Cidade com validade

Leia voto que deu prazo de dois anos para município baiano

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13 de maio de 2007, 9h25

O Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a lei baiana 7.619/00, que criou o município de Luís Eduardo Magalhães, na Bahia. No entanto, graças a uma interpretação surpreendente, o tribunal decidiu por não pronunciar a nulidade do ato, mantendo a lei em vigência por mais 24 meses. Esse foi o resultado do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade, na qual o PT contestava a criação da cidade.

Na quarta-feira (9/4), o julgamento foi retomando com o voto-vista do ministro Gilmar Mendes, que foi acompanhado inclusive pelo relator, o ministro Eros Grau. A ADI começou a ser discutida, em 18 de maio do ano passado, com o voto de Eros pela improcedência da ação.

Na ocasião, o ministro admitiu que a lei baiana era contrária ao disposto no artigo 18, parágrafo 4º da Constituição. Mas afirmou que o município foi efetivamente criado, assumindo existência de fato. Não havia como não admitir que a cidade era um ente federativo dotado de autonomia. A declaração de inconstitucionalidade da lei baiana traria graves conseqüências e não teria efeitos reais.

Eros Grau disse que o princípio da segurança jurídica deveria ser considerado em benefício da preservação do município. “Estamos diante de uma situação excepcional não prevista pelo direito positivo, porém instalada pela força normativa dos fatos”, afirmou o relator.

Ao final do voto-vista, o ministro Eros Grau pediu a palavra para dizer que estava evoluindo seu posicionamento para acompanhar o ministro Gilmar Mendes. O ministro Marco Aurélio votou pela procedência, porém com a pronúncia da nulidade da lei baiana. Os demais ministros presentes acompanharam o voto de Gilmar Mendes.

Na seqüência, foram apreciadas duas ações sobre o mesmo tema. A ADI 3.316, que questionava a Lei 6.983/98, do estado de Mato Grosso, que criou o município de Santo Antônio do Leste, a partir do desmembramento do município de Novo São Joaquim. E a ADI 3.489, proposta contra a Lei Estadual de Santa Catarina 12.294/02, que anexou ao município de Monte Carlo a localidade Vila Arlete, desmembrada do município de Campos Novos. Em ambos os julgamentos, a decisão foi unânime pela procedência das ações, e por maioria para não declarar a nulidade da lei.

Sobre o mesmo tema, o STF também deu na quarta-feira um prazo de dezoito meses para que o Congresso Nacional regulamente uma lei federal que defina o período para a criação de municípios. Se a lei não for aprovada neste prazo, os municípios criados depois de 1996 poderão ser declarados inconstitucionais. O relator foi o ministro Gilmar Mendes.

Voto-vista de Gilmar Mendes

Ao retomar o julgamento, o ministro Gilmar Mendes concordou com os argumentos apresentados pelo relator. Tanto quanto ao princípio da segurança jurídica, quanto à situação do município, que já existe de fato como ente federativo.

“De fato, há toda uma situação consolidada que não pode ser ignorada pelo Tribunal. Com o surgimento, no plano das normas, de uma nova entidade federativa, emergiu, no plano dos fatos, uma gama de situações decorrentes da prática de atos próprios do exercício da autonomia municipal”, anota o relator antes de comentar que “o Tribunal já se encontra plenamente inteirado das graves repercussões de ordem política, econômica e social de uma eventual decisão de inconstitucionalidade”, anotou o ministro.

Gilmar Mendes ressaltou a importância do tema, já que a situação discutida não se aplicaria apenas a este município, mas também a outras cidades que foram criadas sem cumprir o artigo 18, parágrafo 4º da Constituição. O Supremo entende que este dispositivo, com a redação dada pela Emenda 15, tem eficácia limitada e dependente da promulgação da lei complementar federal. No entanto, a lei não foi ainda aprovada pelo Congresso.

O ministro enfatizou que um verdadeiro caos jurídico pode ser criado se a lei baiana fosse declarada inconstitucional com a pronúncia de sua nulidade. O tribunal deveria então definir quais contornos para que a medida não fosse danosa à realidade concreta.

“A solução para o problema, a meu ver, não pode advir da simples decisão de improcedência da ação. Seria como se o Tribunal, focando toda sua atenção na necessidade de se assegurar realidades concretas que não podem mais ser desfeitas e, portanto, reconhecendo plena aplicabilidade ao princípio da segurança jurídica, deixasse de contemplar, na devida medida, o princípio da nulidade da lei inconstitucional”, argumentou Gilmar Mendes.

O ministro disse que é possível atender a ambos os princípios. “Essa necessidade de ponderação entre o princípio da nulidade da lei inconstitucional e o princípio da segurança jurídica constitui o leitmotiv para o desenvolvimento de técnicas alternativas de decisão no controle de constitucionalidade”, disse o ministro.


Para resolver a questão, Gilmar Mendes propôs a utilização, em sua versão mais ampla, do previsto no artigo 27 da Lei 9.868/99, que regulamenta o julgamento de ADI pelo Supremo. Conforme este artigo, “ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”.

O ministro lembrou que não são poucos os que apontam a insuficiência ou a inadequação da declaração de nulidade da lei para superar algumas situações de inconstitucionalidade, seja no âmbito da isonomia ou da chamada inconstitucionalidade por omissão.

Segundo Gilmar Mendes, a falta de uma alternativa que permita estabelecer limites aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade obriga os tribunais a se abster de emitir um juízo de censura, declarando a constitucionalidade de leis inconstitucionais.

“É certo, outrossim, que, muitas vezes, a aplicação continuada de uma lei por diversos anos torna quase impossível a declaração de sua nulidade, recomendando a adoção de alguma técnica alternativa, com base no próprio princípio constitucional da segurança jurídica. Aqui, o princípio da nulidade deixaria de ser aplicado com base no princípio da segurança jurídica”, diz o voto.

O ministro disse acreditar que é até mesmo inevitável, com base no princípio da segurança jurídica, afastar a incidência do princípio da nulidade em determinadas situações, sem com isso abandonar a doutrina tradicional da nulidade da lei inconstitucional.

No entanto, Gilmar Mendes frisou que o princípio da nulidade somente deve ser afastado se for possível demonstrar, com base numa ponderação concreta, que a declaração de inconstitucionalidade ortodoxa envolveria o sacrifício de segurança jurídica.

