Internação domiciliar

Estado e município devem arcar com tratamento em casa

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28 de maio de 2007, 21h16

É dever da União, dos estados e dos municípios cuidar da saúde de seus cidadãos e assegurar, inclusive, o direito ao sistema de home care (serviço de saúde domiciliar). O entendimento é da 3ª Vara Especializada da Fazenda Pública de Cuiabá. Agora, o município de Várzea Grande, o estado de Mato Grosso e os gestores do Sistema Único de Saúde (SUS) deverão fornecer, solidariamente, o internamento domiciliar gratuito a uma paciente em estado vegetativo. Cabe recurso.

Segundo o juiz Rodrigo Roberto Curvo, o governo deve garantir do mais simples ao mais complexo tratamento de saúde aos cidadãos. Ele também considerou que “o direito à vida, à saúde e à dignidade humana devem prevalecer, ainda que em detrimento de gastos públicos, como sabiamente já decidiu o ministro Celso de Mello”.

Devido ao extenso período de internação, ao estado de saúde bastante debilitado e ao alto risco de infecção hospitalar, a paciente pediu a transferência para o ambiente domiciliar, com os devidos cuidados proporcionados pelo sistema home care. Ela recebe, mensalmente, R$ 700 de auxílio-doença e não tem condições de arcar com o tratamento domiciliar.

Para o juiz, “a inércia dos requeridos poderá causar lesão irreparável ou de difícil reparação, sobretudo pelo extremo risco de morte da paciente”. Em caso de descumprimento da liminar, foi fixada uma multa diária de R$ 5 mil. Cabe recurso.

Leia a determinação:

Processo 121/2007

Comarca : Várzea Grande

Lotação : TERCEIRA VARA ESPECIALIZADA DA FAZENDA PÚBLICA

Juiz : Rodrigo Roberto Curvo

Vistos em correição.

L. C. B., qualificada nos autos, ingressou com a presente ação cominatória de obrigação de fazer contra o GESTOR DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE – GESTÃO PLENA, GESTOR DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, MUNICÍPIO DE VÁRZEA GRANDE e o ESTADO DE MATO GROSSO, face à inércia dos requeridos ante a obrigação de fornecer internamento domiciliar gratuito, pelo sistema “home care”, descrito na inicial.

O referido internamento decorre do fato de que em 19 de janeiro de 2007, a autora sofreu um acidente de motocicleta, o qual além de ter lhe causado traumatismo craniano grave, provocou lesões neurológicas.

Desde então, a requerente já fez duas cirurgias e atualmente encontra-se internada no Hospital Santa Rosa, em Cuiabá, em estado vegetativo, se alimentando por gastrotomia.

Em virtude do período extenso de internação, da saúde altamente debilitada e do alto risco de infecção hospitalar, necessita da transferência para o ambiente domiciliar, com os devidos cuidados proporcionados pelo sistema “home care”.

Para tanto, defende a existência no nosso ordenamento, de fundamentos jurídicos de natureza constitucional e infraconstitucional a amparar o pedido.

Destarte, requer a concessão de tutela de urgência, a fim de que os requeridos coloquem à sua disposição toda a estrutura necessária à internação domiciliar pelo sistema “home care”.

É o relatório.

Fundamento.

DECIDO.

Preambularmente, defiro o pedido de assistência judiciária gratuita formulado pela requerente, vez que, nos termos do artigo 4.º da Lei 1.060/50, “a parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial”.

Para a averiguação da tutela específica pleiteada, necessária se faz a lacônica exegese que se segue.

1. A Constituição da República Federativa do Brasil: o fundamento da dignidade da pessoa humana e o direito à vida e à saúde

a) Do fundamento da dignidade da pessoa humana

A palavra “dignidade” provém do latim dignitas e significa tudo o que merece respeito, consideração, mérito ou estima.

Acerca da matéria, o renomado constitucionalista ALEXANDRE DE MORAES aduz que “A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.”

A própria Carta Política da República, em seu artigo 1º, III, eleva a dignidade da pessoa humana à posição de fundamento do Estado Democrático de Direito, pois “Primeiramente, prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes. (…)”.

