Liberdade é a regra

Leia os votos que libertaram funcionários da Gautama

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30 de maio de 2007, 13h49

A boa aplicação dos direitos fundamentais de caráter processual é justamente o que diferencia um regime democrático daquele de índole totalitária. Foi com base nesse fundamento que o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, concedeu a liberdade para Vicente Vasconcelos Coni, Maria de Fátima Cesar Palmeira, João Manoel Soares Barros e Abelardo Sampaio Lopes Filho — todos funcionários da construtora Gautama.

O grupo foi preso pela Polícia Federal durante a Operação Navalha e mesmo depois do depoimento prestado à ministra Eliana Calmon, responsável pelo trâmite do Inquérito no Superior Tribunal de Justiça, voltaram à superintendência da Polícia Federal por ordem da ministra.

No pedido de Habeas Corpus ajuizado no STF, a defesa afirmou que o ato da ministra configurou constrangimento ilegal porque a nova ordem de prisão não foi fundamentada.

Gilmar Mendes acolheu o pedido e repetiu os argumentos das três decisões. Considerou que “a prisão preventiva é medida excepcional que, exatamente por isso, demanda a explicitação de fundamentos consistentes e individualizados com relação a cada um dos cidadãos investigados”.

“A idéia do Estado de Direito também imputa ao Poder Judiciário o papel de garante dos direitos fundamentais. Por conseqüência, é necessário ter muita cautela para que esse instrumento excepcional de constrição da liberdade não seja utilizado como pretexto para a massificação de prisões preventivas”, afirmou o ministro.

Para Gilmar Mendes, “não se pode perder de vista que a boa aplicação das garantias fundamentais configura elemento essencial de realização do princípio da dignidade humana na ordem jurídica. Como amplamente reconhecido, o princípio da dignidade da pessoa humana impede que o homem seja convertido em objeto dos processos estatais”.

Nesta terça-feira (29/5), Gilmar Mendes também concedeu Habeas Corpus para livrar da prisão o empresário Zuleido Veras, dono da Gautama. Com as liminares, nenhum dos 48 presos na Operação Navalha permanecerá detido.

A operação

A Polícia Federal deflagrou no dia 17 de maio a Operação Navalha, contra acusados de fraudes em licitações públicas federais. Segundo a PF, o esquema de desvio de recursos públicos federais envolvia empresários da construtora Gautama, sediada em Salvador, e servidores públicos que operavam no governo federal e em governos estaduais e municipais.

De acordo com a acusação, o esquema garantia o direcionamento de verbas públicas para obras de interesse da Gautama e então conseguia licitações para empresas por ela patrocinadas. Ainda de acordo com a PF, as obras eram superfaturadas, irregulares ou mesmo inexistentes.

No mesmo dia da operação, o ministro Gilmar Mendes concedeu a primeira liminar no curso da operação, para impedir a prisão do ex-procurador-geral do Estado do Maranhão, Ulisses César Martins de Sousa. Em seguida, instaurou-se a polêmica.

Primeiro, a PF criticou as liminares concedidas pelo ministro para libertar presos da Operação Navalha. Em seguida, conversas telefônicas vazaram do inquérito da Polícia Federal numa tentativa de comprometer o ministro. De fato, há um Gilmar citado nas conversas, mas não o ministro Gilmar Ferreira Mendes. Segundo a própria PF, trata-se de Gilmar de Melo Mendes, ex-secretário da Fazenda de Sergipe.

Na quarta-feira (24/5), Gilmar Mendes se irritou com a divulgação da informação de que o seu nome aparecia em lista de autoridades que receberam presentes da construtora Gautama. “Há uma estrutura de marketing para valorizar o trabalho da Polícia Federal e depreciar a Justiça”, protestou. “Fontes da Polícia Federal informam que o ministro Gilmar Mendes está na lista. Ora! Que o ministro da Justiça venha dizer: o ministro Gilmar foi citado, ou que o procurador-geral assuma esse tipo de ônus."

Mendes acusou ainda a PF de “canalhice” e de uso de “método fascista” de investigação. As declarações foram feitas após o vazamento das conversas. Mais tarde, a revista Consultor Jurídico mostrou que o pedido de prisão feito pela PF contra o ex-procurador-geral do Estado do Maranhão foi baseado em erro.

Leia os votos

MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 91.524-8 BAHIA

RELATOR: MIN. GILMAR MENDES


PACIENTE(S): MARIA DE FÁTIMA CESAR PALMEIRA

IMPETRANTE(S): SÔNIA COCHRANE RÁO E OUTRO(A/S)

COATOR(A/S)(ES): RELATORA DO INQUÉRITO Nº 544 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

DECISÃO: Trata-se de habeas corpus, com pedido de medida liminar, impetrado em favor de MARIA DE FÁTIMA CESAR PALMEIRA, em que se impugna prisão preventiva decretada pela Min. Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Justiça, relatora do Inquérito no 544/BA.

A paciente é engenheira civil e, atualmente, desempenha a atividade de diretora comercial da Construtora GAUTAMA. A prisão preventiva foi decretada pelo suposto envolvimento da investigada com a “associação criminosa” em apuração nos autos do referido inquérito, sob a acusação de que teria atuado juntamente com ZULEIDO VERAS, decidindo as ações necessárias a viabilizarem o processo de direcionamento das obras públicas à GAUTAMA.

Quanto à plausibilidade jurídica do pedido (fumus boni iuris), a inicial alega, em síntese:

“[…] A paciente foi presa no último dia 17 de maio em virtude de decisão que decretou a custódia preventiva de diversas pessoas nos autos do que se convencionou chamar ‘Operação Navalha’ (doc. 1).

Referida operação foi deflagrada a partir da apuração de uma série de pretensos delitos, elencados pela D. Ministra a quo como sendo os de fraude a licitação, peculato, corrupção de servidores públicos, tráfico de influência, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e organização criminosa.

Contra a referida decisão foram impetrados diversos habeas corpus perante essa E. Suprema Corte, tendo, recentemente, grande parte deles perdido o objeto em virtude da expedição de alvarás de soltura decorrentes da oitiva dos respectivos pacientes.

Ou seja, à medida em que tomava os depoimentos dos investigados, a eminente Ministra Relatora os vinha liberando do imenso constrangimento ilegal imposto.

Em relação à ora paciente, contudo, após ouvi-la e tendo ela respondido a todas as questões que lhe foram formuladas, entendeu por bem a D. autoridade a quo manter a segregação sem nenhuma fundamentação (doc. 02).

É esse, portanto, o constrangimento que se pretende ver remediado.

Como adiante restará demonstrado, não se encontra nos autos um único sequer dos requisitos autorizadores da prisão preventiva da paciente, padecendo a r. decisão atacada de insuperável nulidade, sendo imperiosa a concessão do presente habeas corpus para que se lhe conceda o legítimo direito à liberdade.

[…]

Por se tratar de providência excepcional face ao princípio da presunção de inocência, a decisão que decreta prisão preventiva deve ser exaustivamente fundamentada, nela se indicando as razões concretas que imponham a custódia anterior a eventual condenação definitiva.

Assim, para que se tenha por motivada uma decisão que determina o encarceramento preventivo, não basta enunciar argumentos abstratos, presunções ou conjecturas, como tampouco fatos impertinentes à natureza cautelar – e portanto instrumental – da medida extrema.

Para fundamentar a decisão, sustentou-se a eminente Ministra em dois pilares: garantia da ordem pública e econômica e a conveniência da instrução criminal.

[…] a conclusão de que a ordem pública estaria em perigo, caso a paciente e demais investigados não fossem presos preventivamente, busca amparo, principalmente, em argumentos que revelam verdadeiro pré-julgamento da conduta a eles sequer formalmente imputada. Afinal, o motivo para a prisão cautelar seria, precisamente, a hipotética prática dos delitos em apuração, sobre os quais nem sequer foi instaurada a ação penal.


