Exercício de competência

CNJ não faz controle de constitucionalidade

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23 de maio de 2007, 19h35

Em artigo publicado neste site jurídico, na última sexta-feira (18/5), foi proposta uma análise sobre a decisão proferida pelo Conselho Nacional de Justiça no Procedimento de Controle Administrativo 395. Para ler o artigo clique aqui. Entre as várias críticas ofertadas pelo ilustre articulista, algumas chamaram a atenção:

a) a afirmativa de que o CNJ teria exercitado o controle abstrato de constitucionalidade, matéria afeta exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal;

b) a alegação de que o § 3º do artigo 236 da CF apenas se tornou aplicável com o advento da Lei 8935/94, razão pela qual o “Executivo local” foi obrigado a prover as serventias, com base em critérios estaduais, assim garantindo a continuidade dos serviços reservados aos cartórios extrajudiciais; e

c) a assertiva de que não foram observados na decisão censurada os princípios da “razoabilidade”, “boa-fé” e “segurança jurídica”.

Antes de propor breve reflexão sobre as questões referidas, cabe recordar o exato conteúdo da discussão estabelecida no PCA indicado: à luz do § 3º do artigo 236 da CF de 1988, analisou-se a regularidade dos atos de delegação de serviços notariais e registrais praticados pelo Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul (TJ-MS), com fundamento no artigo 31 do ADCT da Constituição daquele estado.

Para bem situar a polêmica, cabe reprisar o inteiro teor dos dispositivos citados. A norma estadual tem o seguinte teor: “Artigo 31. Fica assegurado aos substitutos dos serviços notariais e de registro, na vacância, o direito de acesso a titular, desde que investidos na função, na data da instalação da Assembléia Estadual Constituinte, e desde que tenham ingressado na atividade através de concurso público ou através de prova de habilitação, há mais de um ano, nos termos preceituados no § 3º do artigo 236 da Constituição Federal. Parágrafo único. Igual direito é assegurado àqueles que hajam ingressado na atividade por nomeação, na forma da lei, e aos que, na mesma data, respondiam pelo expediente dos mesmos serviços.

A regra do § 3º do artigo 236 da CF preceitua que: “O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.”

A dissonância entre as disposições transcritas foi reconhecida pela unanimidade dos membros do CNJ.

Afinal, se a Carta Magna dispôs que apenas por concurso seria possível o ingresso na atividade notarial ou de registros, nenhum direito assegurando aos substitutos ou àqueles que, em qualquer tempo e/ou circunstância, estivessem respondendo por tais serventias, não seria possível reconhecer espaço para a atuação normativa do ente federado estadual.

De fato, o § 3º do artigo 236 da CF, diferentemente do que ocorreu em relação aos §§ 1º e 2º do mesmo artigo, não conteve qualquer remissão à necessidade de atuação do legislador, seja federal, seja estadual. Daí porque não se mostrava admissível ou razoável o raciocínio de que apenas com o advento da Lei 8935/94 foi possível exigir-se o concurso como condição para ingresso nas atividades notariais e de registro, até porque o comando constitucional fixou o prazo máximo de seis meses para suprimento de eventuais vacâncias nesses serviços.

A inconstitucionalidade do artigo 31 do ADCT da Constituição Estadual, portanto, foi reputada evidente pela unanimidade dos membros do CNJ. Mas a polêmica que se instalou não envolveu a constitucionalidade das delegações efetuadas — atos que se qualificam como tipicamente administrativos e que, exatamente por isso, são passíveis de controle pelo CNJ (artigo 103-B, § 4º, II, da CF) —, mas, ao revés, alcançou o alcance temporal da decisão de revogação dessas delegações que deveria ser proferida.

Decidiu-se, em suma, que os atos de delegação sob exame deveriam ser integralmente desconstituídos, por manifestamente lesivos ao Texto Constitucional, circunstância que inibia a aplicação dos princípios da segurança jurídica e da boa-fé, materializados no artigo 54 da Lei 9784/99 e no artigo 100 do RICNJ.

Mas, em relação ao suposto controle de constitucionalidade de norma abstrata exercitado pelo CNJ, o equívoco do articulista parece evidente, com todas as vênias.

Não há dúvida de que o CNJ, órgão de caráter estritamente administrativo, possui competência para apreciar a validade de atos administrativos praticados com supedâneo em dispositivos de leis estaduais, à luz dos comandos da Carta Magna (artigo 103-B, § 4º, da CF).

Até mesmo a possibilidade de o Administrador Público deixar de aplicar normas jurídicas que considere inconstitucionais é inequívoca e reconhecida inclusive pela Excelsa Corte. Nesse exato sentido já decidiu reiteradas vezes o CNJ, entendendo que o Administrador Público está autorizado pelo sistema constitucional vigente, embora assumindo os ônus de sua conduta, a negar aplicação a preceito legal que considere contrário ao Texto Constitucional.

Afinal, se a Constituição ocupa o ápice do ordenamento jurídico, vinculando direta e objetivamente a todos os cidadãos, especialmente os Administradores Públicos (CF, artigo 37), recusar aplicação a preceito legal reputado inconstitucional constitui, mais do que mera faculdade, autêntica obrigação jurídica.

É preciso registrar uma ressalva, qual seja a de que o juízo de constitucionalidade na esfera administrativa não se confunde, em natureza e extensão, com os modelos originários do sistema norte-americano e da experiência austríaca — atribuição que, em nosso sistema político, é típica e exclusiva do STF (controle difuso e concentrado) e dos demais juízes e tribunais (difuso).

