garantia da inviolabilidade das comunicações telefônicas – que não se reveste de caráter absoluto, como qualquer garantia de índole constitucional (RTJ 148/366 – RTJ 173/805-810 – RTJ 182/560, 567RTJ 190/139-143, v.g.) -, podem, ainda, estender-se, extraordinariamente, a outros casos, desde que o Estado, em situação de anormalidade (que se revele, por efeito de sua natureza mesma, derrogatória do regime de legalidade ordinária), venha a utilizar-se, apoiando-se nos mecanismos especiais de proteção de sua ordem institucional, dos denominados poderes de crise que a própria Constituição da República lhe outorga na vigência do estado de defesa (CF, art. 136, § 1º, I, “c”) ou do estado de sítio (CF, art. 139, III).

Nem se diga, de outro lado, que o estrangeiro, por sofrer processo de extradição, estaria reduzido, por tal motivo, a uma (inaceitável) situação de absoluta e completa sujeição ao poder do Estado brasileiro, com a conseqüente (e inadmissível) privação de seus direitos e garantias fundamentais.

A circunstância de o súdito estrangeiro assumir a condição de extraditando não lhe subtrai, no processo extradicional, em face das autoridades e agentes do poder, a condição indisponível de sujeito de direitos e de titular de garantias fundamentais, cuja intangibilidade há de ser preservada pelo Estado a que foi dirigido o pedido de extradição: o Brasil, no caso, como tem sido reiteradamente proclamado pela jurisprudência constitucional desta Suprema Corte (RTJ 134/56-58 – RTJ 177/485-488).

Tenho asseverado, em diversas ocasiões, que a essencialidade da cooperação internacional na repressão penal aos delitos comuns não exonera o Estado brasileiro – e, em particular, o Supremo Tribunal Federal – de velar pelo respeito aos direitos fundamentais do súdito estrangeiro que venha a sofrer, em nosso País, processo extradicional instaurado por iniciativa de qualquer Estado estrangeiro.

Tenho para mim que a natureza do processo extradicional – que não permite qualificá-lo como processo de índole condenatória (JOSÉ FREDERICO MARQUES, “Tratado de Direito Penal”, vol. I, p. 390, item n. 2, 1997, Bookseller) – não comporta a diligência pleiteada pela autoridade policial federal. É que a providência por ela pretendida em sede de extradição (interceptação telefônica, que constitui fonte de prova penal) não se destina a viabilizar investigação criminal nem a instruir processo penal de condenação instaurados no Brasil.

Há que se considerar, no ponto, a finalidade inerente à ação de extradição passiva e que, analisada na perspectiva do Estado brasileiro, sequer autoriza o Tribunal do foro (o Supremo Tribunal Federal, no caso) a examinar o fundo da controvérsia que motivou o pleito extradicional, não lhe cabendo proceder, por isso mesmo, a qualquer indagação de caráter probatório (RTJ 140/436 – RTJ 160/105 – RTJ 160/433-434 – RTJ 161/409-411 – RTJ 170/746-747):

PROCESSO EXTRADICIONALEXAME DA PROVA PENAL PRODUZIDA PERANTE O ESTADO ESTRANGEIROINADMISSIBILIDADE.

O modelo extradicional vigente no Brasil – que consagra o sistema de contenciosidade limitada, fundado em norma legal (Estatuto do Estrangeiro, art. 85, § 1º) reputada compatível com o texto da Constituição da República (RTJ 105/4-5 – RTJ 160/433-434 – RTJ 161/409-411) – não autoriza que se renove, no âmbito da ação de extradição passiva promovida perante o Supremo Tribunal Federal, o litígio penal que lhe deu origem, nem que se efetive o reexame do quadro probatório ou a discussão sobre o mérito da acusação ou da condenação emanadas de órgão competente do Estado estrangeiro. Doutrina. Precedentes.

(RTJ 183/42-43, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

Sendo assim, tendo em consideração as razões expostas, e acolhendo, ainda, a manifestação da douta Procuradoria-Geral da República, indefiro o pleito formulado, a fls. 93/96, pelo Senhor Delegado de Polícia Federal, representante da INTERPOL.

Brasília, 06 de março de 2007.

Ministro CELSO DE MELLO

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