Evidentemente, retira-se o fundamento para o decreto coercitivo da própria conduta pela qual a paciente está sendo investigada, como se uma acusação – informal, repita-se – pudesse ser tida como procedente antes mesmo de proferida eventual sentença condenatória, de todo modo, recorrível.

Com efeito, não há como falar em avanços sobre o erário, ‘desmandos administrativos e delitos praticados pelo grupo’, os quais ‘minam os recursos públicos’, sem partir da premissa de que a paciente efetivamente praticou os supostos delitos objeto de apuração; ou seja, sem presumi-la culpada de fatos pelos quais está apenas sendo investigada.

[…]

Resta, assim, evidente que, não obstante a amplitude das investigações, nada há nos autos a justificar o decreto de prisão em desfavor da paciente. As parcas palavras despendidas com a realidade fática que autorizaria a segregação simplesmente não condizem com a severidade da decisão.

A r. decisão atacada viola, a um só tempo, a garantia insculpida no artigo 93, IX da Constituição da República e o próprio teor do artigo 312 do Estatuto Processual Penal” – (fls. 4-18).

Com relação à urgência da pretensão cautelar (periculum in mora), a defesa argumenta que:

“O periculum in mora é igualmente gritante. Cada novo dia de recolhimento ao cárcere representa insuportável reedição da injustiça consubstanciada no r. decreto de prisão, absolutamente carente de idônea fundamentação.

Em face da flagrante desnecessidade da custódia, bem como da ausência de qualquer dos pressupostos legais arrolados no artigo 312 do Código de Processo Penal, de rigor a concessão da ordem para o fim de ser revogada a custódia antecipada da paciente” – (fl. 19).

Com base nessa argumentação, a inicial postula “a concessão da MEDIDA LIMINAR pleiteada – com a imediata expedição de alvará de soltura em seu favor – e, posteriormente, da própria ordem, com a confirmação de seu direito à liberdade” – (fls. 22/23).

Passo a decidir tão-somente o pedido de medida liminar.

Neste habeas corpus, impugna-se, em síntese, a validade da fundamentação do decreto de prisão preventiva expedido em face da ora Paciente (MARIA DE FÁTIMA CESAR PALMEIRA).

Da leitura do ato decisório, observa-se que, em princípio, o elemento concreto apontado para a decretação da prisão preventiva da ora paciente diz respeito ao fato de que a investigada, juntamente com ZULEIDO VERAS, interagia com os demais agentes, decidindo as ações necessárias a viabilizarem o processo de direcionamento das obras públicas à GAUTAMA. Dentre outras tarefas destaca-se a intermediação para pagamento de vantagens indevidas aos servidores do Estado de Alagoas, servindo também de intermediária junto ao Governador do Estado do Maranhão, Jackson Lago.

A Constituição Federal de 1988 atribuiu significado ímpar aos direitos individuais. Já a colocação do catálogo dos direitos fundamentais no início do texto constitucional denota a intenção do constituinte de emprestar-lhes significado especial. A amplitude conferida ao texto, que se desdobra em setenta e oito incisos e quatro parágrafos (CF, art. 5º), reforça a impressão sobre a posição de destaque que o constituinte quis outorgar a esses direitos. A idéia de que os direitos individuais devem ter eficácia imediata ressalta, portanto, a vinculação direta dos órgãos estatais a esses direitos e o seu dever de guardar-lhes estrita observância.

O constituinte reconheceu ainda que os direitos fundamentais são elementos integrantes da identidade e da continuidade da Constituição, considerando, por isso, ilegítima qualquer reforma constitucional tendente a suprimi-los (art. 60, § 4º). A complexidade do sistema de direitos fundamentais recomenda, por conseguinte, que se envidem esforços no sentido de precisar os elementos essenciais dessa categoria de direitos, em especial no que concerne à identificação dos âmbitos de proteção e à imposição de restrições ou limitações legais.


E no que se refere aos direitos de caráter penal, processual e processual-penal, talvez não haja qualquer exagero na constatação de que esses direitos cumprem um papel fundamental na concretização do moderno Estado democrático de direito.

Como observa Martin Kriele, o Estado territorial moderno arrosta um dilema quase insolúvel: de um lado, há de ser mais poderoso que todas as demais forças sociais do país – por exemplo, empresas e sindicatos –, por outro, deve outorgar proteção segura ao mais fraco: à oposição, aos artistas, aos intelectuais, às minorias étnicas[1][1]. O estado absolutista e os modelos construídos segundo esse sistema (ditaduras militares, estados fascistas, os sistemas do chamado “centralismo democrático”) não se mostram aptos a resolver essa questão.

Segundo ressalta Kriele:

”Esta é a razão profunda pela qual os direitos humanos somente podem funcionar em um Estado constitucional. Para a eficácia dos direitos humanos a independência judicial é mais importante que o catálogo dos direitos fundamentais contidos na Constituição. A Inglaterra garantiu os direitos humanos sem necessidade de uma constituição escrita. Por outro lado, um catálogo constitucional de direitos fundamentais é perfeitamente compatível com o absolutismo, com a ditadura e com o totalitarismo. Assim, por exemplo, o art. 127 da Constituição soviética de 1936 garante a “inviolabilidade da pessoa”. Isso não impediu que o terror stalinista tivesse alcançado em 1937 seu ponto culminante. A constituição não pode impedir o terror, quando está subordinada ao princípio de soberania, em vez de garantir as condições institucionais da rule of law. O mencionado artigo da Constituição da União Soviética diz, mas adiante, que “a detenção requer o consentimento do fiscal do Estado”. Esta fórmula não é uma cláusula de defesa, mas tão-somente uma autorização ao fiscal do Estado para proceder à detenção. Os fiscais foram nomeados conforme o critério político e procederam ajustes ao princípio da oportunidade política, e, para maior abundância, estavam obrigados a respeitar as instruções. Todos os aspectos do princípio de habeas corpus ficaram de lado, tais como as condições legais estritas para a procedência da detenção, a competência decisória de juízes legais independentes, o direito ao interrogatório por parte do juiz dentre de prazo breve, etc. Nestas condições, a proclamação da “inviolabilidade da pessoa” não tinha nenhuma importância prática. Os direitos humanos aparentes não constituem uma defesa contra o Arquipélago Gulag; ao contrário, servem para uma legitimação velada do princípio da soberania: o Estado tem o total poder de disposição sobre os homens, mas isto em nome dos direitos humanos.[2][2]

A solução do dilema – diz Kriele – consiste no fato de que o Estado incorpora, em certo sentido, a defesa dos direitos humanos em seu próprio poder, ao definir-se o poder do Estado como o poder defensor dos direitos humanos. Todavia, adverte Kriele, “sem divisão de poderes e em especial sem independência judicial isto não passará de uma declaração de intenções”. É que, explicita Kriele, “os direitos humanos somente podem ser realizados quando limitam o poder do Estado, quando o poder estatal está baseado na entrada em uma ordem jurídica que inclui a defesa dos direitos humanos”.[3][3]

Nessa linha ainda expressiva a conclusão de Kriele:

“Os direitos humanos estabelecem condições e limites àqueles que têm competência de criar e modificar o direito e negam o poder de violar o direito. Certamente, todos os direitos não podem fazer nada contra um poder fático, a potestas desnuda, como tampouco nada pode fazer a moral face ao cinismo.Os direitos somente têm efeito frente a outros direitos, os direitos humanos somente em face a um poder jurídico, isto é, em face a competências cuja origem jurídica e cujo status jurídico seja respeitado pelo titular da competência.


Esta é a razão profunda por que os direitos humanos somente podem funcionar em um Estado constitucional. Para a eficácia dos direitos humanos a independência judicial é mais importante do que o catálogo de direitos fundamentais contidos na Constituição (g.n)[4][4].

Tem-se, assim, em rápidas linhas, o significado que os direitos fundamentais e, especialmente os direitos fundamentais de caráter processual, assumem para a ordem constitucional como um todo.