Para ele, o princípio da nulidade deve continuar sendo a regra no julgamento de ADI. O afastamento de sua incidência deve depender de um severo juízo de ponderação, e deve se basear na idéia de segurança jurídica ou de outro princípio constitucionalmente relevante.

Desta forma, concluiu o ministro: “assim sendo, voto no sentido de, aplicando o art. 27 da Lei n° 9.868/99, declarar a inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade da lei impugnada, mantendo sua vigência pelo prazo de 24 (vinte e quatro) meses, lapso temporal razoável dentro do qual poderá o legislador estadual reapreciar o tema, tendo como base os parâmetros que deverão ser fixados na lei complementar federal, conforme decisão desta Corte na ADI 3.682”.

ADI 2.240

VOTO-VISTA

O EXMO. SR. MINISTRO GILMAR MENDES:

O Partido dos Trabalhadores-PT propôs a presente ação direta de inconstitucionalidade contra a Lei n° 7.619, de 30 de março de 2000, do Estado da Bahia, que criou o Município de Luís Eduardo Magalhães, decorrente do desmembramento do Município de Barreiras-BA.

O fundamento da impugnação, seguindo jurisprudência desta Corte, é, em síntese, a inexistência da lei complementar federal exigida pelo art. 18, § 4º, da Constituição, com a redação determinada pela EC n° 15/96, para definição do período em que os municípios poderão ser criados.

O relator, Ministro Eros Grau, iniciou seu voto reafirmando o entendimento assentado em jurisprudência da Corte, nos seguintes termos:

“O § 4º do artigo 18 da Constituição do Brasil, na redação que lhe foi atribuída pela EC n° 15/96, estabelece que a criação de Município será feita por lei estadual, dentro do período determinado por lei complementar federal, dependendo de consulta prévia. Não foi, até esta data, produzida a lei complementar federal mencionada no preceito. Daí porque a interpretação literal do texto desse § 4º do artigo 18 da Constituição do Brasil conduziria, em simples exercício de subsunção, à automática declaração de inconstitucionalidade da Lei n. 7.619, de 30 de março de 2000, do Estado da Bahia, que criou o Município de Luís Eduardo Magalhães.”

Em seguida, porém, o eminente relator passou a proferir um profundo estudo sobre a realidade fática subjacente à questão constitucional posta ao crivo do Tribunal nesta ação direta, demonstrando as conseqüências drásticas de uma eventual declaração de inconstitucionalidade da lei impugnada, nos seguintes termos:


“Ocorre que o Município foi efetivamente criado, assumindo existência de fato como ente federativo dotado de autonomia. Como tal existe. Há mais de seis anos. Por isso esta Corte não pode limitar-se à prática de um mero exercício de subsunção. Cumpre considerarmos prudentemente a circunstância de estarmos diante de uma situação de exceção e as conseqüências perniciosas que adviriam de eventual declaração de inconstitucionalidade da lei estadual.

O Município — permito-me repeti-lo — o Município foi efetivamente criado, assumindo existência de fato. No seu território foram exercidos atos próprios ao ente federativo dotado de autonomia. No dia 19 de julho de 2.001, foi promulgada a sua lei orgânica. O Município legisla sobre assuntos de interesse local; até maio de 2.006, foram sancionadas mais de duzentas leis municipais. O Município elegeu seus Prefeito e Vice-Prefeito, bem assim seus Vereadores, em eleições realizadas pela Justiça Eleitoral. Instituiu e arrecadou tributos de sua competência. Prestou e está a prestar serviços públicos de interesse local. Exerce poder de polícia. Em seu território — isto é, no Município de Luís Eduardo Magalhães — foram celebrados casamentos e registrados nascimentos e óbitos. O Município recebe recursos federais e estaduais e participa da arrecadação de tributos federais e estaduais. Segundo dados obtidos no sítio do IBGE [www.ibge.gov.br], no ano de 2.000 foram realizadas eleições no Município de Luis Eduardo Magalhães, organizadas pelo TRE-BA, de que participaram 9.412 eleitores. Em 2.004, eram 20.942 os eleitores do Município. No ano de 2.001 o Município contava com 18.757 habitantes, que se movimentam numa frota de 2.921 veículos. A população estimada pelo IBGE em 2.005 é de 22.081 habitantes. A frota, por sua vez, saltou para 3.928 veículos em 2.004. Em 2.002 foram assentados 469 nascimentos no cartório de registros públicos. Em 2.003 foram 383 registros. Também em 2.002, o Município recebeu quotas do Fundo de Participação dos Municípios no valor de R$ 4.011.364,34 e do FUNDEF da ordem de R$2.128.461,58. No ano seguinte, R$ 4.237.187,52 do FPM e, em 2.004, R$ 4.305.244,00 provenientes do FUNDEF. Em 2.003 contava com 8.174 alunos matriculados, 7.842 na rede municipal de ensino, composta por 14 escolas e 262 docentes. No sítio da Prefeitura Municipal [www.luiseduardomagalhaes.ba.gov.br], dá-se notícia de que a cidade possui 7.000 aparelhos de telefone instalados, com o maior consumo per capita em telefonia celular do Estado da Bahia. Em suma, o Município de Luís Eduardo Magalhães existe, de fato, como ente federativo dotado de autonomia municipal, a partir de uma decisão política. Esta realidade não pode ser ignorada. Em boa-fé, os cidadãos domiciliados no município supõem seja juridicamente regular a sua autonomia política.

Em boa-fé nutrida inclusive por este Tribunal, visto que a lei estadual é de 30 de março de 2.000 e a Corte poderia em julho do mesmo ano, quatro meses após, ter determinado a suspensão dos seus efeitos. Não o tendo feito, permitiu a consolidação da situação de exceção que a existência concreta do município caracteriza.

Embora de exceção, essa existência, existência de fato, decorrente da decisão política que importou a sua instalação como ente federativo dotado de autonomia municipal — repito — consubstancia uma situação consolidada. O nomos do seu território foi nele instalado. O Município legislou, de modo que uma parcela do ordenamento jurídico brasileiro é hoje composta pela legislação local emanada desse ente federativo cuja existência não pode ser negada.”

