Punição dos desonestos

A função do Direito Penal é promover a ordem e nada mais

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31 de maio de 2007, 18h35

A pena visa punir o ruim, mostrando que se agisse corretamente não estaria sendo punido. Tal preceito deve ser tomado como uma das justificativas da aplicação das penas. Do contrário, estaríamos punindo não o criminoso, mas aqueles que agem corretamente.

Não obstante, atualmente, podemos ver que o parâmetro da aplicação do Direito Penal no Brasil está assentado em duas verdades. A primeira se verifica na natureza humana, o livre arbítrio, o agir consciente. Já a segunda, por uma ótica não individualista, se constata da interação entre indivíduo e meio social.

A primeira é indiscutível, pois sabemos que todo ser humano capaz tem consciência de seus atos, sejam lícitos ou ilícitos, mesmo que sob um simples panorama moral ou ético, independentemente do conhecimento de suas obrigações civis ou dos tipos penais.

A segunda é de viés mais complexo, especialmente nos dias atuais, em que a sociedade cada vez mais desumaniza o ser humano, tratando-o, de modo geral, apenas como potencial consumidor de bens e serviços.

Hoje, vivemos um período do capitalismo moderno, dado que os membros da sociedade competem entre si para alcançar o lucro acima de tudo, o bem-estar egoísta, a satisfação quase que exclusivamente pessoal. Busca-se tão-só o lucro, como se fosse este a única razão do labor, um fim em si mesmo, deixando de lado o necessário comprometimento com o bem-estar da coletividade.

Essa sociedade mesquinha se perdeu do contexto histórico, uma sociedade que busca o progresso individualista, que busca o lucro pelo lucro. Esqueceu-se do real significado da palavra sociedade: “agrupamento de seres que convivem em estado gregário e em colaboração mútua; conjunto de pessoas que vivem em certa faixa de tempo e de espaço, seguindo normas comuns, e que são unidas pelo sentimento de grupo; corpo social, coletividade; grupo de indivíduos que vivem, por vontade própria, sob normas comuns; comunidade, coletividade; ambiente humano em que o indivíduo se encontra integrado; relacionamento entre pessoas que vivem em grupo; convivência, contato”. Essas acepções da palavra sociedade, pinçadas do Dicionário Houaiss.

Como se vê, não falo do motivo primitivo da existência da sociedade para fins de segurança contra ataques externos, como a história nos noticia do ocorrido, no período medieval. Refiro-me àquele período em que a coletividade humana buscava – mesmo que de forma imperfeita – um viver pleno, quando pelo menos se tentava uma harmonia coletiva, ainda que de forma utópica.

Reporto-me ao período da antiga civilização grega, que reunia vários motivos para viver em sociedade (a segurança, a harmonia coletiva, as inter-relações pessoais, buscando uma evolução do ponto de vista intelectual e espiritual, a satisfação coletiva – ainda que não plena –, em razão da escravidão e das diferentes classes sociais). Daquele tempo podemos, ao menos, nos inspirar nos jogos olímpicos, nos teatros a céu aberto, nas escolas de pensamento – só para citar alguns –, em que se buscava uma razão para viver, diferentemente da atual e exclusiva busca pelo lucro efêmero.

Nesse contexto contemporâneo, há alguns dias, conversando com um amigo, ouvi uma lamentável história que traduz bem este pensamento moderno de sociedade. Dizia-me ele que um conhecido seu, ao ser indagado sobre o porquê de participar da indústria do desmatamento da Amazônia, apresentou a seguinte resposta:

“Eu derrubo árvores, porque, se não fosse eu, seria outro, e ainda tem mais; eu só vou fazer isso até juntar uma boa grana para ir embora dessa região, porque eu sei que o que estou fazendo é errado.”

Tal afirmação não é algo isolado, hoje em dia. Quando se conversa com as pessoas, temos a impressão de que ser honesto não vale mais a pena. Parece que elas acham que cometer crimes, mesmo com a consciência do que seja licito ou ilícito, em muitos casos valeria a pena.

Sob este contexto atualíssimo, o que podemos, prefacialmente que seja, concluir é que o Direito Penal, como última ratio1, não é suficiente para a prevenção geral do crime, nem, por si só, para promover automaticamente a boa convivência coletiva.

De outra parte, a tese do abolicionismo penal2, da extinção da pena ou a sua minimização descomedida não é solução adequada, haja vista que, sem ele, estaríamos, no mínimo, igualando os desiguais, colocando em um mesmo nível o honesto e o desonesto, o criminoso e o não criminoso.

Nesse prisma de parâmetro social do Direito Penal, a pena é, ao menos, necessária para que asseguremos tal distinção, sob risco de a desonestidade se transformar no imperativo da conduta individual na sociedade moderna e de nivelarmos por baixo o que entendemos por uma conduta pautada na moral e na ética.

Deixo claro que, quando digo pena não estou cuidando somente da pena privativa de liberdade, mas de toda e qualquer penalidade que se caracterize como ônus para aqueles indivíduos que praticam condutas ignóbeis, contrárias ao viver harmonicamente em sociedade. Podem até ser as penas alternativas, a exemplo da prestação de serviços à comunidade, da multa, do perdimento dos bens (lucro do crime), entre outras que imponham alguma limitação na vontade do indivíduo que cometeu um ilícito criminal (como limitação de fim de semana, proibição de freqüentar determinados locais, etc.).

