Suprema simplicidade

Supremo está mais próximo da sociedade, diz Carmem Lúcia

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4 de março de 2007, 15h48

Em entrevista à jornalista Bertha Maakaroun do jornal Estado de Minas, a ministra Carmem Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, a mais nova na Corte, afirma que o volume de processos não a intimida e que a presença feminina nos tribunais superiores ainda causa certa estranheza. Mas adverte: “a Justiça no Brasil está se tornando feminina”.

Nove meses depois de empossada, a ministra imprime a própria marca no exercício da função, permanentemente premida por um dilema: a necessidade de praticar a justiça concreta e a inquietação de, por maior que seja a dedicação, não responder com a presteza justa à demanda de quem recorre ao Judiciário. “O ser humano pode não pensar na injustiça, até o dia em que sofre uma. Nesse dia será preciso o juiz em quem confie”, considera Carmem Lúcia.

Leia a reportagem do Estado de Minas

No início, o estilo causou espanto. A ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha vai dirigindo o próprio carro ao Supremo Tribunal Federal (STF), um Golf prateado, ano 2001. Chegou a ser barrada à entrada da garagem.

“Olha, aqui só entra ministro”, avisou o segurança. “Eu sou ministra”, retrucou ela. “Onde está o seu carro?”, insistiu o funcionário. Língua afiada, a resposta provocou risos: “Ou bem aqui se entra ministro, ou bem se entra o carro”. Carmen Lúcia, que também recusava o carro oficial quando, no governo Itamar Franco, foi procuradora-geral do Estado, se explica: “Como todo brasileiro, uso o meu próprio transporte para ir ao trabalho. Fico assim à vontade para parar numa farmácia se precisar”. Carro oficial só em solenidades em que o Poder Judiciário é representado. A nova ministra dispensa a ostentação.

A dedicação ao trabalho dessa mulher, que é solteira e mora sozinha, é absoluta: dorme pouco, debruça-se de 15 horas a 16 horas por dia sobre os processos, Agravos e Habeas Corpus que aterrissam sobre a sua mesa. Lê e relê aproximadamente 2.600 despachos e decisões mensalmente. Apesar disso, como em todos os outros gabinetes de ministros, os carrinhos de novos processos não param de chegar. Numa rotina previsível, cerca de 40 batem à porta de sua casa pela manhã, e à tarde, no STF, juntando-se a outros 10.800 que esperam decisão.

Os processos a acompanham no café às 5h, quando soa o despertador. Marcam presença nos 30 minutos de sua esteira matinal. Acompanham-na ao longo do dia. São temas de conversa na hora do almoço com colegas da Corte, que não raro se reúnem em torno da mesa da mineira e desfrutam dos queijos e lingüiça de Espinosa, no Norte de Minas, despachados pelo pai toda a semana. A vida é monástica. Raramente freqüenta restaurantes, solenidades e eventos sociais.

Rigor ao julgar

Mais nova na Corte, portanto sempre a primeira a se pronunciar, Carmen Lúcia não se intimida. Em dezembro do ano passado relatou o processo e disse não às férias coletivas dos juízes e tribunais de segundo grau. Em seu gabinete, a disciplina é rígida e anunciada aos assessores, técnicos e analistas. Ninguém está autorizado a receber advogados, nem a falar pelo gabinete. As audiências de advogados são pedidas por escrito. “Meus assessores não recebem advogados, porque não participam da decisão judicial. Eles me ajudam muito na pesquisa. Mas quem prepara os votos sou eu”.

A “novata”, que acentua a mudança do perfil do pleno, é autora de vigorosa obra sobre direito constitucional. “A minha admiração intelectual por Carmen Lúcia é imensa”, assinala o decano ministro Sepúlveda Pertence. “Ela se destaca não só por sua capacidade intelectual, mas por sua dimensão humana agregadora”, faz coro a presidente do STF, Ellen Gracie. Os funcionários da Casa elogiam a sua sensibilidade. “Ela é formidável”, diz seu Flordovaldo, há 20 anos “capinha” (responsável por colocar a toga nos ministros do STF antes do julgamento).

Na confraternização de Natal do ano passado, a ministra conseguiu o que nunca se viu: reuniu em seu gabinete os 10 colegas de plenário e respectivas equipes.

“BH é mais barata”

A ministra Cármen Lúcia assume pessoalmente várias tarefas domésticas. Arruma a própria cama e cantarola versos de Cecília Meirelles enquanto supervisiona a jabuticabeira ornamental do seu apartamento: “Eu canto, porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste: sou poeta. Olha a jabuticaba”, comemora, indicando a fruta. Faz compras para casa aos sábados, confere e recita os preços. “A vida em Belo Horizonte é tão mais barata do que em Brasília”, comenta.

Volume de processos não intimida

Aos 52 anos, a ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha acredita que para a sua geração a presença feminina nos tribunais superiores ainda causa certa estranheza. “Mas a Justiça no Brasil está se tornando feminina”, garante ela, referindo-se ao recente arquivamento, na semana passada, pelo Supremo Tribunal Federal, do pedido de Habeas Corpus de Adriana Almeida, acusada de ter assassinado, em 7 de janeiro, do marido milionário da mega-sena, Renné Senna. No STF encerrou-se um ciclo de decisões dadas por quatro mulheres da primeira à última instância.

Em Rio Bonito, a juíza Renata Gil decretou a prisão temporária dos seis indiciados por envolvimento com o crime, entre eles a viúva Adriana Almeida. Ao recorrer ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o pedido liminar de Habeas Corpus foi relatado e rejeitado pela desembargadora Maria Raimundo de Azevedo. No Superior Tribunal de Justiça, coube à ministra Laurita Vaz indeferir a liminar com a qual a defesa de Adriana pretendia colocá-la em liberdade. Indeferido o pedido no STJ, novo HC foi ajuizado no STF, que foi julgado por outra mulher. A ministra Cármen Lúcia arquivou o pedido apresentado pela defesa de Adriana, porque entendeu não caber ao STF analisar Habeas Corpus ajuizado contra decisão liminar de outra instância superior.

“Quando se trata de concurso público, as mulheres estão chegando muito longe na carreira jurídica”, considera Carmen Lúcia. Segundo ela, no início, despertaram certa curiosidade. “Quando a ministra Ellen Gracie chegou ao STF, foi muito maior a cobrança em relação a ela. Agora, as pessoas começam a se acostumar”, afirma a ministra. Mas o gênero não deve ser fator preponderante, avalia. “Antes de considerações desse tipo, é importante analisar o que é bom para o Brasil, em termos de quais pessoas ocupam quais cargos”, diz.

Dos processos de repercussão aos insignificantes que não resistirão à nova Lei de Repercussão Geral, Cármen Lúcia analisa os casos com a mesma paciência professoral que a caracterizou durante duas décadas na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, quando lecionou direito constitucional.

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