Águia e a galinha

Relação entre Judiciário e Polícia nas operações da PF

Autor

  • Jail Benites de Azambuja

    é juiz federal mestre em Direito Processual Penal professor de Direito Constitucional e Processual Penal em pós-graduação pós-graduado em Direito Processual Público pela Universidade Federal Fluminense/Conselho da Justiça Federal. Foi promotor de Justiça no estado do Paraná.

25 de maio de 2007, 17h00

A primeira vez que ouvi a fábula da águia e da galinha foi em sala de aula, na graduação do curso de Direito da Universidade de Brasília. O então ministro do Tribunal Federal de Recursos Carlos Veloso nos ensinava aulas de Teoria Geral do Direito Público, disciplina introdutória ao Direito Constitucional, correspondente talvez em outras grades curriculares a Teoria Geral do Estado. No meio de uma das aulas, o ministro Veloso, que dois anos após seria nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal, nos contou a mencionada fábula.

Pesquisando sua origem, há notícia de que se trata de uma historieta oriunda de Gana, país da África Ocidental, contada por um educador chamado James Aggrey, datada do início do século XX (portanto do século passado). Conta a narrativa que um camponês, querendo criar um pássaro em casa, logrou pegar um filhote de águia, o qual, colocado no galinheiro junto às galinhas, cresceu, obviamente, como uma galinha.

Anos após, o camponês recebeu a casa a visita de um biólogo, que identificou o pássaro, alertando-o de que não se cuidava de uma galinha, mas de águia. O camponês, contudo, disse que aquela águia já era uma galinha, porque foi criada como tal.

O biólogo, porém, retrucou dizendo que ela sempre seria uma águia, pois a sua natureza e essência estavam em seu coração, de modo que algum dia ela iria voar às alturas. Diante da negativa do camponês, resolveram testar. Primeiro, o biólogo a ergueu em seus braços, mas ela não voou, preferindo descer e ficar com as galinhas; depois, subiu no telhado, e a mesma coisa, em vez de voar, descia para ficar com as galinhas.

Não convencido, o biólogo, no outro dia, tentou ainda uma última vez, e, tendo levantado bem cedo, levaram-na para o alto de uma montanha, no alvorecer. Ao ver as montanhas e o sol nascendo, a águia abriu suas potentes asas e começou a voar, a voar para o alto e voar cada vez mais para o alto. Voou. E nunca mais retornou. Depois, assistindo algumas palestras do ministro Veloso em outros lugares, vi que sempre ele insistia em repetir essa história, que ficou famosa entre os magistrados federais.

A questão do relacionamento entre o Poder Judiciário Federal e a Polícia Federal é mais ou menos como essa historieta. A Polícia Federal está fazendo os juízes federais e até ministros dos Tribunais Superiores, pensarem como galinhas. E chega a tal ponto que pensamos que somos efetivamente galinhas.

A Polícia Federal está criando nome nas costas da Justiça, com o auxílio da própria Justiça. É claro que para se deflagrar qualquer dessas operações, a maioria com nomes histriônicos, há um juiz federal decidindo, decretando prisões e determinando buscas e apreensões, além de outras medidas. Depois, tudo passa a ser como se fosse obra e graça da Polícia Federal. Aliás, não se vê a Polícia Federal assumindo que as ordens vieram do Judiciário. Parece tudo feito por ela.

Então, se há algumas situações teratológicas, como um delegado de polícia federal “metendo a boca” em decisões da Justiça, inclusive decisões de Tribunais Superiores, que me desculpem, é culpa dos próprios Juízes. Virem galinhas e serão tratadas como tal. É a grande verdade.

Por isso, se o problema é do próprio Judiciário, com a polícia federal construindo o nome em cima do Judiciário, e ainda às vezes tripudiando o próprio Judiciário (veja-se o nome de “bingão da Justiça”, dado a uma das operações, como se não tivessem sido presos também policiais federais e outros agentes públicos), apresento algumas sugestões, baseadas em anos de atuação na área criminal, inclusive agora com uma dessas “operações”, que talvez possam minimizar o problema.

– analisar com bastante rigor as medidas pleiteadas; muitas são inúteis e somente servem para movimentar as “globelezas” (nome carinhoso das viaturas pretas ostensivas);

parar de usar a prisão temporária como meio de obter prova ou somente para interrogar o investigado (isso é um absurdo processual e constitucional);

– decretar somente prisões preventivas, como regra, deixando a temporária para situações excepcionais e não banalizada, como se tornou atualmente;

– especificar nos mandados o modo de cumprimento, especialmente disciplinando o uso de algemas;

– determinar a observância do sigilo dos autos, sem divulgação de fotos, diligências, prisões e outras diligências para a imprensa sem autorização judicial expressa, que deverá ser solicitada pela autoridade policial federal;

– estabelecer restrição de acesso a conteúdo das diligências e principalmente conteúdo de interceptações telefônicas;

determinar imediatamente a abertura de investigação para apurar vazamento de conteúdo das informações, sobretudo na imprensa;

não delegar interrogatórios de investigados com foro privilegiado para a polícia (esse é um dos maiores desrespeitos já verificados); seguir o exemplo da Ministra Eliana Calmon (ela mesma os realizou).

Para ser águia é preciso abrir as asas e voar. Voar como as águias. E jamais se contentar com os grãos que jogam aos pés para ciscar, como se fossem galinhas.

Autores

  • é juiz federal, mestre em Direito Processual Penal, professor de Direito Constitucional e Processual Penal em pós-graduação, pós-graduado em Direito Processual Público pela Universidade Federal Fluminense/Conselho da Justiça Federal. Foi promotor de Justiça no estado do Paraná.

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