Acentue-se que é a boa aplicação dos direitos fundamentais de caráter processual – aqui merece destaque a proteção judicial efetiva – que permite distinguir o Estado de Direito do Estado Policial!

Não se pode perder de vista que a boa aplicação dessas garantias configura elemento essencial de realização do princípio da dignidade humana na ordem jurídica. Como amplamente reconhecido, o princípio da dignidade da pessoa humana impede que o homem seja convertido em objeto dos processos estatais[5][5].

Na mesma linha, entende Norberto Bobbio que a proteção dos cidadãos no âmbito dos processos estatais é justamente o que diferencia um regime democrático daquele de índole totalitária:

“A diferença fundamental entre as duas formas antitéticas de regime político, entre a democracia e a ditadura, está no fato de que somente num regime democrático as relações de mera força que subsistem, e não podem deixar de subsistir onde não existe Estado ou existe um Estado despótico fundado sobre o direito do mais forte, são transformadas em relações de direito, ou seja, em relações reguladas por normas gerais, certas e constantes, e, o que mais conta, preestabelecidas, de tal forma que não podem valer nunca retroativamente. A conseqüência principal dessa transformação é que nas relações entre cidadãos e Estado, ou entre cidadãos entre si, o direito de guerra fundado sobre a autotutela e sobre a máxima ‘Tem razão quem vence’ é substituído pelo direito de paz fundado sobre a heterotutela e sobre a máxima ‘Vence quem tem razão’; e o direito público externo, que se rege pela supremacia da força, é substituído pelo direito público interno, inspirado no princípio da ‘supremacia da lei’ (rule of law).”[6][6]

Em verdade, tal como ensina o notável mestre italiano, a aplicação escorreita ou não dessas garantias é que permite avaliar a real observância dos elementos materiais do Estado de Direito e distinguir civilização de barbárie.

Nesse sentido, forte nas lições de Claus Roxin, também compreendo que a diferença entre um Estado totalitário e um Estado (Democrático) de Direito reside na forma de regulação da ordem jurídica interna e na ênfase dada à eficácia do instrumento processual penal da prisão preventiva. Registrem-se as palavras do professor Roxin:

"Entre as medidas que asseguram o procedimento penal, a prisão preventiva é a ingerência mais grave na liberdade individual; por outra parte, ela é indispensável em alguns casos para uma administração da justiça penal eficiente. A ordem interna de um Estado se revela no modo em que está regulada essa situação de conflito; os Estados totalitários, sob a antítese errônea Estado-cidadão, exagerarão facilmente a importância do interesse estatal na realização, o mais eficaz possível, do procedimento penal. Num Estado de Direito, por outro lado, a regulação dessa situação de conflito não é determinada através da antítese Estado-cidadão; o Estado mesmo está obrigado por ambos os fins: assegurar a ordem por meio da persecução penal e proteção da esfera de liberdade do cidadão.Com isso, o princípio constitucional da proporcionalidade exige restringir a medida e os limites da prisão preventiva ao estritamente necessário.[7][7]"


Nessa linha, sustenta Roxin que o direito processual penal é o sismógrafo da Constituição, uma vez que nele reside a atualidade política da Carta Fundamental.[8][8]

Na espécie, tomo por decisiva a circunstância de que, com relação a todos os demais investigados, a autoridade apontada como coatora, após a inquirição de cada uma das pessoas envolvidas, revogou a prisão preventiva decretada nos autos do INQ no 544/BA.

De outro lado, deve-se ter em mente que não é possível esvaziar o conteúdo constitucional da importante função institucional atribuída às investigações criminais na ordem constitucional pátria. Nesse ponto, entendo que a Eminente Relatora do INQ no 544/BA possui amplos poderes para convocar sempre que necessário a ora paciente.

Por essa razão, não faz sentido a manutenção da prisão para a mera finalidade de obtenção de depoimento. A prisão preventiva é medida excepcional que, exatamente por isso, demanda a explicitação de fundamentos consistentes e individualizados com relação a cada um dos cidadãos investigados (CF, art.93,IX e art. 5o, XLVI).

A idéia do Estado de Direito também imputa ao Poder Judiciário o papel de garante dos direitos fundamentais. Por conseqüência, é necessário ter muita cautela para que esse instrumento excepcional de constrição da liberdade não seja utilizado como pretexto para a massificação de prisões preventivas.

Na ordem constitucional pátria, os direitos fundamentais devem apresentar aplicabilidade imediata (CF, art. 5o, §1o).

A realização dessas prerrogativas não pode nem deve sujeitar-se unilateralmente ao arbítrio daqueles que conduzem investigação de caráter criminal.

Em nosso Estado de Direito, a prisão é uma medida excepcional e, por essa razão, não pode ser utilizada como meio generalizado de limitação das liberdades dos cidadãos.

No caso concreto, visualiza-se que a manutenção da prisão preventiva tem por escopo a premissa de que a instrução das investigações estaria comprometida em razão do vínculo com a direção da Empresa GAUTAMA.

Ora, causa estranheza o fato de que outros co-réus, apesar de ostentarem importante papel na empresa, terem sido libertados pela própria relatora do inquérito.

Nesse particular, os alvarás de soltura expedidos em favor de Flávio Henrique Abdelnur Candelot, Rosevaldo Pereira de Melo e Gil João de Carvalho Santos.

Ante o exposto e ressalvado melhor juízo quando da apreciação de mérito deste writ, verifico a presença dos requisitos autorizadores da concessão da liminar pleiteada (fumus boni juris e periculum in mora).

Nestes termos, defiro o pedido de medida liminar para que, até a decisão de mérito deste writ, sejam suspensos os efeitos do decreto de prisão preventiva exarado em face da ora paciente.

Expeça-se alvará de soltura em favor da ora paciente.

Comunique-se, com urgência.

Após, abra-se vista dos autos, com urgência, ao Procurador-Geral da República (RI/STF, art. 192).

Brasília, 29 de maio de 2007.

Ministro GILMAR MENDES

Relator

Leia o voto que libertou Vicente Vasconcelos Coni

MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 91.513-2 BAHIA


RELATOR: MIN. GILMAR MENDES

PACIENTE(S): VICENTE VASCONCELOS CONI

IMPETRANTE(S): SÔNIA COCHRANE RÁO E OUTRO(A/S)

COATOR(A/S)(ES): RELATORA DO INQ Nº 544 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

DECISÃO: Trata-se de habeas corpus, com pedido de medida liminar, impetrado em favor de VICENTE VASCONCELOS CONI, em que se impugna prisão preventiva decretada pela Min. Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Justiça, relatora do Inquérito no 544/BA.

O paciente atualmente desempenha a atividade de diretor da empresa GAUTAMA no Maranhão. A prisão preventiva foi decretada pelo suposto envolvimento da investigada com a “associação criminosa” em apuração nos autos do referido inquérito, sob a acusação de que teria intermediado diversas vezes o pagamento de vantagens indevidas a servidores públicos para obter a aprovação de medições irregulares das obras executadas pela Gautama no Estado do Maranhão.

Quanto à plausibilidade jurídica do pedido (fumus boni iuris), a inicial alega, em síntese:

“[…] O paciente foi preso no último dia 17 de maio em virtude de decisão que decretou a custódia preventiva de diversas pessoas nos autos do que se convencionou chamar ‘Operação Navalha’ (doc. 1).

Referida operação foi deflagrada a partir da apuração de uma série de pretensos delitos, elencados pela D. Ministra a quo como sendo os de fraude a licitação, peculato, corrupção de servidores públicos, tráfico de influência, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e organização criminosa.

Contra a referida decisão foram impetrados diversos habeas corpus perante essa E. Suprema Corte, tendo, recentemente, grande parte deles perdido o objeto em virtude da expedição de alvarás de soltura decorrentes da oitiva dos respectivos pacientes.

