O jovem e a lei

Adolescente que pratica ato infracional não fica impune

Autor

  • Ariel de Castro Alves

    é advogado conselheiro nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos vice-presidente do Projeto Meninos e Meninas de Rua diretor do Sindicato dos Advogados de São Paulo e colaborador da Justiça Global.

6 de março de 2007, 17h08

Pesquisas divulgadas por algumas instituições reforçaram o entendimento de que as principais vítimas da violência alarmante que toma conta do Brasil são crianças, adolescentes e jovens. Um recente trabalho coordenado pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP analisou mortes de jovens entre 1980 e 2002, concluindo que os homicídios contra crianças e adolescentes representaram nesse período 16% do total de casos ocorridos no país, sendo que 59, 8% dos crimes foram praticados com armas de fogo. O último estudo do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), divulgado no final do ano passado, afirmou que 16 crianças e adolescentes são assassinados por dia no Brasil. Entre 1990 e 2002, essas mortes aumentaram 80% no país.

O resultado da pesquisa divulgada pela Organização dos Estados Ibero- Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI) mostra um aumento, já diagnosticado em levantamentos do IBGE e em estudos da Unesco, das mortes violentas de jovens no Brasil. Não há nação, entre 65 países comparados, onde os jovens morram mais vitimados por armas de fogo do que no Brasil. O país também é o terceiro, num ranking de 84, em que mais jovens entre 15 a 24 anos morrem por homicídios.

O relatório do Mapa da Violência 2006 demonstra que 15.528 brasileiros, entre 15 a 24 anos, perderam a vida em 2004 em acidentes, homicídios ou suicídios causados por armas de fogo. Em mortes violentas, principalmente de jovens, o Brasil lidera a frente inclusive dos países que estão em estado permanente de guerras ou conflitos armados.

Os estados brasileiros que apresentam as maiores taxas de homicídios entre os jovens são Rio de Janeiro (102,8 mortes por 100 mil jovens), Pernambuco (101,5) e Espírito Santo (95,4). São Paulo ficou em 9º lugar (56,4), mas acima da taxa média nacional que é de 51,7 homicídios por 100 mil habitantes jovens. Entre 1994 e 2004, as mortes de jovens entre 15 e 24 anos aumentaram 48,4%, enquanto o crescimento populacional foi de 16,5%.

Também quando o assunto é desemprego e ausência de perspectivas profissionais, os jovens são os mais atingidos. No Brasil, o índice de desocupação juvenil chega a 45,5%, de acordo com dados do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese).

Apesar dessa alta vitimização dos jovens, a cada crime grave envolvendo adolescentes com repercussão na mídia e na sociedade em casos que atingem pessoas da alta sociedade, como o repugnante assassinato da ex-cunhada do empresário Jorge Gerdau, Ana Cristina Giannini Johannpeter, de 58 anos, ocorrido recentemente no Rio de Janeiro, ressurge a polêmica envolvendo o tema da redução da idade penal. Porém, é interessante ter observado a época que, quando do assassinato do índio Galdino Jesus dos Santos, que teve seu corpo queimado em 1997, por quatro jovens e um adolescente de classe alta de Brasília, não houve a mesma discussão.

No âmbito jurídico, podemos afirmar que a redução da idade penal não é possível de ocorrer no nosso ordenamento atual. O Brasil ratificou a Convenção da ONU de 1989, que define como crianças e adolescentes todas as pessoas com menos de 18 anos de idade, que devem receber tratamento especial e totalmente diferenciado dos adultos, principalmente nos casos de envolvimento criminal. Por esse entendimento, não podem jamais ser submetidos ao mesmo tratamento penal dos adultos em varas criminais e tribunais do júri, nem mesmo poderiam ficar custodiados em cadeias e presídios, apesar que, com relação a essa última questão, nem sempre a legislação é respeitada. Conforme levantamento feito esse ano pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, 680 adolescentes estão sendo mantidos irregularmente em carceragens nos vários estados da federação.

Os adolescentes devem receber o tratamento especializado previsto na Lei 8.069 de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), que prevê medidas sócio-educativas no artigo 112. Para tanto, existem as Varas Especializadas da Infância e Juventude, unidades de internação e de semi-liberdade e também programas de liberdade assistida e de prestação de serviços à comunidade. Esses dois últimos deveriam ser municipalizados. Outras medidas sócio-educativas previstas são a advertência e a reparação de danos.

Portanto, devemos ter bem claro que o adolescente que pratica um ato infracional é inimputável, mas não fica impune. Ele é responsabilizado conforme a legislação especial, que leva em conta a sua condição peculiar de desenvolvimento e a necessidade de reeducação e ressocialização. A redução da idade penal não é possível por se tratar de questão imutável, de cláusula pétrea na Constituição Federal de 1988.

O artigo 5º de nossa carta magna elenca os direitos e garantias fundamentais. Mas, ao final, define que o rol não é taxativo e sim exemplificativo, não excluindo outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios adotados pela própria Constituição Federal ou advindos dos tratados internacionais ratificados pelo Estado brasileiro. Portanto, as disposições da Convenção da ONU citada acima e o artigo 228 da CF, que trata da inimputabilidade dos menores de 18 anos, se somam ao rol dos direitos e garantias fundamentais do artigo 5º. E o artigo 60, parágrafo 4º, inciso 4º da carta magna, é bem claro ao dispor que não pode haver emenda constitucional para abolir direitos e garantias fundamentais.

Esse é um entendimento majoritário entre juristas e predominante até então na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e entre os próprios ministros do Supremo Tribunal Federal que já se manifestaram publicamente sobre o tema.