No recente julgamento do PCA 343, essa orientação foi reafirmada em voto proferido pelo i. Conselheiro Alexandre de Moraes, Professor de Direito Constitucional:

“… até o momento atual, é amplamente majoritário no ordenamento jurídico, seja na doutrina nacional (cf. a respeito:JOSÉ CELSO DE MELLO FILHO. Constituição federal anotada. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 346; JOSÉ FREDERICO MARQUES, RDA 374/153; CAIO TÁCITO, RDA 59/344, THEMÍSTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI, RDA 82/383, ELIVAL DA SILVA RAMOS. A inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 238), seja na doutrina estrangeira (cf. nesse sentido: MARIA TERESA DE MELO RIBEIRO. O princípio da imparcialidade da administração pública. Coimbra: Almedina, 1996, p. 138-149, onde a autora aponta as diversas variações doutrinárias alemãs, italianas e portuguesas que defendem a não-aplicação de lei inconstitucional pela Administração Pública), seja, ainda, nos precedentes do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (RTJ 2/386; 32/134; 33/336; 41/669; 96/496) a possibilidade da Administração Pública deixar de cumprir – no âmbito de suas competências – lei ou ato normativo que entenda inconstitucional.

O administrador — de qualquer dos Poderes, Executivo, Legislativo ou Judiciário — está obrigado a pautar sua conduta pela estrita legalidade, observando, primeiramente, como primado do Estado de Direito Democrático as normas constitucionais, sob pena de responsabilização política e funcional.

Como destacado pelo ministro Moreira Alves, citando inúmeros precedentes do Supremo Tribunal Federal e farta doutrina, no julgamento da Representação 380, “a opinião de que o Poder Executivo não é obrigado a cumprir leis que considere inconstitucional foi acolhida por esta Corte (…) Sendo porém, certo de que no exercício da função jurisdicional, “ao Poder Judiciário continua reservado dizer a última palavra sobre a existência ou não da inconstitucionalidade, assumindo a Administração Pública o risco de eventual falta de adequação do caso concreto à inconstitucionalidade”.

Na vigência da Constituição de 1988, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, mantendo seus inúmeros precedentes, decidiu que:

“Os Poderes Executivo e Legislativo, por sua Chefia – e isso mesmo tem sido questionado com o alargamento da legitimação ativa na ação direta de inconstitucionalidade –, podem tão-só determinar aos seus órgãos subordinados que deixem de aplicar administrativamente as leis ou atos com força de lei que considerem inconstitucionais” (STF – Pleno – ADI 221/DF – medida cautelar – Rel. Min. Moreira Alves, Diário da Justiça, Seção I, 22 out. 1993, p. 22.251. Conferir a íntegra do Acórdão: RTJ 151/331).

Dessa forma, não há como se exigir do chefe de qualquer dos Poderes, inclusive do Poder Judiciário, no exercício de suas funções administrativas, o cumprimento de lei ou ato normativo que entenda flagrantemente inconstitucional, podendo e devendo, licitamente, negar o seu cumprimento, sem prejuízo do exame posterior pelo Poder Judiciário, no exercício de sua função jurisdicional.

Caso contrário, estaríamos determinando, por exemplo, a obrigatoriedade de um determinado Tribunal de Justiça cumprir imediatamente lei estadual aprovada por iniciativa de parlamentar – com flagrante vício de iniciativa — concedendo aumento de subsídios além do teto, ou ainda, criando 100 cargos de juízes e determinando imediato concurso público para provimento, sem a possibilidade de — administrativamente — determinar oficial e publicamente a sua não aplicação no âmbito do Poder Judiciário, até que o Supremo Tribunal Federal possa dar a palavra final sobre a constitucionalidade ou não.

A discussão sobre a possibilidade de órgãos não jurisdicionais exercerem controle de constitucionalidade foi objeto de recente reflexão do ministro Gilmar Mendes, em decisão monocrática (MS 25888/DF — medida cautelar — Diário da Justiça, Seção I, 29 mar. 2006, p. 11), onde salientou que:

“Em escritos doutrinários, tenho enfatizado que a ampla legitimação conferida ao controle abstrato, com a inevitável possibilidade de se submeter qualquer questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, operou uma mudança substancial no modelo de controle de constitucionalidade até então vigente no Brasil. Parece quase intuitivo que, ao ampliar, de forma significativa, o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo Tribunal Federal, no processo de controle abstrato de normas, acabou o constituinte por restringir, de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade. A amplitude do direito de propositura faz com que até mesmo pleitos tipicamente individuais sejam submetidos ao Supremo Tribunal Federal mediante ação direta de inconstitucionalidade. Assim, o processo de controle abstrato de normas cumpre entre nós uma dupla função: atua tanto como instrumento de defesa da ordem objetiva, quanto como instrumento de defesa de posições subjetivas. Assim, a própria evolução do sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, verificada desde então, está a demonstrar a necessidade de se reavaliar a subsistência da Súmula 347 (“o Tribunal de Contas, o exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público”) em face da ordem constitucional instaurada com a Constituição de 1988”.

Porém, entendo que a competência para alterar seu tradicional posicionamento, bem como seus precedentes em matéria de jurisdição constitucional é exclusiva do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, não devendo o Conselho Nacional de Justiça antecipar-se”.

Enfim, no julgamento do Procedimento de Controle Administrativo 395 não houve usurpação de competência ou qualquer medida do gênero, mas apenas o exercício regular de competência constitucional outorgada ao CNJ.

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