Ou seja, à medida em que tomava os depoimentos dos investigados, a eminente Ministra Relatora os vinha liberando do imenso constrangimento ilegal imposto.

Em relação ao ora paciente, contudo, após ouvi-lo e tendo ele respondido a absolutamente TODAS as questões que lhe foram formuladas, entendeu por bem a D. Autoridade a quo manter a segregação sem nenhuma outra fundamentação.

É esse, portanto, o constrangimento que se pretende ver remediado.

Como adiante restará demonstrado, não se encontra nos autos um único sequer dos requisitos autorizadores da prisão preventiva do paciente, padecendo a r. decisão atacada de insuperável nulidade, sendo imperiosa a concessão do presente habeas corpus para que se lhe conceda o legítimo direito à liberdade.

[…]

Por se tratar de providência excepcional face ao princípio da presunção de inocência, a decisão que decreta prisão preventiva deve ser exaustivamente fundamentada, nela se indicando as razões concretas que imponham a custódia anterior a eventual condenação definitiva.

Assim, para que se tenha por motivada uma decisão que determina o encarceramento preventivo, não basta enunciar argumentos abstratos, presunções ou conjecturas, como tampouco fatos impertinentes à natureza cautelar – e portanto instrumental – da medida extrema.

[…]

Para fundamentar a decisão, sustentou-se a eminente Ministra em dois pilares: garantia da ordem pública e econômica e a conveniência da instrução criminal.

[…] a conclusão de que a ordem pública estaria em perigo, caso o paciente e demais investigados não fossem presos preventivamente, busca amparo, principalmente, em argumentos que revelam verdadeiro pré-julgamento da conduta a eles sequer formalmente imputado.


Afinal, o motivo para a prisão cautelar seria, precisamente, a hipotética prática dos delitos em apuração, sobre os quais nem sequer foi instaurada a ação penal.

Evidentemente, retira-se o fundamento para o decreto coercitivo da própria conduta pela qual a paciente está sendo processado, como se uma acusação – informal, repita-se – pudesse ser tida como procedente antes mesmo de proferida eventual sentença condenatória, de todo modo, recorrível.

Com efeito, não há como falar em avanços sobre o erário, ‘desmandos administrativos e delitos praticados pelo grupo’, os quais ‘minam os recursos públicos’, sem partir da premissa de que a paciente efetivamente praticou os supostos delitos objeto de apuração; ou seja, sem presumi-la culpada de fatos pelos quais está apenas sendo investigado.

[…]

Resta, assim, evidente que, não obstante a amplitude das investigações, nada há nos autos a justificar o decreto de prisão em desfavor do paciente.

A r. decisão atacada viola, a um só tempo, a garantia insculpida no artigo 93, IX da Constituição da República e o próprio teor do artigo 312 do Estatuto Processual Penal” – (fls. 4-24).

Com relação à urgência da pretensão cautelar (periculum in mora), a defesa argumenta que:

“O periculum in mora é igualmente gritante. Cada novo dia de recolhimento ao cárcere representa insuportável reedição da injustiça consubstanciada no r. decreto de prisão, absolutamente carente de idônea fundamentação.

Em face da flagrante desnecessidade da custódia, bem como da ausência de qualquer dos pressupostos legais arrolados no artigo 312 do Código de Processo Penal, de rigor a concessão da ordem para o fim de ser revogada a custódia antecipada do paciente” – (fl. 19).

Com base nessa argumentação, a inicial postula “a concessão da MEDIDA LIMINAR pleiteada – com a imediata expedição de alvará de soltura em seu favor – e, posteriormente, da própria ordem, com a confirmação de seu direito à liberdade” – (fl. 28).

Passo a decidir tão-somente o pedido de medida liminar.

Neste habeas corpus, impugna-se, em síntese, a validade da fundamentação do decreto de prisão preventiva expedido em face do ora Paciente (VICENTE VASCONCELOS CONI).

Da leitura do ato decisório, observa-se que, em princípio, o elemento concreto apontado para a decretação da prisão preventiva do ora paciente diz respeito ao fato de que o investigado, na condição de diretor da Gautama no Estado do Maranhão, intermediou por diversas vezes o pagamento de vantagens indevidas a servidores públicos para obter a aprovação de medições irregulares relativas a obras executadas pela Gautama naquele Estado.

A Constituição Federal de 1988 atribuiu significado ímpar aos direitos individuais. Já a colocação do catálogo dos direitos fundamentais no início do texto constitucional denota a intenção do constituinte de emprestar-lhes significado especial. A amplitude conferida ao texto, que se desdobra em setenta e oito incisos e quatro parágrafos (CF, art. 5o), reforça a impressão sobre a posição de destaque que o constituinte quis outorgar a esses direitos. A idéia de que os direitos individuais devem ter eficácia imediata ressalta, portanto, a vinculação direta dos órgãos estatais a esses direitos e o seu dever de guardar-lhes estrita observância.

O constituinte reconheceu ainda que os direitos fundamentais são elementos integrantes da identidade e da continuidade da Constituição, considerando, por isso, ilegítima qualquer reforma constitucional tendente a suprimi-los (art. 60, § 4º). A complexidade do sistema de direitos fundamentais recomenda, por conseguinte, que se envidem esforços no sentido de precisar os elementos essenciais dessa categoria de direitos, em especial no que concerne à identificação dos âmbitos de proteção e à imposição de restrições ou limitações legais.


E no que se refere aos direitos de caráter penal, processual e processual-penal, talvez não haja qualquer exagero na constatação de que esses direitos cumprem um papel fundamental na concretização do moderno Estado democrático de direito.

Como observa Martin Kriele, o Estado territorial moderno arrosta um dilema quase insolúvel: de um lado, há de ser mais poderoso que todas as demais forças sociais do país – por exemplo, empresas e sindicatos –, por outro, deve outorgar proteção segura ao mais fraco: à oposição, aos artistas, aos intelectuais, às minorias étnicas[9][1]. O estado absolutista e os modelos construídos segundo esse sistema (ditaduras militares, estados fascistas, os sistemas do chamado “centralismo democrático”) não se mostram aptos a resolver essa questão.

Segundo ressalta Kriele:

“Esta é a razão profunda pela qual os direitos humanos somente podem funcionar em um Estado constitucional. Para a eficácia dos direitos humanos a independência judicial é mais importante que o catálogo dos direitos fundamentais contidos na Constituição. A Inglaterra garantiu os direitos humanos sem necessidade de uma constituição escrita. Por outro lado, um catálogo constitucional de direitos fundamentais é perfeitamente compatível com o absolutismo, com a ditadura e com o totalitarismo. Assim, por exemplo, o art. 127 da Constituição soviética de 1936 garante a “inviolabilidade da pessoa”. Isso não impediu que o terror stalinista tivesse alcançado em 1937 seu ponto culminante. A constituição não pode impedir o terror, quando está subordinada ao princípio de soberania, em vez de garantir as condições institucionais da rule of law. O mencionado artigo da Constituição da União Soviética diz, mas adiante, que “a detenção requer o consentimento do fiscal do Estado”. Esta fórmula não é uma cláusula de defesa, mas tão-somente uma autorização ao fiscal do Estado para proceder à detenção. Os fiscais foram nomeados conforme o critério político e procederam ajustes ao princípio da oportunidade política, e, para maior abundância, estavam obrigados a respeitar as instruções. Todos os aspectos do princípio de habeas corpus ficaram de lado, tais como as condições legais estritas para a procedência da detenção, a competência decisória de juízes legais independentes, o direito ao interrogatório por parte do juiz dentre de prazo breve, etc. Nestas condições, a proclamação da “inviolabilidade da pessoa” não tinha nenhuma importância prática. Os direitos humanos aparentes não constituem uma defesa contra o Arquipélago Gulag; ao contrário, servem para uma legitimação velada do princípio da soberania: o Estado tem o total poder de disposição sobre os homens, mas isto em nome dos direitos humanos.[10][2]

A solução do dilema – diz Kriele – consiste no fato de que o Estado incorpora, em certo sentido, a defesa dos direitos humanos em seu próprio poder, ao definir-se o poder do Estado como o poder defensor dos direitos humanos. Todavia, adverte Kriele, “sem divisão de poderes e em especial sem independência judicial isto não passará de uma declaração de intenções”. É que, explicita Kriele, “os direitos humanos somente podem ser realizados quando limitam o poder do Estado, quando o poder estatal está baseado na entrada em uma ordem jurídica que inclui a defesa dos direitos humanos”.[11][3]


Nessa linha ainda expressiva a conclusão de Kriele:

“Os direitos humanos estabelecem condições e limites àqueles que têm competência de criar e modificar o direito e negam o poder de violar o direito. Certamente, todos os direitos não podem fazer nada contra um poder fático, a potestas desnuda, como tampouco nada pode fazer a moral face ao cinismo.Os direitos somente têm efeito frente a outros direitos, os direitos humanos somente em face a um poder jurídico, isto é, em face a competências cuja origem jurídica e cujo status jurídico seja respeitado pelo titular da competência.

