Ordem descumprida

Presidente da Fundação Casa, em São Paulo, é afastada do cargo

Autor

22 de maio de 2007, 20h22

A presidente da Fundação Casa em São Paulo (ex-Febem), Berenice Maria Giannella, foi afastada do cargo. A decisão é da juíza Mônica Ribeiro de Souza Paukoski, do departamento de Execuções da Infância e da Juventude de São Paulo.

O pedido de afastamento foi feito pelo Ministério Público estadual. A assessoria de imprensa da Fundação Casa informou que o departamento jurídico da fundação ainda não foi notificado e que, portanto, Berenice permanece no cargo.

Berenice é presidente da instituição desde 9 de junho de 2005, quando o órgão ainda era Febem. A mudança de nomenclatura foi em 28 de dezembro de 2006.

O afastamento de Berenice foi determinado com o argumento de que ela descumpriu sentença judicial que determinava que a Unidade de Atendimento Inicial, no bairro do Brás, não internasse número de adolescentes superior à capacidade máxima, que é de 96 internos. A sentença também questionava a permanência prolongada e indevida de jovens com internação provisória ou sentença de internação determinada.

Em duas situações, membros do Judiciário verificaram que a unidade continuava superlotada. No dia 4 de abril, 161 adolescentes estavam internados no local, 65 a mais do que o número determinado por lei.

Em 24 de abril, 162 jovens permaneciam na unidade. Desses, 35 já estavam sentenciados à internação, contrariando processo educacional previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Segundo assessoria de imprensa da Fundação Casa, a superlotação ocorre porque o complexo do Brás é o centro de triagem. A distribuição dos menores para outras unidades acontecia em até três dias conforme determina dispositivo do ECA, disse a instituição.

A substituição de Berenice deve acontecer em até cinco dias a partir da sua citação. A decisão foi encaminhada ao secretário da Justiça e Defesa da Cidadania, Luiz Antonio Marrey.

Leia a decisão

Vistos.

Trata-se de representação ofertada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, com espeque nos artigos 191 e seguintes do Estatuto da Criança e do Adolescente e, sustentando que a Sra. Presidente da Fundação Casa (antiga FEBEM) está descumprindo sentença judicial transitada em julgado proferida por este Departamento de Execuções da Infância e Juventude nos autos do PA n° 17/00, que impede a Fundação de manter em sua “Unidade de Atendimento Inicial” (UAI) número de adolescentes que exceda à sua capacidade máxima, atualmente para 96 (noventa e seis) internos, bem como a permanência prolongada e indevida no local de adolescentes que já contam com internação provisória (art 108 , ECA) ou sentença de internação (art. 122, ECA).

Segundo o Órgão ministerial, o descumprimento reiterado da sentença judicial está demonstrado pelo relatório juntado aos autos a fls. 127/130, efetuado pelos técnicos do Poder Judiciário após visita “in loco” na unidade em 04 de abril de 2007, quando se constatou a presença de 161 (cento e sessenta e um) adolescentes custodiados na UAI, extrapolando em 65 (sessenta e cinco) a capacidade máxima permitida.

Alicerça também o seu pedido invocando as constatações derivadas da recente inspeção judicial, efetuada por magistrado do DEIJ em 24 de abril de 2007, que demonstrariam o estado de coisas irregular persistente na “Unidade de Atendimento Inicial”, com quadro ainda mais agravado de superpopulação, além da estadia indevida de vários adolescentes por mais de 03 (três) meses no local, a maior parte do tempo em estado de ociosidade, sentados no chão apenas assistindo televisão.

Argumentando o Ministério Público ser inadmissível o expediente utilizado pela Fundação Casa nos últimos anos, que tem se valido de pedidos sucessivos de novos prazos para a readequação da unidade de acolhimento inicial, mas que tal regularização jamais ocorreu efetivamente, entende que isto constitui afronta ao Poder Judiciário, que já decidiu pelo fechamento da unidade caso continuasse funcionando nos moldes em que se encontra atualmente instalada. Derradeiramente, salientando que o descumprimento injustificado da sentença judicial transitada em julgado, da qual a Dra. Berenice Maria Giannella foi pessoalmente intimada, configura conduta incompatível com o exercício do cargo de presidente de uma das mais importantes fundações públicas do Estado de São Paulo pede seja afastada do atual cargo que ocupa, embasando sua pretensão no artigo 191, parágrafo único, do ECA.

É A SÍNTESE DO ESSENCIAL_ PASSO A APRECIAR O PEDIDO.

O Ministério Público imputa à Sra. Presidente da Fundação Casa conduta gravíssima, consistente no descumprimento de sentença judicial proferida por este Departamento de Execuções nos autos do PA no 17/00, que igualmente tramita pelo DEIJ, confirmada por acórdão do E. Tribunal de Justiça de São Paulo e já transitada em julgado.


