Impunidade paulista

TJ paulista pode deixar prescrever ações contra 70 prefeitos

Autor

12 de maio de 2007, 0h00

A Justiça paulista corre o risco de deixar prescrever processos criminais contra cerca de 70 prefeitos. A impunidade pode ser alcançada por conta de disputa interna no maior tribunal do país que, há quase um ano, tenta se entender sobre uma questão: de quem é a competência para julgar supostos crimes cometidos por prefeitos? Do Órgão Especial — colegiado de cúpula formado por 25 desembargadores — ou das Câmaras da Seção Criminal?

A dúvida deveria ser esclarecida pelo Órgão Especial, mas o colegiado ainda não se entendeu sobre o assunto. O caso aguarda decisão do Supremo Tribunal Federal, apesar de ter um único diagnóstico na Corte paulista: seja qual for a conclusão, há riscos de deixar as autoridades impunes. Os prefeitos são acusados de crimes como lavagem de dinheiro, abuso de autoridade, desvio ou mau uso do erário, irregularidades em processos de licitação e posse ilegal de arma.

Enquanto a questão não é definida, os processos continuam parados e os prazos caminham em sentido contrário. Desde agosto do ano passado, os pedidos de instauração de processo criminal contra prefeito não são apreciados pelos desembargadores. O caso, agora, promete novos capítulos com o ajuizamento de pedido de Mandado de Segurança por dois desembargadores contra o presidente do Tribunal de Justiça, Celso Limongi, e contra o vice-presidente, Canguçu de Almeida — clique aqui para ler a notícia.

O tribunal paulista vive um momento de transição que começou com a aprovação da Emenda Constitucional 45, no final de 2004, que instituiu a reforma do Judiciário. Disputas que envolvem visões diferentes a respeito de questões políticas e administrativas impedem as mudanças e adequações do TJ paulista às novas normas.

Atualmente, o Órgão Especial tem atribuição administrativa e jurisdicional e competência para processar e julgar o governador, o vice-governador, deputados estaduais, secretários de Estados, juízes estaduais e membros do Ministério Público. A competência para julgar prefeitos, na esfera criminal, foi retirada daquele colegiado por força de resolução do Conselho Nacional de Justiça e depende de recurso no STF.

A confusão é tamanha que advogados chegam a ser notificados a comparecerem a julgamento que jamais ocorrerão. Foi o que aconteceu com o advogado Amauri Gomes Farinasso, que viajou de Quatá (cidade a 474 quilômetros da capital paulista) para apresentar a defesa oral de seu cliente, o prefeito de Quintana, Ulisses Licório, diante do Órgão Especial. Vestiu a beca, ouviu o anúncio, sentou na cadeira e saiu surpreso quando o presidente Celso Limongi anunciou que o julgamento não iria acontecer. “É um absurdo. Podiam ter avisado”, protestou o prefeito, que veio acompanhar o julgamento. Ele é acusado de posse ilegal de arma.

O impasse começou em agosto do ano passado na reunião do Tribunal Pleno (que reúne os 360 desembargadores do TJ). O colegiado determinou que decisões e investigações sobre delitos de prefeitos eram de competência exclusiva do Órgão Especial. Então, todos os processos que até aquela data estavam sendo julgados pelas câmaras criminais foram imediatamente transferidos para o Órgão Especial.

O ataque

Insatisfeito, um grupo de desembargadores resolveu bater às portas do CNJ para reclamar da decisão e inverter o resultado. Meses depois, ao analisar, em caráter liminar, o Procedimento de Controle Administrativa (PCA) 260, o CNJ entendeu que o Tribunal Pleno usurpou atribuição do Órgão Especial. Estava criado o impasse.

Por maioria de votos, os conselheiros do CNJ anularam a expressão “a ser submetida à apreciação pelo Tribunal Pleno”, do artigo 1º, e todo o artigo 5º, da Portaria 7.348/2006, assinada pelo presidente do TJ paulista. A decisão do CNJ foi além. Eles resolveram cassar todos os atos e deliberações administrativas ou normativas que invadiram a competência do Órgão Especial, afrontaram o Enunciado Administrativo 2 do CNJ e violaram os textos constitucionais.

