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Deixar estado legislar para combater crime não é solução

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

5 de março de 2007, 14h11

Em meio a um estado de coisas que se agrava dia a dia, influenciado pela grave e inusitada ocorrência da morte, no Rio de Janeiro, do menor João Hélio Fernando Veites, de seis anos de idade, arrastado impiedosamente por um veículo, o governador do estado proclamou a necessidade de legislação penal estadual. A proposta foi levada ao Senado Federal, onde a Comissão de Constituição e Justiça criou uma comissão para discutir a matéria, em 45 dias. A iniciativa do governador fluminense é compreensível. Os índices de violência não são iguais nas 26 unidades da federação e no Distrito Federal, o que permite supor que os estados deveriam decidir sobre crimes e penas no âmbito de seus territórios.

O Brasil é uma república federativa criada a partir de um estado unitário. Ao contrário dos Estados Unidos, onde as 13 colônias se uniram para formar uma federação e onde cada estado tem autonomia para dirigir seu destino, inclusive legislar sobre delitos e suas penas. Aqui, os estados sempre foram dependentes do poder central.

Na verdade, a proposta do chefe do Poder Executivo do Rio de Janeiro é, acima de tudo, uma tentativa de dar solução a um problema que se agrava a cada dia. Há quem evite ler ou assistir aos noticiários, tal a sucessão de fatos chocantes. Entre os mais recentes, está a morte de um casal de franceses que dirigiam uma ONG no Rio de Janeiro, em crime, segundo o afirmado, articulado por uma pessoa a quem acolheram, dando estudo e emprego, e uma bala perdida que atingiu uma jovem de 13 anos em São Paulo, durante assalto a uma agência bancária, deixando-a paraplégica (jornal O Estado de S. Paulo, 3/3/07, C6 e 3/2/07, C3)

Leis ideais

Mas se no Brasil tudo se solucionasse por meio da legislação, as coisas não seriam assim. A partir da Constituição de 1988, editada após longo período ditatorial, passamos a ter dispositivos de grande relevância para a defesa dos interesses individuais, coletivos e sociais. Os artigos 5º e 6º da carta magna desfiam dispositivos de grande relevância como, por exemplo, a definição em lei de qualquer discriminação atentatória das liberdades fundamentais (artigo 5º, XLI) ou um salário-mínimo capaz de atender às necessidades vitais básicas de um trabalhador e sua família, como moradia, alimentação, saúde, educação, lazer e outros justos benefícios (artigo 6º, IV).

Da mesma forma, a legislação posterior. O Código Civil, no artigo 1.565, parágrafo 2º, atribuiu exclusivamente ao casal o planejamento familiar e determinou que o Estado propicie recursos educacionais e financeiros. A Lei 10.741/03, artigo 37, deu ao idoso o direito à moradia digna no seio de sua família ou desacompanhado de seus familiares, quando assim o desejar. E assim outras tantas leis, nas mais variadas áreas do Direito.

Tantas são as promessas feitas nos textos legislativos, que só falta colocar mais um inciso no artigo 5º da Constituição, proibindo o aquecimento global no território brasileiro. Assim, em um passe de mágica, estaríamos livres do efeito estufa e de suas assustadoras conseqüências.

A realidade brasileira

Se um ser extraterrestre descesse no Brasil e lesse nossa legislação, concluiria, aliviado, que chegou ao melhor dos mundos. Entretanto, ao circular pelas ruas de uma cidade de porte médio ou grande, o alienígena ficaria incrédulo. Veria uma enorme população habitando na periferia, sofrendo os efeitos da violência diretamente, organizações criminosas exercendo o papel do Estado, serviços públicos de má qualidade ou até mesmo inexistentes. Dificilmente compreenderia por que o Código Civil, no artigo 1.525, parágrafo 2º, proíbe qualquer forma de planejamento familiar e, simultaneamente, o Estado permite que crianças passem os dias em um semáforo, simulando malabarismos, a pedir moedas a assustados motoristas.

Entre o ideal das normas e a dura realidade do cotidiano, principalmente para os menos favorecidos economicamente, ficaria o ET, tal qual fica a população, sem entender coisas banais. Por exemplo, por que criminosos podem utilizar celulares nos presídios e prejudicar milhares de pessoas, como a dona de casa Rosalina Ribeiro Régis que, supondo ser sua filha vítima de seqüestro, morreu de enfarte (O Estado de S. Paulo, 2/3/07, C3).

Na verdade, uma legislação afastada da realidade ou interpretada de maneira distante do Brasil real gera total perplexidade no cidadão comum. E isto não se dá apenas na esfera penal, mas também na civil e na administrativa. Por exemplo, é grande a dificuldade dos juízes ao ter que decidir se autorizam ou não um tratamento caríssimo pelo SUS (às vezes, no exterior), em prejuízo de outros necessitados, uma vez que a Constituição afirma, no artigo 196, que a saúde é direito de todos e dever do Estado.

Reivindicação de leis estaduais

Não faz parte da tradição brasileira os estados legislarem sobre Direito Penal. Desde a Constituição Republicana de 1891, reservou-se à União, privativamente, poderes para editar normas de Direito Criminal (artigo 34, parágrafo 23). Nos Estados Unidos da América, ao inverso, os 50 estados possuem legislação própria e assim, por exemplo, uns permitem a pena de morte e outros não.

Entretanto, embora não tenhamos história e tradição em legislar sobre Direito Penal, temos sobre Processo Penal. Isto porque, a partir da Constituição Republicana de 1891, os estados-membros tinham competência para legislar sobre processo em geral. Todavia, como lembra Julio Fabbrini Mirabete, poucos se utilizaram dessa capacidade de legislar (Processo Penal, 2ª. ed., p. 38).

Por isso mesmo, como lembra José Henrique Pierangelli, José Frederico Marques sempre foi crítico da legislação estadual (Evolução histórica do Processo Penal Brasileiro, p. 120), ensinando mais adiante o professor e procurador da Justiça que foi a Constituição promulgada em 16 de julho de 1934 que pôs fim ao sistema pluralista, ao estabelecer que competia privativamente à União legislar sobre direito processual (Processo Penal. Evolução Histórica e Fontes Legislativas, Ed. Jalovi, p. 166).

Portanto, não só nos falta experiência para legislar sobre Direito Penal, como a existente sobre Processo Penal revelou-se inapropriada.

Conclusão

Em breve síntese, a tentativa de buscar, por meio de leis estaduais, atenuar-se o problema da criminalidade, ao que tudo indica não será o melhor caminho, acabando os estados por se omitirem na elaboração de seus códigos e adotando o da União ou, após casos pontuais, editarem códigos (ou leis isoladas), sob o clamor de pressão popular. Outras vias devem ser tentadas e com a máxima urgência, entre elas a de aproximar as normas constitucionais e legais da realidade brasileira.

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