Toda essa descrição da realidade fática fundada na lei impugnada foi utilizada pelo Ministro Eros Grau para, embasado em longa e detalhada análise do princípio da segurança jurídica, defender a necessidade da preservação do Município. Disse o Ministro Eros Grau:


“O Município de Luís Eduardo Magalhães existe, é verdade, em confronto com o disposto no § 4o do artigo 18 da Constituição do Brasil. Lembro, no entanto, conhecida observação de KONRAD HESSE: na vida da coletividade há realidades que se encontram em contradição com a Constituição, mas essas realidades não devem ser consideradas como insignificantes pelo intérprete da Constituição. O importante, em face delas, é fazer tudo aquilo que seja necessário para impedir o seu nascimento [da realidade inconstitucional] ou para pô-la, essa realidade, novamente em concordância com a Constituição. No caso, existe uma realidade material, um Município, um ente federativo dotado de autonomia política. Não é possível retornarmos ao passado, para anular esta realidade, que produziu efeitos e permanece a produzi-los. O Município de Luís Eduardo Magalhães, ente da federação brasileira, é titular de autonomia municipal desde a sua criação. Como, agora, anular essa autonomia? Pois é certo que a supressão dessa autonomia, afirmada por efeitos concretos produzidos, consubstanciaria franca agressão à estrutura federativa, ao princípio federativo. A decisão política da criação do Município violou a regra constitucional, mas foi afirmada, produzindo todos os efeitos dela decorrentes. O preceito veiculado pelo § 4º do artigo 18 da Constituição visa a impedir a criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios fora de período determinado por lei complementar federal. Como o Legislativo omitiu-se, deixando de produzir essa lei complementar, e o ente federativo surgiu, existindo como tal, a aplicação do preceito para que se declare a inconstitucionalidade do ato legislativo estadual e a inconstitucionalidade institucional do Município agravará a moléstia do sistema. Se da aplicação de uma norma resulta um desvio da finalidade a que ela se destina, ela finda por não cumprir o seu papel, ela deforma. Precisamente isso se daria no caso, se a autonomia do ente federativo viesse a ser anulada.”

O Ministro Relator, enfim, concluiu pela improcedência da ação.

Pedi vista dos autos para melhor analisar o problema. Impressionou-me a conclusão a que chegou o Ministro Eros Grau – votou pela improcedência da ação – após tecer percuciente análise sobre a realidade fática fundada na lei impugnada e o peso que possui, no caso, o princípio da segurança jurídica.

De fato, há toda uma situação consolidada que não pode ser ignorada pelo Tribunal. Com o surgimento, no plano das normas, de uma nova entidade federativa, emergiu, no plano dos fatos, uma gama de situações decorrentes da prática de atos próprios do exercício da autonomia municipal. A realidade concreta que se vincula à lei estadual impugnada já foi objeto de extensa descrição analítica no voto proferido pelo Ministro Relator, e não pretendo aqui retomá-la. Creio que o Tribunal já se encontra plenamente inteirado das graves repercussões de ordem política, econômica e social de uma eventual decisão de inconstitucionalidade.

A questão pendente neste julgamento está em definir quais os contornos que a inevitável decisão do Tribunal deve assumir para que seja, na maior medida possível, menos gravosa à realidade concreta fundada sobre a nova entidade federativa.

A solução para o problema, a meu ver, não pode advir da simples decisão de improcedência da ação. Seria como se o Tribunal, focando toda sua atenção na necessidade de se assegurar realidades concretas que não podem mais ser desfeitas e, portanto, reconhecendo plena aplicabilidade ao princípio da segurança jurídica, deixasse de contemplar, na devida medida, o princípio da nulidade da lei inconstitucional.

Não se pode negar a relevância do princípio da segurança jurídica neste caso. Porém, estou convicto de que é possível primar pela otimização de ambos os princípios, tentando aplicá-los, na maior medida possível, segundo as possibilidades fáticas e jurídicas que o caso concreto pode nos apresentar[1].

Não devemos nos esquecer de que esta Corte, em diversos julgados recentes, declarou a inconstitucionalidade – e, portanto, a nulidade – de leis estaduais, posteriores à EC n° 15/96, instituidoras de novos municípios, por ausência da lei complementar federal prevista pelo art. 18, § 4o, da Constituição (ADI-MC n° 2.381/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 14.12.2001; ADI n° 3.149/SC, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 1.4.2005; ADI n° 2.702/PR, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 6.2.2004; ADI n° 2.967/BA, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19.3.2004; ADI n° 2.632/BA, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 12.3.2004).


O Tribunal tem entendimento assentado no sentido de que o art. 18, § 4o, da Constituição da República, com a redação determinada pela EC n° 15/96, é norma de eficácia limitada[2], dependente, portanto, da atuação legislativa no sentido da feitura da lei complementar nele referida para produzir plenos efeitos. Ainda que despida de eficácia plena, entende-se que tal norma constitucional tem o condão de inviabilizar a instauração de processos tendentes à criação de novas municipalidades, até o advento da referida lei complementar federal.

Esse é um dado que deve ser devidamente equacionado. O princípio da nulidade da lei inconstitucional também tem um peso elevado no caso, o que torna inevitável o recurso à técnica da ponderação.

Essa necessidade de ponderação entre o princípio da nulidade da lei inconstitucional e o princípio da segurança jurídica constitui o leitmotiv para o desenvolvimento de técnicas alternativas de decisão no controle de constitucionalidade.

O recurso a técnicas inovadoras de controle da constitucionalidade das leis e dos atos normativos em geral tem sido cada vez mais comum na realidade do direito comparado, na qual os tribunais não estão mais afeitos às soluções ortodoxas da declaração de nulidade total ou de mera decisão de improcedência da ação com a conseqüente declaração de constitucionalidade.