Antes de proceder ao exame do afastamento liminar, entendo imprescindível, para melhor elucidar a questão, levando em conta os termos da inicial e dos documentos que a acompanharam, traçar um breve histórico cronológico do citado processo no 17/00, instaurado para apuração das irregularidades da “Unidade de Atendimento Inicial” da atual Fundação Casa, de acordo com o procedimento disciplinado nos artigos 191 e seguintes do Estatuto da Criança e do Adolescente.

O processo judicial referido foi instaurado em abril de 2000 (documento de fls. 07/12).

A sentença do DEIJ impondo o fechamento da UAI data de 27 de abril de 2001 (fls. 13/2 ).

O v. acórdão acostado a fls 24/33, prolatado em abril de 2002,determinou que a antiga FEBEM transferisse para locais adequados os adolescentes excedentes da capacidade máxima bem como ordenou o saneamento de todas as de demais irregularidades apontadas na portaria judicial, sob pena de fechamento definitivo da UAI.

Foi negado seguimento aos recursos especial e extraordinário interpostos pela Fundação, bem como desprovidos os agravos de instrumentos contra as respectivas decisões denegatórias de seguimento, de modo que a sentença transitou em julgado.

Em sede de execução do PA 17/00, a atual Sra. Presidente da Fundação, Dra. Berenice Maria Giannella, foi pessoalmente intimada em 16 de junho de 2005 para tornar providencias a fim de corrigir a problemática e retirar a população excedente da UAI, sob pena de fechamento (fls. 54/verso).

Ante a inércia da Fundação, sobreveio então nova decisão do DEIJ, proferida em 08 de setembro de 2005 (fls. 63/67), levada ao conhecimento pessoal e direto da Sra.Presidente da instituição por novo mandado de intimação, cumprido em 13/09/2005, que estabelecia o prazo de 60 (sessenta) dias para a desativação da referida unidade. Ao invés de desativá-la, a Fundação tão-somente transferiu suas instalações do n° 51 para o n° 85 da Rua Piratininga, bairro do Brás, nesta Capital.

Persistindo as mesmas irregularidades no novo endereço, sobreveio a decisão de 12 de setembro de 2006 (fls 112/114) que, mais uma vez, instou pessoalmente a atual Sra. Presidente da Fundação não só a retirar a população excedente da UAI, transferindo os adolescentes para locais compatíveis à natureza das medidas sócio-educativas aplicadas, coma também expressamente ordenou que tomasse as necessárias medidas administrativas para coibir que o ingresso de adolescentes superasse o limite da capacidade real da unidade, vedando, a partir de então, que a UAI funcionasse com população acima de 96 adolescentes.

A Egrégia Corregedoria Geral da Justiça, em 29 de setembro de 2006, atendendo pedido da Sra. Presidente da Fundação Casa, e a fim de possibilitar que a instituição, de uma vez por todas, erradicasse a problemática envolvendo a UAI, autorizou excepcionalmente e em caráter temporário, a transferência dos jovens já sentenciados à medida de internação e que ali se encontravam indevidamente para uma “unidade emergencial” sediada nas dependências do antigo presídio feminino do Tatuapé (docto de fls 116/122).

Contudo, em 04 de abril de 2007, a equipe de técnicos do Judiciário inspecionou novamente a UAI, constatando a presença de 161 (cento sessenta e um) internos custodiados “in loco”, excedendo em 65 (sessenta e cinco) a capacidade máxima permitida. Apontou-se em tal relatório que, de forma irregular, adolescentes estavam sendo mantidos no local por varias semanas e, em alguns casos, por meses, quando já deveriam ter sido transferidos para unidades de internação adequadas a fim de desfrutar do processo sócio-educativo a que fazem jus.

Consta ainda dos autos inspeção judicial realizada por magistrado do DEIJ em 24 de abril de 2007 (fls 1918/1921), deparando-se com situação ainda mais agravada no tocante à superlotação. Foram encontrados 162 (cento e sessenta e dois) jovens, dos quais 35 (trinta e cinco) já estavam sentenciados à medida de internação e ali permaneciam por semanas ou meses, em estado de mera contenção e ociosidade, alijados do processo educacional previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Portanto, feito este breve retrospecto dos autos do PA 17/00, vislumbra-se, ainda que em análise perfunctória, estarem presentes fortes indícios de descumprimento da ordem judicial sob enfoque.

Os fatos relatados falam por si. É em vão mudar as dependências da UAI de endereço se, ao que tudo indica, a forma de atendimento dispensada aos adolescentes persiste sendo inadequada.

A superlotação na UAI associada ao tempo demasiadamente prolongado de permanência provoca sérios prejuízos ao processo de ressocialização dos adolescentes ali custodiados.

A sentença e o v. acórdão são claros: a UAI somente foi autorizada a funcionar dentro dos limites de sua capacidade e desde que a sua dinâmica fosse corrigida, utilizada tão-somente como unidade de curtíssima permanência para a “triagem” e identificação dos adolescentes recepcionados na Capital.