Esta é a razão profunda por que os direitos humanos somente podem funcionar em um Estado constitucional. Para a eficácia dos direitos humanos a independência judicial é mais importante do que o catálogo de direitos fundamentais contidos na Constituição (g.n)[12][4].

Tem-se, assim, em rápidas linhas, o significado que os direitos fundamentais e, especialmente os direitos fundamentais de caráter processual, assumem para a ordem constitucional como um todo.

Acentue-se que é a boa aplicação dos direitos fundamentais de caráter processual – aqui merece destaque a proteção judicial efetiva – que permite distinguir o Estado de Direito do Estado Policial!

Não se pode perder de vista que a boa aplicação dessas garantias configura elemento essencial de realização do princípio da dignidade humana na ordem jurídica. Como amplamente reconhecido, o princípio da dignidade da pessoa humana impede que o homem seja convertido em objeto dos processos estatais[13][5].

Na mesma linha, entende Norberto Bobbio que a proteção dos cidadãos no âmbito dos processos estatais é justamente o que diferencia um regime democrático daquele de índole totalitária:

“A diferença fundamental entre as duas formas antitéticas de regime político, entre a democracia e a ditadura, está no fato de que somente num regime democrático as relações de mera força que subsistem, e não podem deixar de subsistir onde não existe Estado ou existe um Estado despótico fundado sobre o direito do mais forte, são transformadas em relações de direito, ou seja, em relações reguladas por normas gerais, certas e constantes, e, o que mais conta, preestabelecidas, de tal forma que não podem valer nunca retroativamente. A conseqüência principal dessa transformação é que nas relações entre cidadãos e Estado, ou entre cidadãos entre si, o direito de guerra fundado sobre a autotutela e sobre a máxima ‘Tem razão quem vence’ é substituído pelo direito de paz fundado sobre a heterotutela e sobre a máxima ‘Vence quem tem razão’; e o direito público externo, que se rege pela supremacia da força, é substituído pelo direito público interno, inspirado no princípio da ‘supremacia da lei’ (rule of law).”[14][6]

Em verdade, tal como ensina o notável mestre italiano, a aplicação escorreita ou não dessas garantias é que permite avaliar a real observância dos elementos materiais do Estado de Direito e distinguir civilização de barbárie.


Nesse sentido, forte nas lições de Claus Roxin, também compreendo que a diferença entre um Estado totalitário e um Estado (Democrático) de Direito reside na forma de regulação da ordem jurídica interna e na ênfase dada à eficácia do instrumento processual penal da prisão preventiva. Registrem-se as palavras do professor Roxin:

"Entre as medidas que asseguram o procedimento penal, a prisão preventiva é a ingerência mais grave na liberdade individual; por outra parte, ela é indispensável em alguns casos para uma administração da justiça penal eficiente. A ordem interna de um Estado se revela no modo em que está regulada essa situação de conflito; os Estados totalitários, sob a antítese errônea Estado-cidadão, exagerarão facilmente a importância do interesse estatal na realização, o mais eficaz possível, do procedimento penal. Num Estado de Direito, por outro lado, a regulação dessa situação de conflito não é determinada através da antítese Estado-cidadão; o Estado mesmo está obrigado por ambos os fins: assegurar a ordem por meio da persecução penal e proteção da esfera de liberdade do cidadão.Com isso, o princípio constitucional da proporcionalidade exige restringir a medida e os limites da prisão preventiva ao estritamente necessário.[15][7]"

Nessa linha, sustenta Roxin que o direito processual penal é o sismógrafo da Constituição, uma vez que nele reside a atualidade política da Carta Fundamental.[16][8]

Na espécie, tomo por decisiva a circunstância de que, com relação a todos os demais investigados, a autoridade apontada como coatora, após a inquirição de cada uma das pessoas envolvidas, revogou a prisão preventiva decretada nos autos do INQ no 544/BA.

De outro lado, deve-se ter em mente que não é possível esvaziar o conteúdo constitucional da importante função institucional atribuída às investigações criminais na ordem constitucional pátria. Nesse ponto, entendo que a Eminente Relatora do INQ no 544/BA possui amplos poderes para convocar sempre que necessário os ora pacientes.

Por essa razão, não faz sentido a manutenção da prisão para a mera finalidade de obtenção de depoimento. A prisão preventiva é medida excepcional que, exatamente por isso, demanda a explicitação de fundamentos consistentes e individualizados com relação a cada um dos cidadãos investigados (CF, art.93,IX e art. 5o, XLVI).

A idéia do Estado de Direito também imputa ao Poder Judiciário o papel de garante dos direitos fundamentais. Por conseqüência, é necessário ter muita cautela para que esse instrumento excepcional de constrição da liberdade não seja utilizado como pretexto para a massificação de prisões preventivas.

Na ordem constitucional pátria, os direitos fundamentais devem apresentar aplicabilidade imediata (CF, art. 5o, §1o).

A realização dessas prerrogativas não pode nem deve sujeitar-se unilateralmente ao arbítrio daqueles que conduzem investigação de caráter criminal.

Em nosso Estado de Direito, a prisão é uma medida excepcional e, por essa razão, não pode ser utilizada como meio generalizado de limitação das liberdades dos cidadãos.

No caso concreto, visualiza-se que a manutenção da prisão preventiva tem por escopo a premissa de que a instrução das investigações estaria comprometida em razão do vínculo do ora paciente com a direção da Empresa GAUTAMA.


Ora, causa estranheza o fato de que outros co-réus, apesar de ostentarem importante papel na empresa, terem sido libertados pela própria relatora do inquérito.

Nesse particular, ressalto os alvarás de soltura expedidos em favor de Flávio Henrique Abdelnur Candelot, Rosevaldo Pereira de Melo e Gil João de Carvalho Santos.

Ante o exposto e ressalvado melhor juízo quando da apreciação de mérito deste writ, verifico a presença dos requisitos autorizadores da concessão da liminar pleiteada (fumus boni juris e periculum in mora).

Nestes termos, defiro o pedido de medida liminar para que, até a decisão de mérito deste writ, sejam suspensos os efeitos do decreto de prisão preventiva exarado em face do ora paciente.

Expeça-se alvará de soltura em favor do ora paciente.

Comunique-se, com urgência.

Após, abra-se vista dos autos, com urgência, ao Procurador-Geral da República (RI/STF, art. 192).

Brasília, 29 de maio de 2007.