Em estudo sobre a doutrina da declaração prospectiva da ineficácia das leis inconstitucionais, García de Enterría bem demonstra que essa modalidade de decisão no controle de constitucionalidade decorre de uma necessidade prática comum a qualquer jurisdição de perfil constitucional:

“La técnica de la anulación prospectiva se ha desarollado en las jurisprudencias constitucionales de otros países y en la de los Tribunales supranacionales europeos en función de un problema específico del control judicial de las leyes. En palavras ya clásicas de Otto Bachof en su trabajo ‘El juez constitucional entre el Derecho y la Política’ (al que yo mismo me he referido detenidamente en el libro citado, La Constitución como Norma, pp. 179, y sigs.), porque las Sentencias anulatorias de una Ley ‘pueden ocasionar catástrofes, no solo para el caso concreto, sino para un invisible número de casos; cuando esas Sentencias son ‘politicamente equivocadas’ (en el sentido de que desbaratan las tareas políticas legítimas de la dirección del Estado), la decisión puede alcanzar a la comunidad política entera’. Así, pues, ‘más que el juez de otros ámbitos de la justicia, puede y debe el juez constitucional no perder de vista las consecuencias – y tan frecuentemente consecuencias políticas – de sus sentencias. Pero – y ésta es la cuestión a plantearse – ¿ Qué influencia le es permitido conceder a esas eventuales consecuencias sobre su sentencia? ¿ Puede, le es permitido o debe declarar ineficaz la ejecución de una Ley aplicada incólumemente durante largos años declarando una nulidad que privara de soporte a innumerables actos jurídicos, o quizá derribar a sectores enteros administrativos o económicos a causa de una infracción constitucional tardíamente descubierta? ¿ No se convertiría aquí de hecho el summum ius en summa inuria, sin utilidad para nadie y daño para muchos o para la entera comunidad? … Así, pues, ¿ fiat justitiae pereat mundos?’.”[3]

É interessante notar que, nos próprios Estados Unidos da América, onde a doutrina acentuara tão enfaticamente a idéia de que a expressão “lei inconstitucional” configurava uma contradictio in terminis, uma vez que “the inconstitutional statute is not law at all”[4], passou-se a admitir, após a Grande Depressão, a necessidade de se estabelecerem limites à declaração de inconstitucionalidade.[5] A Suprema Corte americana considerou o problema proposto pela eficácia retroativa de juízos de inconstitucionalidade a propósito de decisões em processos criminais. Se as leis ou atos inconstitucionais nunca existiram enquanto tais, eventuais condenações nelas baseadas quedam ilegítimas, e, portanto, o juízo de inconstitucionalidade implicaria a possibilidade de impugnação imediata de todas as condenações efetuadas sob a vigência da norma inconstitucional. Por outro lado, se a declaração de inconsti­tucionalidade afeta tão-somente a demanda em que foi levada a efeito, não se há que cogitar de alteração de julgados anteriores.


Sobre o tema, afirma Tribe:

No caso Linkletter v. Walker, a Corte rejeitou ambos os extremos: ‘a Constituição nem proíbe nem exige efeito retroativo.’ Parafraseando o Justice Cardozo pela assertiva de que ‘a constituição federal nada diz sobre o assunto’, a Corte de Linkletter tratou da questão da retroatividade como um assunto puramente de política (política judiciária), a ser decidido novamente em cada caso. A Suprema Corte codificou a abordagem de Linkletter no caso Stovall v. Denno: ‘Os critérios condutores da solução da questão implicam (a) o uso a ser servido pelos novos padrões, (b) a extensão da dependência das autoridades responsáveis pelo cumprimento da lei com relação aos antigos padrões, e (c) o efeito sobre a administração da justiça de uma aplicação retroativa dos novos padrões”. [6]

Segundo a doutrina, a jurisprudência americana evoluiu para admitir, ao lado da decisão de inconstitucionalidade com efeitos retroativos amplos ou limitados (limited retrospectivity), a superação prospectiva (prospective overruling), que tanto pode ser limitada (limited prospectivity)[7], aplicável aos processos iniciados após a decisão, inclusive ao processo originário, como ilimitada (pure prospectivity), que sequer se aplica ao processo que lhe deu origem.[8]

Vê-se, pois, que o sistema difuso ou incidental mais tradicional do mundo passou a admitir a mitigação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e, em casos determinados, acolheu até mesmo a pura declaração de inconstitucionalidade com efeito exclusivamente pro futuro[9].

No Direito português, reconhece-se expressamente, a possibilidade de o Tribunal Constitucional limitar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, nos termos no art. 282, (4), da Constituição:

“Quando a segurança jurídica, razões de eqüidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito do que o previsto nos nº 1 e 2.”.

Vale registrar, a propósito, a opinião abalizada de Jorge Miranda:

“A fixação dos efeitos da inconstitucionalidade destina-se a adequá-los às situações da vida, a ponderar o seu alcance e a mitigar uma excessiva rigidez que pudesse comportar; destina-se a evitar que, para fugir a conseqüências demasiado gravosas da declaração, o Tribunal Constitucional viesse a não decidir pela ocorrência de inconstitucionalidade; é uma válvula de segurança da própria finalidade e da efetividade do sistema de fiscalização.­


Uma norma como a do art. 282, nº 4, aparece, portanto, em diversos países, senão nos textos, pelo menos na jurisprudência.

Como escreve Bachof, os tribunais constitucionais consideram-se não só autorizados mas inclusivamente obrigados a ponderar as suas decisões, a tomar em consideração as possíveis conseqüências destas. É assim que eles verificam se um possível resultado da decisão não seria manifestamente injusto, ou não acarretaria um dano para o bem público, ou não iria lesar interesses dignos de proteção de cidadãos singulares. Não pode entender-se isto, naturalmente, como se os tribunais tomassem como ponto de partida o presumível resultado da sua decisão e passassem por cima da Constituição e da lei em atenção a um resultado desejado. Mas a verdade é que um resultado injusto, ou por qualquer outra razão duvidoso, é também em regra — embora não sempre — um resultado juridicamente errado.”[10]

Deve-se anotar que, além de razões estritamente jurídicas – segurança jurídica e eqüidade –, o constituinte português consagrou, aparentemente, uma cláusula justificadora da limitação de efeito também de caráter político – o interesse público de excepcional relevo.[11]

Ressalte-se, ademais, que o instituto vem tendo ampla utilização, desde a sua adoção. Segundo Rui Medeiros, entre 1983 e 1986, quase um terço das declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral tiveram efeitos restritos. Essa tendência mantém-se também entre 1989 e 1997: das 50 declarações de inconstitucionalidade proferidas em processos de controle abstrato de normas pelo menos 18 teriam sido com limitação de efeitos.[12]

A despeito do caráter de cláusula geral ou conceito jurídico indeterminado que marca o art. 282 (4), da Constituição portuguesa, a doutrina e jurisprudência entendem que a margem de escolha conferida ao Tribunal para a fixação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade não legitima a adoção de decisões arbitrárias, estando condicionada pelo princípio de proporcionalidade.

A propósito, Rui Medeiros assinala que as três vertentes do princípio da proporcionalidade têm aplicação na espécie (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito).