Destarte, a ilação que se faz é que o indivíduo deve “(…) respeitar a dignidade de seu semelhante tal qual a Constituição Federal exige que lhe respeitem a própria. A concepção dessa noção de dever fundamental resume-se a três princípios do Direito Romano: honestere vivere (viver honestamente), alterum non laedere (não prejudique ninguém) e suum cuique tribuere (dê a cada um o que lhe é devido).”


Sendo assim, pode-se afirmar que a finalidade do princípio da dignidade humana é assegurar a proteção contra o arbítrio do poder estatal e implementar o desenvolvimento da personalidade humana por meio de condições mínimas de vida com dignidade.

b) Do direito à vida

A Carta Magna, em seu artigo 5º prevê a inviolabilidade do direito à vida, consolidando-o como um dos direitos fundamentais do homem.

Na esfera do Direito internacional, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, aprovado pela XXI sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas, em sua Parte III, artigo 6º, reza que “O direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deverá ser protegido pela lei, ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida.”

Em seu artigo “O Direito À Vida” , a Professora Luciana Mendes Pereira Roberto, colacionando CANOTILHO afirma que “o direito à vida é um direito subjetivo de defesa, pois é indiscutível o direito de o indivíduo afirmar o direito de viver, com a garantia da “não agressão” ao direito à vida, implicando também a garantia de uma dimensão protetiva deste direito à vida. Ou seja, o indivíduo tem o direito perante o Estado a não ser morto por este, o Estado tem a obrigação de se abster de atentar contra a vida do indivíduo, e por outro lado, o indivíduo tem o direito à vida perante os outros indivíduos e estes devem abster-se de praticar atos que atentem contra a vida de alguém. E conclui: o direito à vida é um direito, mas não é uma liberdade.”

Infere-se, assim, que o direito à vida, inserido no contexto dos direitos fundamentais, tais como os demais, traz as prerrogativas de: a) imprescritibilidade (não se perde pelo decurso do prazo); b) inalienabilidade (inexiste possibilidade de transferência); c) irrenunciabilidade (não pode ser objeto de renúncia); d) inviolabilidade (impossibilidade de desrespeito); e) universalidade (engloba todos os indivíduos); f) efetividade (o Poder Público deve atuar para garantir a sua implantação) e g) indivisibilidade (não deve ser analisado isoladamente).

c) Do direito à saúde

Já que “o direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida” (STF – 2.ª T. – RE-AgR 393175/RS – Rel. Min. CELSO DE MELLO. J.: 12.12.06, DJ 02.02.07, p. 00140), a Constituição Brasileira, tutelou esse bem por meio de previsão expressa nos artigos 196 a 200, dos quais destaco as seguintes redações aplicáveis ao presente caso:

“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

“Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

(…)

II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;”

Ademais, o direito à vida, à saúde e à dignidade humana devem prevalecer, ainda que em detrimento de gastos públicos, como sabiamente já decidiu o Ministro Celso de Mello, quando esteve no exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal, em contexto assemelhado (Pet. 1.246-SC), cuja parte final transcrevo:

“Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da República (art. 5º, caput e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humana, notadamente daqueles que têm acesso, por força de legislação local, ao programa de distribuição gratuita de medicamentos, instituído em favor de pessoas carentes”.

Dentro desse contexto, importante salientar a notória e visível hipossuficiência da autora, que percebendo um valor aproximado de R$ 700,00 (setecentos reais) a título de auxílio-doença da Previdência Social, jamais conseguirá custear as despesas exigidas pelo sistema “home care”.

Sendo assim, insta frisar que ante a hipossuficiência de seus cidadãos, o Estado Democrático de Direito, por meio de sua Carta Política tornou obrigatória a tutela da saúde a todos os entes da Federação, consoante se extrai do seu artigo 23, inciso II:

“Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:


(…)

II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência.”

É nesse sentido que a Lei 8.080/90, que “Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências” , preconiza em seu artigo 2º, que “A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.”

