A célula e o tribunal

Pesquisa com embrião deve ser debatida sem viés religioso

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13 de maio de 2007, 10h12

Dia 20 de abril de 2007 ficará registrado como a data em que o Supremo Tribunal Federal realizou, pela primeira vez nos seus 178 anos de história, uma audiência pública. Nada como a transparência para alavancar o processo democrático que, sem ela, é inviável. A pauta não poderia ter sido mais apropriada e relevante: a decisão sobre o uso de células-tronco embrionárias nas pesquisas que visam desenvolver curas para uma série de doenças que matam ou incapacitam milhões de pessoas, do mal de Parkinson e do diabetes às paralisias causadas por danos à medula espinhal.

Fiquei orgulhoso quando soube que 96% dos senadores e 85% dos deputados federais aprovaram a passagem da Lei de Biossegurança em 2005, e que o presidente da República fez o mesmo. Decisões como esta estão sendo duplicadas pelo mundo afora, pelo menos nos países que levam a pesquisa científica a sério, dada a promessa clínica desses futuros tratamentos. Mas meu orgulho durou pouco. Foi durante a sessão aberta do STF, onde 34 cientistas foram convidados para depor sobre a questão das células-tronco e suas implicações éticas, que a natureza do processo ficou clara.

Primeiro, é importante lembrar que a lei parou no STF devido à ação do subprocurador-geral da República, Cláudio Fonteles, que a considera inconstitucional. Seu argumento, semelhante ao de grupos conservadores aliados da Igreja Católica, é que assim que o espermatozóide funde-se ao óvulo, está se falando de um ser vivo: destruir o embrião para extrair-lhe as células-tronco seria assassiná-lo.

A questão debatida assiduamente pelos cientistas, e que monopoliza a opinião pública, é determinar onde começa a vida. Entretanto, a resposta é completamente irrelevante para este debate. Isto por que não se está propondo a criação de fábricas de embriões para extração de suas células-tronco, a clonagem de humanos ou outros cenários funestos que incitam os piores pesadelos de livros e filmes de ficção científica. O que se propõe é a utilização dos embriões que seriam descartados por clínicas de reprodução por serem inviáveis, como argumentou a pró-reitora de pesquisa da USP, a geneticista Mayana Zatz.

Que fim mais digno pode ter um embrião condenado à destruição do que participar de uma pesquisa que tem o potencial de salvar milhões de pessoas? A escolha me parece semelhante, ao menos em parte, à dos que doam seus órgãos para transplantes. Ao menos partes de seus corpos poderão ajudar aqueles em necessidade, em vez de apodrecerem sob a terra ou de serem cremadas.

Focar o debate constitucional na questão de onde começa a vida é desviá-lo para o inevitável conflito religioso, tirando seu mérito científico. Não surpreende que Fonteles, franciscano, tenha acusado a doutora Zatz, judia, de ser influenciada por sua religião, que diria que a vida começa no nascimento e não na fecundação. Ora, é claro então que a posição de Fonteles é baseada em sua fé e não em qualquer consideração científica. A primeira audiência pública do STF, um momento histórico para o Brasil, transformou-se numa troca de acusações de cunho religioso. Enquanto isso, milhões de pessoas continuam morrendo e os embriões apodrecendo nos congeladores ou no lixo.

A questão do uso de embriões decretados inviáveis para reprodução na pesquisa médica deve ser separada da questão religiosa. A missão da ciência é aliviar o sofrimento humano. A da religião também. A única inconstitucionalidade aqui é ir contra os votos dos representantes do povo e impedir que essa missão seja cumprida.

Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo

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