Peculiar relevo assume a proporcionalidade em sentido estrito na visão de Rui Medeiros:

“A proporcionalidade nesta terceira vertente tanto pode ser perspectivada pelo lado da limitação de efeitos como pelo lado da declaração de inconstitucionalidade. Tudo se reconduz, neste segundo caso, a saber se à luz do princípio da proporcionalidade as conseqüências gerais da declaração de inconstitucionalidade são ou não excessivas. Impõe-se, para o efeito, ponderação dos diferentes interesses em jogo, e, concretamente, o confronto entre interesses afectado pela lei inconstitucional e aqueles que hipoteticamente seriam sacrificados em conseqüência da declaração de inconstitucionalidade com eficácia retroactiva e repristinatória.


Todavia, ainda quanto a esta terceira vertente do princípio da proporcionalidade, não é constitucionalmente indiferente perspectivar o problema das conseqüências da declaração de inconstitucionalidade do lado da limitação de efeitos ou do lado da própria declaração de inconstitucionalidade. A declaração de inconstitucionalidade com eficácia ex tunc tem, manifestamente prioridade de aplicação. Todo o sistema de fiscalização de constitucionalidade português está orientado para a expurgação de normas inconstitucionais. É, aliás, significativa a recusa de atribuição de força obrigatória geral às decisões de não inconstitucionalidade. Não basta, pois, afirmar que “o Tribunal Constitucional deve fazer um juízo de proporcionalidade, cotejando o interesse na reafirmação da ordem jurídica — que a eficácia ex tunc da declaração plenamente potencia – com o interesse na eliminação do factor de incerteza e de insegurança – que a retroactividade, em princípio, acarreta (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 308/93)”. É preciso acrescentar que o Tribunal Constitucional deve declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral e eficácia retroactiva e repristinatória, a menos que uma tal solução envolva o sacrifício excessivo da segurança jurídica, da eqüidade ou de interesse público de excepcional relevo”.[13]

Acentue-se que, ao contrário do imaginado por alguns autores, também o conceito indeterminado relativo ao interesse público de excepcional relevo não é um mero conceito de índole política. Em verdade, tal como anota Rui Medeiros, a referência ao interesse público de excepcional relevo não contrariou qualquer intenção restritiva nem teve o propósito de substituir a constitucionalidade estrita por uma constitucionalidade política ou de colocar a razão de Estado em lugar da razão da lei. Essa opção nasceu da constatação de que “a segurança jurídica e eqüidade, não esgotavam o universo dos valores últimos do direito que, em situações manifestamente excepcionais, podiam justificar uma limitação de efeitos”.

Resta, assim, evidente que o art. 282 (4), da Constituição portuguesa adota, também em relação ao interesse público de excepcional relevo, um conceito jurídico indeterminado para abarcar os interesses constitucionalmente protegidos não subsumíveis nas noções de segurança jurídica e de eqüidade.

Essa orientação enfatiza que os conceitos de segurança jurídica, eqüidade e interesse público de excepcional relevo expressam valores constitucionais e não simples fórmulas de política judiciária. [14]

Na Espanha, embora nem a Constituição nem a lei orgânica do Tribunal Constitucional tenham adotado expressamente uma declaração de inconstitucionalidade com efeitos restritos, a Corte Constitucional, marcadamente influenciada pela experiência constitucional alemã, passou a adotar, desde 1989, a técnica da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade, como reportado por Garcia de Enterría:


“A recente publicação no Boletim Oficial do Estado de 2 de março último da já famosa Sentença 45/1989, de 20 de fevereiro, sobre inconstitucionalidade do sistema de liquidação conjunta do imposto sobre a renda da unidade familiar matrimonial, permite aos juristas uma reflexão pausada sobre esta importante decisão do Tribunal Constitucional, objeto já de múltiplos comentários periodísticos.

A decisão é importante, com efeito, por seu fundamento, a inconstitucionalidade que declara, tema no qual não haver sido produzido até agora, discrepância alguma. Mas parece-me bastante mais importante ainda pela inovação que se supõe na determinação dos efeitos dessa inconstitucionalidade, que a sentença remete ao que se indica no décimo-primeiro fundamento e este explica como uma eficácia para o futuro, que não permite reabrir as liquidações administrativas ou dos próprios contribuintes (auto-liquidações) anteriores”[15].

Na mesma linha de entendimento, a Corte constitucional tem declarado a inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade de dispositivos constantes de leis orçamentárias. Assim, na STC 13/92/17 assentou-se que “a anulação dessas dotações orçamentárias poderia acarretar graves prejuízos e perturbações aos interesses gerais, também na Catalunha, afetando situações jurídicas consolidadas e particularmente a política econômica e financeira do Estado[16].

Essa sucinta análise do direito comparado demonstra uma forte tendência no sentido da universalização de alternativas normativas ou jurisprudenciais em relação à técnica de nulidade. Pode-se dizer que, independentemente do modelo de controle adotado, de perfil difuso ou concentrado, a criação de técnicas alternativas é comum aos mais diversos sistemas constitucionais. Também o Tribunal da Comunidade Européia e o Tribunal Europeu de Direitos Humanos curvaram-se à necessidade de adoção de uma técnica alternativa de decisão. É certo, outrossim, que esse desenvolvimento se faz com base em previsões constitucionais ou legais expressas ou implícitas, ou ainda, com base em simples opção de política judiciária, como se reconhece nos Estados Unidos.

Em muitos casos, como visto, a adoção de uma declaração de inconstitucionalidade mitigada decorreu de construção pretoriana.

São os exemplos da Alemanha, na fase inicial, e da Espanha. Nesses dois sistemas, dominava a idéia do princípio da nulidade como princípio constitucional não-escrito (§ 78 da Lei da Corte constitucional alemã; art 39 da Lei orgânica da Corte constitucional espanhola). Essa orientação, todavia, não impediu que, em casos determinados, ambas as Cortes constitucionais se afastassem da técnica da nulidade e passassem a desenvolver fórmulas alternativas de decisão. Em outras palavras, a adoção formal do princípio da nulidade não impediu a adoção de técnica alternativa de decisão naqueles casos em que a nulidade poderia revelar inadequada (v.g. casos de omissão parcial) ou trazer conseqüências intoleráveis para o sistema jurídico (ameaça de caos jurídico ou situação de insegurança jurídica).