Dessa forma, “Nas causas envolvendo o acesso à saúde dos cidadãos, por meio do Sistema Único de Saúde, os entes federados são solidariamente responsáveis (…)”. (TRF 4ª R. – Al 2003.04.01.041369-9 – SC – 3ª T – Rel. Des. Fed. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz – DJU 21.01.2004 – p. 625).

Ainda sobre a matéria, o Defensor Público da União, André da Silva Ordacgy, preleciona que “O Estado deve desenvolver as atividades de saúde dos níveis mais básicos de cuidado até os mais complexos. Isso deve incluir até o sistema de serviço de saúde domiciliar (home care), nos casos em que não for viável a internação do paciente mas este precisar de assistência médica integral e contínua no seu próprio domícilio.”

Continua asseverando que “o sistema de home care (serviço de saúde domiciliar), ainda não disponibilizado pelo SUS, acompanha a atual tendência mundial de desospitalização, consistindo em estratégia que diminuirá os riscos da contração de infecção intra-hospitalar e possibilitará uma otimização dos leitos hospitalares, além de proporcionar um melhor atendimento das necessidades terapêuticas do paciente, integrando a promoção da saúde com os fatores ambientais, psicosociais, econômicos e culturais que afetam o bem-estar da pessoa e de sua família.”

Conclui-se, portanto, que cabe aos entes federados, solidariamente responsáveis, no que tange à saúde, não só a sua promoção e proteção, mas também, a sua recuperação.

2. Dos pressupostos para a concessão da tutela específica

Preceitua o § 3.º do artigo 461 do Código de Processo Civil que “sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada.”

Constata-se que o pedido de liminar formulado pela parte autora é digno de acolhimento, já que encontra guarida na Lei Federal 10.424/2002, mais precisamente em seu artigo 19-I, que estabelece “no âmbito do Sistema Único de Saúde, o atendimento domiciliar e a internação domiciliar”.

Analisando, então, os pressupostos para a concessão da tutela específica, observa-se que o fumus boni iuris se consubstancia nos princípios constitucionais elencados nos artigos 6.º e 196 da Constituição Federal, que impõe ao Poder Público (Executivo) a obrigação de garantir o acesso universal e igualitário das necessidades imprescindíveis para a saúde dos cidadãos. Merece destaque a recomendação da internação domiciliar para tratamento da requerente (fls. 34/35).

De outro lado, o periculum in mora é igualmente verificado, em face do risco de ineficácia da medida se deferida somente ao final, mormente diante do risco de agravamento do já debilitado estado de saúde da autora, caso permaneça no ambiente hospitalar sob o risco de infecções oportunistas, notadamente em decorrência da condição vegetativa que acomete a paciente.

Ademais, a inércia dos requeridos poderá causar lesão irreparável ou de difícil reparação, sobretudo pelo risco extremo de morte, materializando nos autos os requisitos basilares exigidos pela lei para a concessão da medida pleiteada.

Diante do exposto, concedo a ordem liminar e, em conseqüência, determino que os requeridos, solidariamente responsáveis, forneçam gratuitamente à requerente a internação domiciliar por meio do seu imediato enquadramento no sistema “home care”, colocando a sua disposição toda a estrutura necessária requerida nos autos.

Para o caso de eventual descumprimento da ordem, fixo multa diária em R$ 5.000,00 (cinco mil reais), nos termos do artigo 461, § 5.º, do CPC.

Por outro lado, havendo notícia de descumprimento desta ordem judicial, extraia-se cópia a partir da decisão liminar e encaminhe-a ao Ministério Público para adoção das providências legais pertinentes, no que tange à responsabilização civil e criminal da autoridade descumpridora.

Frise-se que, no caso de desobediência, poderão ser determinadas outras medidas para a obtenção da tutela específica (art. 461, § 5º, CPC).

CITE-SE na forma requerida, para, querendo, contestar a presente ação, no prazo legal de 60 (sessenta) dias, fazendo constar as advertências legais dos artigos 285 e 319 do Código de Processo Civil.

Intime-se. Cumpra-se.

Várzea Grande, 23 de maio de 2007.

Rodrigo Roberto Curvo

Juiz de Direito

Auxiliar de Entrância Especial

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