Outros cinco pontos que também precisam ser levados em consideração:

1) Os jovens com idades entre 18 e 28 anos representam praticamente 70% da população prisional brasileira, demonstrando que o Código Penal e suas punições não inibem os jovens adultos da pratica de crimes. Portanto, também não serviria para intimidar os adolescentes entre 16 e 18 anos.

É um antigo princípio do Direito Penal: “o que inibe o criminoso não é o tamanho da pena, mas sim a certeza de punição” (Marquês de Beccaria). Essa certeza de punição é que não existe no país, mas isso não se deve ao Estatuto da Criança e do Adolescente e sim ao funcionamento do sistema de Justiça como um todo, desde a atividade policial até os processos que tramitam lentamente no Judiciário. Na prática, menos de 3% dos crimes são esclarecidos no Brasil;

2) Um levantamento da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, divulgado no final de 2003 pelo jornal Folha de S. Paulo, mostrou que os adolescentes são responsáveis por apenas 1% dos homicídios praticados no estado e por menos de 4% do total de crimes, desfazendo o mito de que são os principais responsáveis pela criminalidade. Na verdade, são as principais vítimas da violência e da exclusão social no país;

3) Estudos já feitos pelo Ilanud (Instituto Latino Americano das Nações Unidas para prevenção do delito e tratamento do delinqüente) mostraram que os crimes graves atribuídos a adolescentes no Brasil não ultrapassam 10% do total de infrações. A grande maioria (mais de 70%) dos atos infracionais são contra o patrimônio, demonstrando que os casos de adolescentes infratores considerados de alta periculosidade e autores de homicídios são minoritários e o ECA já prevê tratamento específico para eles.

Outro argumento dos que defendem o rebaixamento da idade penal é que adultos utilizam as crianças e adolescentes para a execução de crimes. Nesses casos, temos de punir mais gravemente quem os utiliza e não quem é utilizado/explorado. Para tanto, já está em tramitação um projeto de lei nesse sentido no Congresso Nacional. Se também levarmos em consideração esse argumento, a idade penal seria reduzida para 16.

O problema não se resolveria e a criminalidade só aumentaria. Certamente, proporiam a redução para 14, 12, 10, 8 e assim por diante, sem qualquer êxito. Pelo contrário, teríamos criminosos cada vez mais precoces;

4) Os últimos censos penitenciários realizados em vários estados brasileiros têm demonstrado que, em média, a reincidência criminal no sistema prisional é de 60%. Já no sistema de internação da antiga Febem de São Paulo, por exemplo, apesar da crise permanente dessa instituição que há muitos anos é um mau exemplo para o país, a reincidência infracional é de 19%, segundo as fontes oficiais. Nos estados e em projetos sócio-educativos que cumprem a lei, os índices são ainda menores, menos de 5%.

Isso demonstra que os adolescentes, por esforço próprio e apoio de entidades, estão mais propícios à ressocialização, principalmente se receberem o tratamento adequado. Já o sistema prisional, muito pelo contrário, tem perpetuado as pessoas no mundo do crime. Infelizmente, a maioria dos estados mantém suas unidades de internação de adolescentes como mini-presídios.

Um diagnóstico nacional por amostragem, organizado pela Comissão da Criança e do Adolescente do Conselho Federal da OAB com o Conselho Federal de Psicologia (CFP), por meio de vistorias em unidades de internação, concluiu que a maioria dos estados brasileiros estão adotando políticas de mero encarceramento promíscuo, sem atividades educativas, profissionalizantes, culturais, esportivas e sem atendimento médico, acompanhamento jurídico e com estruturas inadequadas para a aplicação de medidas sócio-educativas.

Mas o que vai resolver isso não é mudar a lei e enviar os adolescentes para os presídios que estão muito piores: superlotados, cruéis, com poucas possibilidades de ressocialização e dominados por facções criminosas. O que precisamos é forçar os estados a cumprir a lei sob pena de responsabilidade dos gestores públicos. Eles é que deveriam ir parar atrás das grades;

5) Alguns países que reduziram a idade penal há quatro anos, como a Espanha e Alemanha, verificaram um aumento da criminalidade entre os adolescentes e acabaram voltando a estabelecer a idade penal em 18 anos e, ainda, um tratamento especial, com medidas sócio-educativas, para os jovens de 18 a 21 anos. Atualmente, 70% dos países do mundo estabelecem a idade penal de 18 anos. Muito se comenta sobre o que ocorre nos Estados Unidos.

Porém, visitando unidades de internação em alguns estados americanos, pude verificar que eles também aplicam medidas sócio-educativas para adolescentes que cometem atos infracionais e os estabelecimentos que visitei, aparentemente, realizavam um atendimento adequado, com atividades educativas, profissionalizantes, esportivas, culturais e atendimento psicológico, médico, jurídico, entre outros.

Só em casos excepcionais é que os adolescentes são encaminhados para o sistema penitenciário e, mesmo nesses casos, geralmente, só convivem com outros jovens da mesma faixa etária, não sendo misturados com a população prisional convencional. Todos os especialistas que conversei afirmaram que os jovens submetidos ao atendimento sócio-educativo acabam sendo muito mais ressocializados do que os que são submetidos ao sistema prisional naquele país.

Nesse sentido, o que precisamos no Brasil é do devido cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente e o aprofundamento da discussão sobre o Estatuto da Juventude no Congresso Nacional, visando garantir oportunidades, perspectivas e um futuro digno para as nossas crianças, adolescentes e jovens, bem distante dos cárceres, que, sem dúvida, são a forma mais cara de tornar as pessoas muito piores. A redução da idade penal seria como condená-los à pena de morte, impossibilitando qualquer tentativa de recuperação e reinserção na sociedade.

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    é advogado, conselheiro nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos, vice-presidente do Projeto Meninos e Meninas de Rua, diretor do Sindicato dos Advogados de São Paulo e colaborador da Justiça Global.

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