Ressalte-se, ainda, que a evolução das técnicas de decisão em sede de controle judicial de constitucionalidade deu-se no sentido da quase integral superação do sistema que Canotilho denominou de “silogismo tautológico”: (1) uma lei inconstitucional é nula; (2) uma lei é nula porque inconstitucional; (3) a inconstitucionalidade reconduz-se à nulidade e a nulidade à inconstitucionalidade)[17]. Tal como demonstrado, a técnica da nulidade revela-se adequada para solver as violações das normas constitucionais de conteúdo negativo ou proibitivo (v.g., direitos fundamentais enquanto direitos negativos), mas mostra-se inepta para arrostar o quadro de imperfeição normativa, decorrente de omissão legislativa parcial ou da lesão ao princípio da isonomia. Assente, igualmente, que o princípio da segurança jurídica é um valor constitucional relevante, tanto quanto a própria idéia de legitimidade. Resta evidente que a teoria da nulidade não poderia ser aplicada na linha do velho adágio “fiat justitia, pereat mundus”.


Não se poderia declarar a nulidade de uma lei que pudesse importar na criação de um caos jurídico ou, em casos extremos, produzir aquilo que alguém chamou de um “suicídio democrático”, cujo melhor exemplo seria a declaração de nulidade de uma lei eleitoral de aplicação nacional a regular a posse dos novos eleitos. Restou, assim, superada, por fundamentos diversos, a fórmula apodítica “constitucionalidade/ nulidade” anteriormente dominante. Não se poderia negar que muitas situações imperfeitas de uma perspectiva constitucional dificilmente seriam superadas com a simples utilização da declaração de nulidade.

Essa tendência no sentido da adoção cada vez maior de técnicas diferenciadas de decisão no controle de constitucionalidade é também resultado da conhecida relativização do vetusto dogma kelseniano do “legislador negativo”. Sobre o tema, é digno de nota o estudo de Joaquín Brage Camazano[18], do qual cito a seguir alguns trechos:

“La raíz esencialmente pragmática de estas modalidades atípicas de sentencias de la constitucionalidad hace suponer que su uso es prácticamente inevitable, con una u otra denominación y con unas u otras particularidades, por cualquier órgano de la constitucionalidad consolidado que goce de una amplia jurisdicción, en especial si no seguimos condicionados inercialmente por la majestuosa, pero hoy ampliamente superada, concepción de Kelsen del TC como una suerte de ‘legislador negativo’. Si alguna vez los tribunales constitucionales fueron legisladores negativos, sea como sea, hoy es obvio que ya no lo son; y justamente el rico ‘arsenal’ sentenciador de que disponen para fiscalizar la constitucionalidad de la Ley, más allá del planteamiento demasiado simple ‘constitucionalidad/ inconstitucionalidad’, es un elemento más, y de importancia, que viene a poner de relieve hasta qué punto es así. Y es que, como Fernández Segado destaca, ‘la praxis de los tribunales constitucionales no ha hecho sino avanzar en esta dirección’ de la superación de la idea de los mismos como legisladores negativos, ‘certificando [así] la quiebra del modelo kelseniano del legislador negativo.”

Assim, além das muito conhecidas técnicas de interpretação conforme a Constituição, declaração de nulidade parcial sem redução de texto, ou da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade, aferição da “lei ainda constitucional” e do apelo ao legislador, são também muito utilizadas as técnicas de limitação ou restrição de efeitos da decisão, o que possibilita a declaração de inconstitucionalidade com efeitos pro futuro a partir da decisão ou de outro momento que venha a ser determinado pelo tribunal.

No Brasil, há muito vem a doutrina ressaltando as limitações da simples pronúncia da nulidade ou da mera cassação da lei para solver todos os problemas relacionados à inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo.

Não são poucos os que apontam a insuficiência ou a inadequação da declaração de nulidade da lei para superar algumas situações de inconstitucionalidade, sobretudo no âmbito do princípio da isonomia e da chamada inconstitucionalidade por omissão.[19] Esse problema revela-se tanto mais sério se se considera que, satisfeitas as principais exigências constitucionais dirigidas ao legislador, passará a assumir relevo a chamada omissão parcial, decorrente da execução defeituosa do dever constitucional de legislar.

É certo, outrossim, que, muitas vezes, a aplicação continuada de uma lei por diversos anos torna quase impossível a declaração de sua nulidade, recomendando a adoção de alguma técnica alternativa, com base no próprio princípio constitucional da segurança jurídica. Aqui, o princípio da nulidade deixaria de ser aplicado com base no princípio da segurança jurídica.

Nesse contexto, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem evoluído significativamente nos últimos anos, sobretudo a partir do advento da Lei n° 9.868/99, cujo art. 27 abre ao Tribunal uma nova via para a mitigação de efeitos da decisão de inconstitucionalidade. A prática tem demonstrado que essas novas técnicas de decisão têm guarida também no âmbito do controle difuso de constitucionalidade[20].


O texto inscrito na Lei n. 9.868/99 é resultado da proposta constante do Projeto de Lei n. 2.960/97. Na Exposição de Motivos do aludido projeto afirmava-se, a propósito:

“ […] Coerente com evolução constatada no Direito Constitucional comparado, a presente proposta permite que o próprio Supremo Tribunal Federal, por uma maioria diferenciada, decida sobre os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, fazendo um juízo rigoroso de ponderação entre o princípio da nulidade da lei inconstitucional, de um lado, e os postulados da segurança jurídica e do interesse social, de outro (art. 27). Assim, o princípio da nulidade somente será afastado “in concreto” se, a juízo do próprio Tribunal, se puder afirmar que a declaração de nulidade acabaria por distanciar-se ainda mais da vontade constitucional.