Não é, em principio, o que vem ocorrendo. A superlotação constatada pela equipe técnica do Judiciário e na própria inspeção judicial de 27 de abril de 2007 fornecem indicativos de que a decisão de fls. 112/114, da qual a Sra. Presidente foi pessoalmente intimada, está sendo, em tese, flagrantemente descumprida.

Sete anos já se passaram desde que este processo foi instaurado. Em que pesem as alegadas dificuldades do Governo do Estado para implementar o processo de descentralização das unidades pelo Interior, tal argumento não pode ser utilizado para eternizar o descumprimento das decisões do Poder Judiciário, ainda mais que se cuida de sentença passada em julgado.

O agente público tem o dever jurídico de observar os preceitos constitucionais da legalidade e da moralidade. Quando persiste em descumprir uma decisão judicial, atenta contra a dignidade, o prestígio e o respeito devidos ao Poder Judiciário. A honestidade e a lealdade às instituições derivam diretamente do princípio da moralidade administrativa e são verdadeiros pilares do Estado Democrático de Direito.

Acerca do tema, nossos Tribunais têm proclamado que “… o descumprimento de decisão judiciais constitui afronta ao Estado Democrático, do qual o Poder Judiciário é guardião. Deve-se garantir a efetividade das decisões judiciais,com acatamento das mesmas pelas partes, sob pena de caírem no vazio, colocando em jogo a autoridade do Poder Judiciário. Se os particulares são obrigados a cumprir decisões judiciais, o mesmo deve valer para o Poder Público…” (agravo de instrumento nº 70014932420, TJRS, Rel. Des. Francisco José Moesch).

A Sra. Presidente da Fundação assenta-se no cargo há quase dois anos, sendo que as irregularidades em apreço envolvendo a UAI foram levadas ao seu conhecimento pessoal e direto nos autos do PA nº 17/00, conforme se depreende das intimações pessoais realizadas a fls 54, 69 e 115. Competia-lhe, como dirigente máxima da instituição, dar um basta neste estado de coisas. Permitir que a UAI continue funcionando no Estatuto da Criança do Adolescente afronta acórdão do E. Tribunal de Justiça, que autorizou o funcionamento da UAI apenas se todas as suas anomalias, dentre as quais a gritante superlotação, fossem removidas.

A própria E. Corregedoria Geral da Justiça, sensibilizada com a superlotação na UAI e toda a problemática ali existente, autorizou a transferência da população excedente para a citada “unidade emergencial” do Tatuapé. Nem mesmo assim a Sra. Presidente da Fundação equacionou o problema.

Com muita propriedade, e revelando pleno conhecimento da matéria, o Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça fundamentou a referida autorização concedida à Fundação Casa em setembro/2006 nos seguintes termos:

A FEBEM foi condenada pelo E. Tribunal de Justiça a manter na UAI população que não exceda à sua capacidade, mas não vem atendendo a essa determinação. A população da UAI é sempre superior à sua capacidade, e vem acolhendo adolescentes que não deveriam ali permanecer. Junto aos adolescentes que aguardam apresentação em Juízo, são encontrados aqueles já internados provisoriamente e outros com internação definitiva já determinada pela justiça. Tal situação não pode mais ser admitida, em que pesem os esforços da FEBEM. A ordem da MM. Juíza Diretora do DEIJ deve ser atendida, pois nada mais representa que a exigência de respeito à determinação judicial…”.

Destarte, a Sra. Presidente da Fundação Casa, apesar de todas as oportunidades e alternativas concedidas, vem, em principio, descumprindo reiteradamente sentença judicial definitiva do DEIJ o que configura “motivo grave” a justificar, nos termos autorizados pelo artigo 191, parágrafo único, do ECA, o seu afastamento liminar, por se revelar tal conduta, em tese de afronta e desrespeito ao Poder Judiciário, incompatível com o exercício do cargo que ocupa.

Ante todos os motivos expostos, decreto liminarmente, amparada no artigo 191, parágrafo único, do Estatuto da Criança e do Adolescente, o afastamento provisório da atual Sra. Presidente da Fundação Casa, Dra. Berenice Maria Giannella, até sentença final de mérito, oficiando-se ao Excelentíssimo Senhor Secretario de Estado da Justiça e Defesa da Cidadania para indicação e nomeação de substituto para o cargo, no prazo de 05 (cinco) dias (artigo 193, § 2°, ECA).

Determino a expedição de mandado para citação da Dra. Berenice Maria Giannella para que, querendo, ofereça resposta escrita no prazo de 10 (dez) dias, nos moldes do artigo 192 da Lei 8069/90.

Cumpra-se, expedindo-se o competente mandado.

O ofício ao Excelentíssimo Senhor Secretário da Justiça deverá ser entregue pessoalmente.

Para conhecimento e as providências consideradas cabíveis, encaminhe-se cópia desta decisão ao Excelentíssimo Senhor Governador do Estado de São Paulo.

Ciência ao Ministério Público.

São Paulo, 21 de maio de 2007.

Mônica Ribeiro de Souza Paukoski

Juíza de Direito

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!