Ministro GILMAR MENDES

Relator

Leia o voto que libertou João Manoel Soares Barros e Abelardo Sampaio Lopes Filho

MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 91.525-6 BAHIA

RELATOR: MIN. GILMAR MENDES

PACIENTE(S): JOÃO MANOEL SOARES BARROS

PACIENTE(S): ABELARDO SAMPAIO LOPES FILHO

IMPETRANTE(S): SÔNIA COCHRANE RÁO E OUTRO(A/S)

COATOR(A/S)(ES): RELATORA DO INQ Nº 544 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

DECISÃO: Trata-se de habeas corpus, com pedido de medida liminar, impetrado em favor de JOÃO MANOEL SOARES BARROS e ABELARDO SAMPAIO LOPES FILHO (Petição no 81.233/2007), em que se impugna prisão preventiva decretada pela Min. Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Justiça, relatora do Inquérito no 544/BA.

O paciente JOÃO MANOEL SOARES BARROS é engenheiro civil e atualmente é empregado da Construtora GAUTAMA no Estado do Piauí. A prisão preventiva foi decretada pelo suposto envolvimento do investigado com a “associação criminosa” em apuração nos autos do referido inquérito, sob a acusação de que teria atuado sob as ordens de ZULEIDO e de FÁTIMA PALMEIRA, destacando-se pelos atos praticados em torno de fraudes em processos licitatórios, permitindo que a GAUTAMA adjudicasse as obras de construção de redes de distribuição de energia elétrica em áreas do Estado do Piauí, contempladas pelo programa do Governo Federal intitulado de ‘Luz para todos’. No Estado do Maranhão este personagem elaborou documentos que permitiram a celebração de Convênio entre o Estado e o Ministério dos Transportes para implantação e pavimentação da BR – 402.

O paciente ABELARDO SAMPAIO LOPES FILHO é engenheiro e diretor da GAUTAMA, estabelecido no escritório de Alagoas. A prisão preventiva foi decretada pelo suposto envolvimento do investigado com a “associação criminosa” em apuração nos autos do referido inquérito, sob a acusação de que seria responsável pelas medições irregulares junto à Secretaria da Infra-Estrutura do Estado de Alagoas, agindo intensamente para obter a aprovação das medições e o pagamento dos valores indevidos. Comunica-se freqüentemente com ZULEIDO VERAS e FÁTIMA PALMEIRA, discutindo estratégias para viabilizar os propósitos do grupo.

Quanto à plausibilidade jurídica do pedido (fumus boni iuris), a inicial alega, em síntese:

“[…] O paciente foi preso no último dia 17 de maio em virtude de decisão que decretou a custódia preventiva de diversas pessoas nos autos do que se convencionou chamar ‘Operação Navalha’ (doc. 1).

Referida operação foi deflagrada a partir da apuração de uma série de pretensos delitos, elencados pela D. Ministra a quo como sendo os de fraude a licitação, peculato, corrupção de servidores públicos, tráfico de influência, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e organização criminosa.


Contra a referida decisão foram impetrados diversos habeas corpus perante essa E. Suprema Corte, tendo, recentemente, grande parte deles perdido o objeto em virtude da expedição de alvarás de soltura decorrentes da oitiva dos respectivos pacientes.

Ou seja, à medida em que tomava os depoimentos dos investigados, a eminente Ministra Relatora os vinha liberando do imenso constrangimento ilegal imposto.

Em relação ao ora paciente, contudo, após ouvi-lo e tendo ele respondido a todas as questões que lhe foram formuladas, entendeu por bem a D. autoridade a quo manter a segregação sem nenhuma fundamentação (doc. 02).

É esse, portanto, o constrangimento que se pretende ver remediado.

Como adiante restará demonstrado, não se encontra nos autos um único sequer dos requisitos autorizadores da prisão preventiva do paciente, padecendo a r. decisão atacada de insuperável nulidade, sendo imperiosa a concessão do presente habeas corpus para que se lhe conceda o legítimo direito à liberdade.

[…]

Por se tratar de providência excepcional face ao princípio da presunção de inocência, a decisão que decreta prisão preventiva deve ser exaustivamente fundamentada, nela se indicando as razões concretas que imponham a custódia anterior a eventual condenação definitiva.

Assim, para que se tenha por motivada uma decisão que determina o encarceramento preventivo, não basta enunciar argumentos abstratos, presunções ou conjecturas, como tampouco fatos impertinentes à natureza cautelar – e portanto instrumental – da medida extrema.

Isso, porque, como já sedimentou em diversos precedentes essa Colenda Suprema Corte, ‘a prisão preventiva, para legitimar-se em face de nosso sistema jurídico, impõe – além da satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência material do crime e indício suficiente de autoria) – que se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do indiciado ou do réu’.

[…]

Para fundamentar a decisão, sustentou-se a eminente Ministra em dois pilares: garantia da ordem pública e econômica e a conveniência da instrução criminal.

[…] a conclusão de que a ordem pública estaria em perigo, caso o paciente e demais investigados não fossem presos preventivamente, busca amparo, principalmente, em argumentos que revelam verdadeiro pré-julgamento da conduta a eles sequer formalmente imputada.

Afinal, o motivo para a prisão cautelar seria, precisamente, a hipotética prática dos delitos em apuração, sobre os quais nem sequer foi instaurada a ação penal.

Evidentemente, retira-se o fundamento para o decreto coercitivo da própria conduta pela qual o paciente está sendo investigado, como se uma acusação – informal, repita-se – pudesse ser tida como procedente antes mesmo de proferida eventual sentença condenatória, de todo modo, recorrível.

Com efeito, não há como falar em avanços sobre o erário, ‘desmandos administrativos e delitos praticados pelo grupo’, os quais ‘minam os recursos públicos’, sem partir da premissa de que a paciente efetivamente praticou os supostos delitos objeto de apuração; ou seja, sem presumi-la culpada de fatos pelos quais está apenas sendo investigado.

[…]

Resta, assim, evidente que, não obstante a amplitude das investigações, nada há nos autos a justificar o decreto de prisão em desfavor do paciente. As parcas palavras despendidas com a realidade fática que autorizaria a segregação simplesmente não condizem com a severidade da decisão.


A r. decisão atacada viola, a um só tempo, a garantia insculpida no artigo 93, IX da Constituição da República e o próprio teor do artigo 312 do Estatuto Processual Penal” – (fls. 4-18).

Com relação à urgência da pretensão cautelar (periculum in mora), a defesa argumenta que:

“O periculum in mora é igualmente gritante. Cada novo dia de recolhimento ao cárcere representa insuportável reedição da injustiça consubstanciada no r. decreto de prisão, absolutamente carente de idônea fundamentação.

Em face da flagrante desnecessidade da custódia, bem como da ausência de qualquer dos pressupostos legais arrolados no artigo 312 do Código de Processo Penal, de rigor a concessão da ordem para o fim de ser revogada a custódia antecipada do paciente” – (fl. 19).

Com base nessa argumentação, a inicial postula “a concessão da MEDIDA LIMINAR pleiteada – com a imediata expedição de alvará de soltura em seu favor – e, posteriormente, da própria ordem, com a confirmação de seu direito à liberdade” – (fls. 22/23).

Na Petição nº 81.233/2007, a impetração assevera em relação ao paciente ABELARDO SAMPAIO LOPES FILHO:

“que, após a regular colheita de seu depoimento (doc. 01), a autoridade coatora a Ministra Relatora do Inquérito nº 544/BA manteve sua custódia cautelar, sem qualquer consideração adicional a respeito da ‘ocorrência de eventuais fatos e/ou inciddentes’ aptos a justificá-la, em situação análoga à de JOÃO MANOEL SOARES BARROS” – (Petição nº 81.233/2007).

Passo a decidir tão-somente o pedido de medida liminar.

Neste habeas corpus, impugna-se, em síntese, a validade da fundamentação do decreto de prisão preventiva expedido em face dos ora Pacientes (JOÃO MANOEL SOARES BARROS e ABELARDO SAMPAIO LOPES FILHO).