Entendeu, portanto, a Comissão que, ao lado da ortodoxa declaração de nulidade, há de se reconhecer a possibilidade de o Supremo Tribunal, em casos excepcionais, mediante decisão da maioria qualificada (dois terços dos votos), estabelecer limites aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, proferindo a inconstitucionalidade com eficácia ex nunc ou pro futuro, especialmente naqueles casos em que a declaração de nulidade se mostre inadequada (v.g.: lesão positiva ao princípio da isonomia) ou nas hipóteses em que a lacuna resultante da declaração de nulidade possa dar ensejo ao surgimento de uma situação ainda mais afastada da vontade constitucional.[…]”[21]

O art. 27 da Lei n° 9.868/99 veio preencher a lacuna – já detectada pelo Tribunal – existente no âmbito das técnicas de decisão no processo de controle de constitucionalidade. É que, como anotado, com precisão por Sepúlveda Pertence, “a alternativa radical da jurisdição constitucional ortodoxa entre constitucionalidade plena e a declaração de inconstitucionalidade ou revogação por inconstitucionalidade da lei com fulminante eficácia ex tunc faz abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo (…).”[22] Essa deficiência se mostrou notória já na decisão de 23.3.94, na qual o Supremo Tribunal Federal teve oportunidade de ampliar a complexa tessitura das técnicas de decisão no controle de constitucionalidade, admitindo que lei que concedia prazo em dobro para a defensoria pública era de ser considerada constitucional enquanto esses órgãos não estivessem devidamente habilitados ou estruturados.[23]

Promulgada a Lei n° 9868, de 10.11.99, a Confederação Nacional das Profissões Liberais – CNPL e a Ordem dos Advogados do Brasil propuseram ações diretas de inconstitucionalidade contra alguns dispositivos da referida lei, dentre eles o próprio artigo 27 (ADI nº 2.154 e 2.258, Rel Min. Sepúlveda Pertence). O julgamento de ambas as ações foi iniciado no último dia 14 de fevereiro (2007), porém foi suspenso, por falta de quórum, relativamente ao art. 27 (Vide Informativo STF n° 456/2007). De qualquer forma, o Tribunal já vem sinalizando seu entendimento a respeito da plena constitucionalidade desse dispositivo.


Com efeito, a falta de um instituto que permita estabelecer limites aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade acaba por obrigar os Tribunais, muitas vezes, a se abster de emitir um juízo de censura, declarando a constitucionalidade de leis manifestamente incons­titucionais. Como ressalta García de Enterría, “la jurisprudência norteamericana y sus comentaristas han invocado derechamente un argumento evidente: si no se admitiese el pronunciamiento prospectivo no se declararía la inconstitucionalidad de un gran número de normas. La doctrina de la absoluta y retroactiva nulidad de las Leyes inconstitucionales conduce ‘en la dirección de la greater restraint’, del más fuerte freno a los pronunciamientos de inconstitucionalidad”[24].

O perigo de uma tal atitude desmesurada de self restraint (ou greater restraint) pelas Cortes Constitucionais ocorre justamente nos casos em que, como o presente, a nulidade da lei inconstitucional pode causar uma verdadeira catástrofe – para utilizar a expressão de Otto Bachof – do ponto de vista político, econômico e social. Como assevera García de Enterría, “es, justamente, la relación estrecha entre ambos conceptos (nulidad = catástrofe) la que le ha llevado a buscar en el ordenamiento constitucional otra solución y ha creído haberla encontrado en la adopción del criterio de la inconstitucionalidad prospectiva, hoy establecido y admitido por los más importantes sistemas de justicia constitucional e internacional del mundo entero[25].

Como admitir, para ficarmos no exemplo de Walter Jellinek, a declaração de inconstitucionalidade total com efeitos retroativos de uma lei eleitoral tempos depois da posse dos novos eleitos em um dado Estado? Nesse caso, adota-se a teoria da nulidade e declara-se inconstitucional e ipso jure a lei, com todas as conseqüências, ainda que dentre elas esteja a eventual acefalia do Estado? Questões semelhantes podem ser suscitadas em torno da inconstitucionalidade de normas orçamentárias. Há de se admitir, também aqui, a aplicação da teoria da nulidade tout court? Dúvida semelhante poderia suscitar o pedido de inconstitucionalidade, formulado anos após a promulgação da lei de organização judiciária que instituiu um número elevado de comarcas, como já se verificou entre nós.[26] Ou, ainda, o caso de declaração de inconstitucionalidade de regime de servidores aplicado por anos sem contestação.

Essas questões parecem suficientes para demonstrar que, sem abandonar a doutrina tradicional da nulidade da lei inconstitucional, é possível e, muitas vezes, inevitável, com base no princípio da segurança jurídica, afastar a incidência do princípio da nulidade em determinadas situações.

Vê-se, nesse passo, que o art. 27 da Lei 9.868/99 limita-se a explicitar orientação que decorre do próprio sistema de controle de constitucionalidade.

Não se nega, pois, o caráter de princípio constitucional ao princípio da nulidade da lei inconstitucional. Entende-se, porém, que tal princípio não poderá ser aplicado nos casos em que se revelar absolutamente inidôneo para a finalidade perseguida (casos de omissão; exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade), bem como nas hipóteses em que, como ocorre no presente caso, a sua aplicação pudesse trazer danos para o próprio sistema jurídico constitucional (grave ameaça à segurança jurídica).


Assim, configurado eventual conflito entre o princípio da nulidade e o princípio da segurança jurídica, que, entre nós, tem status constitucional, a solução da questão há de ser, igualmente, levada a efeito em um processo de complexa ponderação.

Em muitos casos, então, há de se preferir a declaração de inconstitucionalidade com efeitos restritos à insegurança jurídica de uma declaração de nulidade, como demonstram os múltiplos exemplos do direito comparado e do nosso direito.

Nesses termos, fica evidente que a norma contida no art. 27 da Lei 9.868/99 tem caráter fundamentalmente interpretativo, desde que se entenda que os conceitos jurídicos indeterminados utilizados – segurança jurídica e excepcional interesse social – se revestem de base constitucional. No que diz respeito à segurança jurídica, parece não haver dúvida de que encontra expressão no próprio princípio do Estado de Direito consoante, amplamente aceito pela doutrina pátria e alienígena. Excepcional interesse social pode encontrar fundamento em diversas normas constitucionais.

O que importa assinalar é que, consoante a interpretação aqui preconizada, o princípio da nulidade somente há de ser afastado se se puder demonstrar, com base numa ponderação concreta, que a declaração de inconstitucionalidade ortodoxa envolveria o sacrifício da segurança jurídica ou de outro valor constitucional materializável sob a forma de interesse social.[27]

Portanto, o princípio da nulidade continua a ser a regra também no direito brasileiro. O afastamento de sua incidência dependerá de um severo juízo de ponderação que, tendo em vista análise fundada no princípio da proporcionalidade, faça prevalecer a idéia de segurança jurídica ou outro princípio constitucionalmente relevante manifestado sob a forma de interesse social relevante. Assim, aqui, como no direito português, a não-aplicação do princípio da nulidade não se há de basear em consideração de política judiciária, mas em fundamento constitucional próprio.