Para a maioria dos conselheiros, o Órgão Especial é constituído para o exercício das funções administrativas e jurisdicionais retiradas, transferidas ou delegadas do Tribunal Pleno. O acórdão, assinado pelo relator Marcus Faver, dizia que constituído o Órgão Especial, resta ao Pleno apenas a função eleitoral, que não pode ser delegada.

Para o conselheiro, a criação do Órgão Especial se deve ao gigantismo do Tribunal Pleno, pela impossibilidade deste para exercer suas atribuições de forma eficaz. No caso de São Paulo, o Pleno é formado por 360 membros. No entanto, o relator afirma que o colegiado não constitui um órgão fracionado do Tribunal, mas uma projeção reduzida e proporcional deste.

O contra-ataque

Logo em seguida, 17 desembargadores ingressaram com pedido de Mandado de Segurança no STF contra a liminar, que fora dada a um outro grupo de 13 desembargadores da Corte paulista.

O pedido, apresentado pelos advogados Hotans Pedro Sartori e Magaly Garisio Sartori Haddad, foi feito pelos desembargadores Ivan Sartori, Ferraz de Arruda, Ciro Campos, Samuel Junior, Mário Devienne, Reis Kuntz, Alberto Viegas Mariz de Oliveira, Mathias Coltro, Aroldo Mendes Viotti, Luis Antonio Ganzerla, Penteado Navarro, Guilherme Gonçalves Strenger, Pinheiro Franco, Eduardo Pereira Santos, Fábio Monteiro Gouvêa, Teodomiro Mendez e Antonio Manssur.

A defesa alega que os impetrantes aguardam há quatro meses uma decisão do CNJ enquanto a comissão que discute o projeto de novo regimento interno para a corte paulista realiza seu trabalho sem saber que colegiado vai apreciar a proposta.

Recurso administrativo

Em dezembro, o presidente do TJ paulista, Celso Limongi, havia entrado com recurso administrativo contra a mesma liminar. Limongi afirma que foi surpreendido com o teor do acórdão e pede que ele seja retificado. O presidente do TJ-SP aponta que o trecho que causou estranheza diz que o deferimento parcial da liminar se aplica “para cassar todas as deliberações administrativas ou normativas do Tribunal Pleno, que usurparam atribuições do Órgão Especial, afrontaram o Enunciado Administrativo 2 deste Conselho e violaram os textos constitucionais”.

Segundo o recurso de Limongi, este tema não foi debatido na sessão plenária de 24 de outubro deste ano quando o CNJ, sem a presença de todos os conselheiros, decidiu pela concessão parcial da liminar. Portanto, ele não foi objeto de deliberação ou aprovação. Pondera, ainda, que a cassação de todas as deliberações administrativas do Tribunal Pleno prejudica a que se refere à competência do Órgão Especial para julgar processos criminais contra prefeitos municipais, o que gerou sua imediata distribuição aos desembargadores do Órgão.

“A decisão, segundo se pensa, acrescida indevidamente no acórdão concessivo da liminar, fez instaurar compreensível insegurança a respeito do assunto, já que implicará na restituição à Seção Criminal de todos os processos já distribuídos aos integrantes do Órgão Especial. Tudo resultando em evidente comprometimento à celeridade reclamada pelos julgamentos”, diz outro trecho do recurso, justificando a inadequação da medida.

Impasse jurídico

As divergências de natureza político-administrativa são criaram o impasse sobre o julgamento dos delitos contra prefeitos. Logo após a decisão do CNJ, os processos envolvendo crimes de prefeitos deveriam fazer o caminho de volta e retornar às câmaras criminais. Mas nem todos os desembargadores seguiram a decisão. Muitos processos continuaram no Órgão Especial. Do outro lado, alguns desembargadores e até câmaras entenderam que deveria continuar valendo a decisão do Tribunal Pleno e não estão julgando os processos, mandando-os de volta para o Órgão Especial.

Com a confusão instalada, o vice-presidente, Canguçu de Almeida, decidiu distribuir todos os processos de crimes de prefeitos às câmaras criminais. A medida foi anunciada no final de janeiro durante reunião do Órgão Especial. O assunto foi colocado na pauta administrativa para discutir a competência para o julgamento depois de liminar do CNJ. Os desembargadores preferiram adiar o julgamento.