Da leitura do ato decisório, observa-se que, em princípio, o elemento concreto apontado para a decretação da prisão preventiva do paciente JOÃO MANOEL SOARES BARROS diz respeito ao fato de que o investigado atuou sob as ordens diretas de ZULEIDO VERAS e de FÁTIMA PALMEIRA, tendo-se destacado em razão dos atos que praticou para fraudar o processo de licitação que permitiu à GAUTAMA adjudicar as obras de construção de redes de distribuição de energia elétrica em áreas rurais do Estado do Piauí, contemplados pelo Programa do Governo Federal, ‘Luz para todos’. Também apareceu em outros eventos, como no Maranhão, onde elaborou documentos que permitiram a celebração do Convênio entre o referido Estado e o Ministério dos Transportes para a implantação e pavimentação da BR 402.

Com relação ao paciente ABELARDO SAMPAIO LOPES FILHO, o ato decisório aponta o fato de que o investigado, como engenheiro e diretor da GAUTAMA no escritório de Alagoas, foi responsável pela apresentação de medições irregulares à Secretaria de Infra-Estrutura daquele Estado, agindo intensamente para obter a aprovação das medições e o pagamento dos valores indevidos; comunicando-se freqüentemente com ZULEIDO VERAS e com FÁTIMA PALMEIRA para discutir estratégias a fim de viabilizar os propósitos delituosos do grupo.

A Constituição Federal de 1988 atribuiu significado ímpar aos direitos individuais. Já a colocação do catálogo dos direitos fundamentais no início do texto constitucional denota a intenção do constituinte de emprestar-lhes significado especial. A amplitude conferida ao texto, que se desdobra em setenta e oito incisos e quatro parágrafos (CF, art. 5º), reforça a impressão sobre a posição de destaque que o constituinte quis outorgar a esses direitos. A idéia de que os direitos individuais devem ter eficácia imediata ressalta, portanto, a vinculação direta dos órgãos estatais a esses direitos e o seu dever de guardar-lhes estrita observância.

O constituinte reconheceu ainda que os direitos fundamentais são elementos integrantes da identidade e da continuidade da Constituição, considerando, por isso, ilegítima qualquer reforma constitucional tendente a suprimi-los (art. 60, § 4º). A complexidade do sistema de direitos fundamentais recomenda, por conseguinte, que se envidem esforços no sentido de precisar os elementos essenciais dessa categoria de direitos, em especial no que concerne à identificação dos âmbitos de proteção e à imposição de restrições ou limitações legais.


E no que se refere aos direitos de caráter penal, processual e processual-penal, talvez não haja qualquer exagero na constatação de que esses direitos cumprem um papel fundamental na concretização do moderno Estado democrático de direito.

Como observa Martin Kriele, o Estado territorial moderno arrosta um dilema quase insolúvel: de um lado, há de ser mais poderoso que todas as demais forças sociais do país – por exemplo, empresas e sindicatos –, por outro, deve outorgar proteção segura ao mais fraco: à oposição, aos artistas, aos intelectuais, às minorias étnicas[17][1]. O estado absolutista e os modelos construídos segundo esse sistema (ditaduras militares, estados fascistas, os sistemas do chamado “centralismo democrático”) não se mostram aptos a resolver essa questão.

Segundo ressalta Kriele:

”Esta é a razão profunda pela qual os direitos humanos somente podem funcionar em um Estado constitucional. Para a eficácia dos direitos humanos a independência judicial é mais importante que o catálogo dos direitos fundamentais contidos na Constituição. A Inglaterra garantiu os direitos humanos sem necessidade de uma constituição escrita. Por outro lado, um catálogo constitucional de direitos fundamentais é perfeitamente compatível com o absolutismo, com a ditadura e com o totalitarismo. Assim, por exemplo, o art. 127 da Constituição soviética de 1936 garante a “inviolabilidade da pessoa”. Isso não impediu que o terror stalinista tivesse alcançado em 1937 seu ponto culminante. A constituição não pode impedir o terror, quando está subordinada ao princípio de soberania, em vez de garantir as condições institucionais da rule of law. O mencionado artigo da Constituição da União Soviética diz, mas adiante, que “a detenção requer o consentimento do fiscal do Estado”. Esta fórmula não é uma cláusula de defesa, mas tão-somente uma autorização ao fiscal do Estado para proceder à detenção. Os fiscais foram nomeados conforme o critério político e procederam ajustes ao princípio da oportunidade política, e, para maior abundância, estavam obrigados a respeitar as instruções. Todos os aspectos do princípio de habeas corpus ficaram de lado, tais como as condições legais estritas para a procedência da detenção, a competência decisória de juízes legais independentes, o direito ao interrogatório por parte do juiz dentre de prazo breve, etc. Nestas condições, a proclamação da “inviolabilidade da pessoa” não tinha nenhuma importância prática. Os direitos humanos aparentes não constituem uma defesa contra o Arquipélago Gulag; ao contrário, servem para uma legitimação velada do princípio da soberania: o Estado tem o total poder de disposição sobre os homens, mas isto em nome dos direitos humanos.[18][2]

A solução do dilema – diz Kriele – consiste no fato de que o Estado incorpora, em certo sentido, a defesa dos direitos humanos em seu próprio poder, ao definir-se o poder do Estado como o poder defensor dos direitos humanos. Todavia, adverte Kriele, “sem divisão de poderes e em especial sem independência judicial isto não passará de uma declaração de intenções”. É que, explicita Kriele, “os direitos humanos somente podem ser realizados quando limitam o poder do Estado, quando o poder estatal está baseado na entrada em uma ordem jurídica que inclui a defesa dos direitos humanos”.[19][3]


Nessa linha ainda expressiva a conclusão de Kriele:

“Os direitos humanos estabelecem condições e limites àqueles que têm competência de criar e modificar o direito e negam o poder de violar o direito. Certamente, todos os direitos não podem fazer nada contra um poder fático, a potestas desnuda, como tampouco nada pode fazer a moral face ao cinismo.Os direitos somente têm efeito frente a outros direitos, os direitos humanos somente em face a um poder jurídico, isto é, em face a competências cuja origem jurídica e cujo status jurídico seja respeitado pelo titular da competência.

Esta é a razão profunda por que os direitos humanos somente podem funcionar em um Estado constitucional. Para a eficácia dos direitos humanos a independência judicial é mais importante do que o catálogo de direitos fundamentais contidos na Constituição (g.n)[20][4].

Tem-se, assim, em rápidas linhas, o significado que os direitos fundamentais e, especialmente os direitos fundamentais de caráter processual, assumem para a ordem constitucional como um todo.

Acentue-se que é a boa aplicação dos direitos fundamentais de caráter processual – aqui merece destaque a proteção judicial efetiva – que permite distinguir o Estado de Direito do Estado Policial!

Não se pode perder de vista que a boa aplicação dessas garantias configura elemento essencial de realização do princípio da dignidade humana na ordem jurídica. Como amplamente reconhecido, o princípio da dignidade da pessoa humana impede que o homem seja convertido em objeto dos processos estatais[21][5].

Na mesma linha, entende Norberto Bobbio que a proteção dos cidadãos no âmbito dos processos estatais é justamente o que diferencia um regime democrático daquele de índole totalitária:

“A diferença fundamental entre as duas formas antitéticas de regime político, entre a democracia e a ditadura, está no fato de que somente num regime democrático as relações de mera força que subsistem, e não podem deixar de subsistir onde não existe Estado ou existe um Estado despótico fundado sobre o direito do mais forte, são transformadas em relações de direito, ou seja, em relações reguladas por normas gerais, certas e constantes, e, o que mais conta, preestabelecidas, de tal forma que não podem valer nunca retroativamente. A conseqüência principal dessa transformação é que nas relações entre cidadãos e Estado, ou entre cidadãos entre si, o direito de guerra fundado sobre a autotutela e sobre a máxima ‘Tem razão quem vence’ é substituído pelo direito de paz fundado sobre a heterotutela e sobre a máxima ‘Vence quem tem razão’; e o direito público externo, que se rege pela supremacia da força, é substituído pelo direito público interno, inspirado no princípio da ‘supremacia da lei’ (rule of law).”[22][6]

Em verdade, tal como ensina o notável mestre italiano, a aplicação escorreita ou não dessas garantias é que permite avaliar a real observância dos elementos materiais do Estado de Direito e distinguir civilização de barbárie.