De igual sorte, não ingresso na seara das causas das condutas dos delinqüentes, à luz da condição social do indivíduo, por conta de uma justificativa muito simples: não é somente o pobre que comete crime.

Não quero ser aqui maquiavélico, convencido que estou disso: em razão de sua condição social, alguns indivíduos comentem muitos crimes. Contudo, hoje, isso está quase vazio de sentido, pois nem todo pobre é criminoso. A bem dizer, tal pensar é até discriminatório. Nós sabemos que a maioria das pessoas pobres que, infelizmente, não tiveram boas oportunidades na vida, são do bem. Também sabemos que algumas pessoas ricas (não tão algumas assim), embora tenha tido ótimas oportunidades na vida, buscam, por vontade própria, o lucro fácil, o caminho errado, o lado do crime.

Para muitos o crime, independentemente da classe social, virou profissão, meio essencial de vida, não só pela falta de oportunidades, talvez também o seja, mas principalmente por saber que o Direito Penal caminha no sentido de tratá-lo, apenas, como um ser aflito por direitos sociais. Esquece que o ser humano pode fazer coisas magníficas, não sem demonstrar, por igual, o quanto pode ser mau.

Em linhas gerais, os problemas sociais enfrentados por uma coletividade não podem e não devem servir de justificativa para a não-aplicação da pena (ônus justo), sob o pretexto de que ela não resolve os problemas sociais. Não concebida para isto, sua razão é ser instrumento final, última trincheira contra as más condutas.

Não que a causa social não seja relevante. É relevante, mas não deve sê-lo para a aplicação do Direto Penal, pois este, como acima mencionei, é o último instrumento da batalha contra o mal. Cabe a outros instrumentos, como à sociedade organizada e desorganizada, ao indivíduo isoladamente, à imprensa de forma comprometida com as causas sociais, ao empresariado mediante a socialização do lucro, aos servidores públicos ‘mostrando a que vieram’, aos estudantes, aos cientistas realmente sociais (infelizmente alguns ascendem ao poder e decepcionam), principalmente aos Poderes Públicos constituídos por meio de seus agentes.

Também não pretendo ser obtuso, pois, quando falo em punir, falo em penalizar desde o pequeno traficante ao grande, desde a mão que segura o motosserra ao exportador de madeiras ilegais, desde o prefeito corrupto de uma pequena cidade ao congressista, desde o oficial de justiça corrupto ao juiz, todos indistintamente recebendo a pena que merecem, independentemente de quem sejam. Quem merece ser diferenciado é o cidadão de bem, honesto, para que fique esclarecido, de uma vez por todas, que vale a pena sê-lo, se não teremos que colocá-lo na lista de seres em extinção.

Relembrando, o Direito Penal é a última ratio. Para sua aplicação, não devemos partir da premissa das causas sociais causadoras, pois sua finalidade é outra: punir o indivíduo criminoso buscando, no mínimo, desigualar os desiguais. Buscando um equilíbrio entre iguais, um equilíbrio social, pôr ordem na desordem, quando nenhum outro instrumento social o conseguiu fazer. As causas sociais detonadoras podem, no máximo, ser levadas em conta no momento da individualização da pena, ou quando estejam associadas às causas excludentes em geral, não como pressuposto da imputabilidade, entendida como obrigação objetiva de responder pela prática do ato criminoso.

Não é papel do Poder Judiciário, diga-se do Direito Penal, deixar, ao argumento das causas sociais da delinqüência, de aplicar o ônus justo para aquele que errou conscientemente, sob pena de deixarmos de punir pelo simples fato de que a pena não resolve os problemas sociais. Aliás, isso é uma falácia, pois ela nunca teve esta finalidade, nunca foi ou deve ser usada para o desenvolvimento social. Seria um absurdo, o mesmo que utilizarmos uma faca de cozinha para realizar uma cirurgia cardíaca.

Que fique claro: o ônus justo é aquele que é proporcional, razoável, equânime, previsto em lei e aplicado por meio do devido processo. Em resumo, nos termos do garantismo penal3, punindo apenas a conduta criminosa que tenha relevância social, não se prestando para punir um simples desvio de caráter.

Não é função do Direito Penal promover de forma exclusiva o bem-estar coletivo, competindo a ele, apenas, garantir a ordem, e assim dar ensejo a que outros meios o proporcionem, seja por meio de ações que promovam oportunidades isonômicas, dentre outras de cunho socializante, seja por meio de atitudes concretas de todos nós, afiançando que ser honesto vale a pena.

Notas de rodapé

1 – Princípio da Intervenção Mínima. Bonfim, Edílson Mougenot & Capez, Fernando: Direito Penal Parte Geral, São Paulo – Saraiva, 2004.

2 – SILVA, Luciano Nascimento. Manifesto abolicionista penal. Ensaio acerca da perda de legitimidade do sistema de Justiça Criminal. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 60, nov. 2002. Disponível em: . Acesso em: 29 maio 2007.

3 – Ferrajoli, Luigi, Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal, tradução Editora RT, 2002.

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