Os debates foram acirrados, demonstrando haver dois blocos com opiniões divergentes sobre o assunto. O primeiro a se manifestar foi o desembargador Denser de Sá. Para ele, a decisão do CNJ deve ser cumprida e qualquer alteração de competência depende de proposta a ser apresentada à Comissão de Regimento Interno. “A decisão do Pleno está cassada. O CNJ assim decidiu e esta decisão tem que ser cumprida”, afirmou Denser de Sá.

O desembargador Penteado Navarro lembrou que a prescrição está próxima nos processos em andamento. “Esses processos estão prescrevendo e vai ficar feio para o tribunal a prescrição”, criticou. Ruy Camilo ressaltou as dificuldades que trará a apreciação dessas ações pelos membros do Órgão Especial, porque seria necessário mais um dia para a instrução desses processos. Marco César defendeu a votação imediata e remessa dos processos às câmaras criminais.

Oscarlino Moeller pediu adiamento, o que foi deferido por unanimidade, enquanto e o vice-presidente afirmou que iria redistribuir os processos de imediato para as câmaras. Ivan Sartori defendeu que o Órgão Especial pode apreciar o alcance da liminar do CNJ, ratificar a decisão do Tribunal Pleno e manter os casos de crimes de prefeitos no colegiado. Disse que o CNJ está interferindo demais nos tribunais, provocando “uma verdadeira insegurança jurídica”.

Câmara especial

Há ainda um grupo de desembargadores que defende, inclusive, a criação de uma câmara especial para julgar crimes de prefeitos. Essa proposta é vista com simpatia por membros do Ministério Público que atuam em segunda instância. Sidnei Beneti, presidente da Seção de Direito Público, é um dos defensores da idéia. Na reunião do Órgão Especial chegou a sugerir a criação de uma câmara especial, mas não entrou em detalhes.

A proposta foi entregue ao presidente da Seção Criminal, desembargador Ribeiro dos Santos. Ela foi preparada pelos procuradores e promotores do Setor de Crimes de Prefeitos, braço da Procuradoria-Geral de Justiça. “Seria uma boa saída para resolver o impasse, além de que formaria uma jurisprudência no tribunal, julgaria os processos com mais celeridade e evitarias a suscitação de tantas divergências”, defendeu o procurador de Justiça Roque Lombardi, chefe do setor no Ministério Público. A proposta aponta no sentido de uma câmara mista formada por desembargadores e juízes.

A prescrição

A prescrição é uma figura jurídica que impõe limites no poder do Estado de punir. Ela é irrenunciável e uma vez esgotada a sua jurisdição o juiz não pode mais reconhecê-la. Uma vez ocorrida a prescrição, não cabe exame de mérito, impedindo, portanto, a absolvição ou condenação do réu, tanto em primeira quanto em segunda instância.

Na prescrição é declarada a extinção da punibilidade e o juiz deverá ordenar o encerramento do processo e se houver sentença condenatória, ela deixa de existir. Existem crimes graves que prescrevem em pouco tempo, como o abuso de autoridade que o prazo é de dois anos. “Esse é um limite muito curto para se concluir um processo criminal contra agentes públicos que abusam de seu poder”, afirma o procurador de Justiça Roque Lombardi, chefe da assessoria de Crimes de Prefeitos, do MP paulista.

Para garantir punição aos prefeitos que são pegos cometendo atos ilícitos é preciso uma corrida contra o tempo. O trabalho começa com a investigação da denúncia pelo Ministério Público Estadual e termina com o julgamento no Tribunal de Justiça. O maior desafio é evitar que os processos prescrevam por conta da morosidade do Judiciário brasileiro. Se o mandato do prefeito terminar antes da conclusão do processo, este volta para uma das varas da comarca onde aconteceu o delito.

As normas para conduta dos prefeitos estão estabelecidas no Decreto-lei 201/67. De acordo com a legislação, todos os crimes cometidos durante o exercício do cargo serão julgados pelo Tribunal de Justiça. No caso de serem considerados culpados, os réus estarão sujeitos à perda do mandato, a ficar inelegível por cinco anos ou ser obrigado a devolver aos cofres públicos todo o valor do desvio, acrescido de juros e correção monetária.

As penas para os infratores variam de dois a 12 anos de reclusão (para os casos de apropriação ou desvio de recursos) e de três meses a três anos de detenção para os demais crimes.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!