Nesse sentido, forte nas lições de Claus Roxin, também compreendo que a diferença entre um Estado totalitário e um Estado (Democrático) de Direito reside na forma de regulação da ordem jurídica interna e na ênfase dada à eficácia do instrumento processual penal da prisão preventiva. Registrem-se as palavras do professor Roxin:


"Entre as medidas que asseguram o procedimento penal, a prisão preventiva é a ingerência mais grave na liberdade individual; por outra parte, ela é indispensável em alguns casos para uma administração da justiça penal eficiente. A ordem interna de um Estado se revela no modo em que está regulada essa situação de conflito; os Estados totalitários, sob a antítese errônea Estado-cidadão, exagerarão facilmente a importância do interesse estatal na realização, o mais eficaz possível, do procedimento penal. Num Estado de Direito, por outro lado, a regulação dessa situação de conflito não é determinada através da antítese Estado-cidadão; o Estado mesmo está obrigado por ambos os fins: assegurar a ordem por meio da persecução penal e proteção da esfera de liberdade do cidadão.Com isso, o princípio constitucional da proporcionalidade exige restringir a medida e os limites da prisão preventiva ao estritamente necessário.[23][7]"

Nessa linha, sustenta Roxin que o direito processual penal é o sismógrafo da Constituição, uma vez que nele reside a atualidade política da Carta Fundamental.[24][8]

Na espécie, tomo por decisiva a circunstância de que, com relação a todos os demais investigados, a autoridade apontada como coatora, após a inquirição de cada uma das pessoas envolvidas, revogou a prisão preventiva decretada nos autos do INQ no 544/BA.

De outro lado, deve-se ter em mente que não é possível esvaziar o conteúdo constitucional da importante função institucional atribuída às investigações criminais na ordem constitucional pátria. Nesse ponto, entendo que a Eminente Relatora do INQ no 544/BA possui amplos poderes para convocar sempre que necessário os ora pacientes.

Por essa razão, não faz sentido a manutenção da prisão para a mera finalidade de obtenção de depoimento. A prisão preventiva é medida excepcional que, exatamente por isso, demanda a explicitação de fundamentos consistentes e individualizados com relação a cada um dos cidadãos investigados (CF, art.93,IX e art. 5o, XLVI).

A idéia do Estado de Direito também imputa ao Poder Judiciário o papel de garante dos direitos fundamentais. Por conseqüência, é necessário ter muita cautela para que esse instrumento excepcional de constrição da liberdade não seja utilizado como pretexto para a massificação de prisões preventivas.

Na ordem constitucional pátria, os direitos fundamentais devem apresentar aplicabilidade imediata (CF, art. 5o, §1o).

A realização dessas prerrogativas não pode nem deve sujeitar-se unilateralmente ao arbítrio daqueles que conduzem investigação de caráter criminal.

Em nosso Estado de Direito, a prisão é uma medida excepcional e, por essa razão, não pode ser utilizada como meio generalizado de limitação das liberdades dos cidadãos.

No caso concreto, visualiza-se que a manutenção da prisão preventiva tem por escopo a premissa de que a instrução das investigações estaria comprometida em razão do vínculo dos ora pacientes com a direção da Empresa GAUTAMA.

Ora, causa estranheza o fato de que outros co-réus, apesar de ostentarem importante papel na empresa, terem sido libertados pela própria relatora do inquérito.

Nesse particular, ressalto os alvarás de soltura expedidos em favor de Flávio Henrique Abdelnur Candelot, Rosevaldo Pereira de Melo e Gil João de Carvalho Santos.


Ante o exposto e ressalvado melhor juízo quando da apreciação de mérito deste writ, verifico a presença dos requisitos autorizadores da concessão da liminar pleiteada (fumus boni juris e periculum in mora).

Nestes termos, defiro o pedido de medida liminar para que, até a decisão de mérito deste writ, sejam suspensos os efeitos do decreto de prisão preventiva exarado em face dos ora pacientes.

Expeça-se alvará de soltura em favor dos ora pacientes (JOÃO MANOEL SOARES BARROS e ABELARDO SAMPAIO LOPES FILHO).

Comunique-se, com urgência.

Após, abra-se vista dos autos, com urgência, ao Procurador-Geral da República (RI/STF, art. 192).

Brasília, 29 de maio de 2007.

Ministro GILMAR MENDES

Relator


[1][1] Cf. KRIELE, Martín. Introducción a la Teoría del Estado. Trad. de Eugênio Bulygin. Buenos Aires: Depalma, 1980, p. 149-150.

[2][2] Kriele, Martin. Introducción a la Teoría del Estado – Fundamentos Históricos de la Legitimidad del Estado Constitucional Democrático

Buenos Aires: Depalma, 1980, p. 160/161.

[3][3] KRIELE, Martín. Introducción a la Teoría del Estado, cit. p.150.

[4][4] KRIELE, Martin. Introducción a la Teoría del Estado, cit. p. 159-160.

[5][5] Cf. MAUNZ-DÜRIG. Grundgesetz Kommentar. Band I. München: Verlag C. H. Beck , 1990, 1I 18.

[6][6] BOBBIO, Norberto. As Ideologias e o Poder em Crise, p.p. 97/98

[7][7] ROXIN, Claus. Derecho Procesal Penal. Buenos Aires: Editores del Puerto; 2000, p. 258.


[8][8]Cf.ROXIN, Claus. Derecho Procesal Penal, cit., p.10.

[9][1] Cf. KRIELE, Martín. Introducción a la Teoría del Estado. Trad. de Eugênio Bulygin. Buenos Aires: Depalma, 1980, p. 149-150.

[10][2] Kriele, Martin. Introducción a la Teoría del Estado – Fundamentos Históricos de la Legitimidad del Estado Constitucional Democrático

Buenos Aires: Depalma, 1980, p. 160/161.

[11][3] KRIELE, Martín. Introducción a la Teoría del Estado, cit. p.150.

[12][4] KRIELE, Martin. Introducción a la Teoría del Estado, cit. p. 159-160.

[13][5] Cf. MAUNZ-DÜRIG. Grundgesetz Kommentar. Band I. München: Verlag C. H. Beck , 1990, 1I 18.

[14][6] BOBBIO, Norberto. As Ideologias e o Poder em Crise, p.p. 97/98


[15][7] ROXIN, Claus. Derecho Procesal Penal. Buenos Aires: Editores del Puerto; 2000, p. 258.

[16][8]Cf.ROXIN, Claus. Derecho Procesal Penal, cit., p.10.

[17][1] Cf. KRIELE, Martín. Introducción a la Teoría del Estado. Trad. de Eugênio Bulygin. Buenos Aires: Depalma, 1980, p. 149-150.

[18][2] Kriele, Martin. Introducción a la Teoría del Estado – Fundamentos Históricos de la Legitimidad del Estado Constitucional Democrático

Buenos Aires: Depalma, 1980, p. 160/161.

[19][3] KRIELE, Martín. Introducción a la Teoría del Estado, cit. p.150.

[20][4] KRIELE, Martin. Introducción a la Teoría del Estado, cit. p. 159-160.

[21][5] Cf. MAUNZ-DÜRIG. Grundgesetz Kommentar. Band I. München: Verlag C. H. Beck , 1990, 1I 18.

[22][6] BOBBIO, Norberto. As Ideologias e o Poder em Crise, p.p. 97/98

[23][7] ROXIN, Claus. Derecho Procesal Penal. Buenos Aires: Editores del Puerto; 2000, p. 258.

[24][8]Cf.ROXIN, Claus. Derecho Procesal Penal, cit., p.10.

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