Entre nós, cuidou o legislador de conceber um modelo restritivo também no aspecto procedimental, consagrando a necessidade de um quorum especial (dois terços dos votos) para a declaração de inconstitucionalidade com efeitos limitados. Terá significado especial o princípio da proporcionalidade, especialmente a proporcionalidade em sentido estrito, como instrumento de aferição da justeza da declaração de inconstitucionalidade (com efeito da nulidade), tendo em vista o confronto entre os interesses afetados pela lei inconstitucional e aqueles que seriam eventualmente sacrificados em conseqüência da declaração de inconstitucionalidade.[28]

Não parecem procedentes, pois, as impugnações contra a constitucionalidade do art. 27 da Lei 9.868/99. É certo que Supremo Tribunal Federal ainda não se pronunciou, definitivamente, sobre a constitucionalidade do art. 27 da Lei nº. 9868/99. É notório, porém, que o Tribunal já está a aplicar o art. 27 aos casos de controle incidental[29] e ao controle abstrato[30]. Desse modo, parece superado o debate sobre a legitimidade da fórmula positivada no referido artigo.


No presente caso, o Tribunal tem a oportunidade de aplicar o art. 27 da Lei n° 9.868/99 em sua versão mais ampla. A declaração de inconstitucionalidade e, portanto, da nulidade da lei instituidora de uma nova entidade federativa, o Município, constitui mais um dentre os casos – como os anteriormente citados, retirados de exemplos do direito comparado – em que as conseqüências da decisão tomada pela Corte podem gerar um verdadeiro caos jurídico.

Não há dúvida, portanto, – e todos os Ministros que aqui se encontram parecem ter plena consciência disso – de que o Tribunal deve adotar uma fórmula que, reconhecendo a inconstitucionalidade da lei impugnada – diante da vasta e consolidada jurisprudência sobre o tema –, resguarde na maior medida possível os efeitos por ela produzidos.

Assim sendo, voto no sentido de, aplicando o art. 27 da Lei n° 9.868/99, declarar a inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade da lei impugnada, mantendo sua vigência pelo prazo de 24 (vinte e quatro) meses, lapso temporal razoável dentro do qual poderá o legislador estadual reapreciar o tema, tendo como base os parâmetros que deverão ser fixados na lei complementar federal, conforme decisão desta Corte na ADI 3.682.


[1] Cfr.: ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales; 2001. p. 86 e ss.

[2] Cfr.: SILVA, José Afonso da Silva. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 6a ed. São Paulo: Malheiros; 2003.

[3] GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. Justicia Constitucional: la doctrina prospectiva en la declaración de ineficácia de las leyes inconstitucionales. In: Revista de Direito Público n° 92; out./dez. de 1989, p. 12-13.

[4] Willoughby, Westel Woodbury. The Constitutional Law of the United States, New York, 1910, v. 1, p. 9-10; cf., e. Cooley, Thomas M., Treaties on the Constitutional Limitations, 1878, p. 227.

[5] Tribe, Laurence. The American Constitutional Law, The Foundation Press, Mineola, New York,1988.

[6] Tribe, American Constitutional Law, cit., p.30.

[7] Victoria Iturralde Sesma observa que a adoção da doutrina quase prospectiva tem como objetivos indicar que se trata de uma decisão, não de um mero dictum e oferecer algum inventivo aos litigantes na busca da revisão das normas existentes (El Precedente, cit., p. 182).

[8] Palu, Oswaldo Luiz. Controle de constitucionalidade, São Paulo 2a. ed., 2001, p. 173; Medeiros,Rui. A Decisão de Inconstitucionalidade, Universidade Católica Editora, Lisboa, 1999.

[9] Cf. a propósito, Sesma, El Precedente, cit., p. 174 s.

[10] Miranda, Jorge. Manual de direito constitucional, 3. ed., Coimbra, 1991, t. 2, p. 500-2.


[11] Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 704.

[12] Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 689.

[13] Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 703-704.

[14] Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade.,cit., p. 705 a 715, que, por isso, sublinha a diferença, nesse ponto, entre o direito português e o direito austríaco.

[15] Garcia de Enterría, Justicia Constitucional, cit., RDP n. 92, p. 5.

[16] Campo, Javier Jiménez .Que hacer con la ley inconstitucional, in: La sentencia sobre la constitucionalidad de la ley, Madri, 1997, p. 15 (64).

[17] Canotilho J. J. Gomes, Direito constitucional, 4. ed., Coimbra, 1986, p. 729.

[18] CAMAZANO, Joaquín Brage. Interpretación constitucional, declaraciones de inconstitucionalidad y arsenal sentenciador (un sucinto inventario de algunas sentencias “atípicas”). en Eduardo Ferrer Macgregor (ed.), La interpretación constitucional, Porrúa, México, 2005, en prensa.

[19] Cf., sobre o assunto, Maurer, Zur Verfassungswidrigerklärung von Gesetzen, cit., p. 345 (368).

[20] RE 197.917/SP, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 7.5.2004.

[21] Exposição de Motivos nº 189, de 07.04.1997, ao Projeto de Lei nº 2960, de 1997.

[22] RE 14.7776, Relator: Ministro Sepúlveda Pertence, DJ 19.06.1998.


[23] HC no 70.514, julgamento em 23.03.94.

[24] GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. Justicia Constitucional: la doctrina prospectiva en la declaración de ineficácia de las leyes inconstitucionales. In: Revista de Direito Público n° 92; out./dez. de 1989, p. 13.

[25] GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. Justicia Constitucional: la doctrina prospectiva en la declaración de ineficácia de las leyes inconstitucionales. In: Revista de Direito Público n° 92; out./dez. de 1989, p. 14.

[26] Cf., RE 104393/GO, Relator Ministro Moreira Alves,2a. turma, DJ de 24/05/85.

[27] Cf., a propósito do direito português, Medeiros, Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 716.

[28] Cf., Medeiros, Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 703-704.

[29] Cf. RE 197.917, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 07.05.2004 e Rcl n. 2.391, Rel. Min. Marco Aurélio, Red. para o acórdão, Min. Joaquim Barbosa. Julgamento não concluído. Sobre os referidos julgamentos, cf. item 7.4.3., infra.

[30] ADI 3022, Rel. Joaquim Barbosa, DJ de 18.08.2004.

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