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Entrevista: Luiz Flávio Gomes, advogado criminalista

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6 de maio de 2007, 0h00

Luiz Flávio Gomes - por SpaccaSpacca" data-GUID="luiz_flavio_gomes.jpeg">O rigor das leis atende aos anseios da população, mas, de maneira alguma, ajuda a reduzir a violência. “O criminoso não olha o Código Penal antes do crime. Ele não considera a relação custo e benefício”, defende o advogado e professor de Direito Penal Luiz Flávio Gomes.

O advogado relata um ciclo vicioso e maléfico que permeia o Brasil. Com o aumento da violência, a população clama por leis mais rigorosas. Os parlamentares, ávidos para agradar os eleitores e angariar votos, correm para atender aos pedidos e aprovam projetos que, muitas vezes, contrariam a própria Constituição Federal. O resultado, diz Gomes, são leis penais cada vez piores e o Judiciário cada vez mais entupido. Afinal, a ele toca a função de selecionar o que é constitucional e o que não é.

“O Supremo Tribunal Federal veio para corrigir os erros do legislador”, afirma Gomes. A lei dos crimes hediondos, por exemplo, foi aprovada logo depois do seqüestro do empresário Roberto Medina, em 1990. A regra proibiu a progressão de regime para os condenados por estes crimes. O Supremo Tribunal Federal foi convocado a interferir na questão e declarou inconstitucional o artigo que proibia a progressão. Este ano, o legislativo teve de reescrever a norma.

“A atitude parlamentar contribui para a morosidade da Justiça. Perde-se tempo e dinheiro.” Com a lentidão do Judiciário, perde-se também a confiança na Justiça. Fecha-se, assim, o ciclo de impunidade no Brasil.

Para por um fim nesse ciclo, Luiz Flávio Gomes aposta em um sistema de acordos norte-americanos chamado de Plea Bargaining. De acordo com o advogado, o sistema em que réu e Justiça negociam a pena antes mesmo de iniciado o processo é responsável pela resolução de 92% dos casos criminais nos Estados Unidos. Em entrevista à Consultor Jurídico, Gomes apresentou a sua idéia, que deve ser levada ao Ministério da Justiça em junho.

Luiz Flávio Gomes se formou na Faculdade de Direito de Araçatuba, (SP), em 1978. É mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo e doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madrid. Foi promotor de Justiça em São Paulo de 1980 a 1983 e juiz, também em São Paulo, de 1983 a 1998. É diretor-presidente da rede de ensino LFG, que promove cursos telepresenciais com transmissão ao vivo e em tempo real para todo país.

Participaram da entrevista os jornalistas Aline Pinheiro e Rodrigo Haidar.

Leia a entrevista

ConJur — O Direito Penal está mudando para melhor ou para pior?

Luiz Flávio Gomes — Nas últimas três décadas, piorou muito. Enquanto nas universidades ensinamos um tipo de Direito Penal, nas ruas prevalece outro tipo, mais imediatista e emergencial. O professor ensina para os seus alunos os princípios decorrentes da Constituição. Já o legislador pensa em ganhar votos e, por isso, sai por aí criando leis que respondam aos anseios da sociedade. Se o povo diz que tem de agravar as penas e endurecer o regime de cumprimento, o legislador faz isso. Ele não tem compromisso com a Constituição. Daí a divergência total com o Direito do meio acadêmico.

ConJur — É possível unir esses dois tipos de Direito Penal?

Luiz Flávio Gomes — Sim. Eles andam juntos em Estados sócio-economicamente estáveis, onde o legislador não precisa de atitudes grotescas e demagógicas como aprovar uma lei imediatamente após cada morte que provoque clamor popular. No Canadá, país com baixíssimo índice de criminalidade, não surgem propostas demagógicas sempre que há um seqüestro, por exemplo. Se um parlamentar fizer isso, não será considerado sério e estará liquidado politicamente. Já no Brasil, é justamente o contrário. O parlamentar que age assim conquista inúmeros votos.

ConJur — Quais são as conseqüência desse imediatismo do legislador brasileiro?

Luiz Flávio Gomes — São aprovadas cada vez mais barbaridades, que acabam desaguando no Judiciário. A este fica o papel de dizer o que é e o que não é constitucional. Essa atitude parlamentar contribui para a morosidade da Justiça. Perde-se tempo e dinheiro. Por sorte, temos um Supremo Tribunal Federal equilibrado, proporcional e razoável. Um exemplo disso foi dado quando o tribunal considerou inconstitucional a proibição de progressão de regime para condenados por crimes hediondos. O Supremo fica com a função de corrigir as antinomias criadas pelo legislador.

ConJur — Pode-se dizer que, no campo penal, o STF evolui enquanto o legislador regride?

Luiz Flávio Gomes — O Supremo está proporcionando que saiamos da democracia formal para a democracia substancial. A democracia formal é a vontade da maioria — a lei está votada e ponto final. Na democracia substancial, não é assim. A maioria vota e, em seguida, perguntamos: o que foi votado está em consonância com a Constituição Federal e com o direito humanitário internacional? O voto recente do ministro Gilmar Mendes, que considerou o direito humanitário internacional mais valioso que a lei e menos que a Constituição, é um bom exemplo disso.

ConJur — Qual é o equilíbrio entre o Supremo garantista e um legislador liberal?

Luiz Flávio Gomes— O que sai do Supremo com a chancela constitucional já é o equilíbrio.

ConJur — O choque entre o Legislativo e o Judiciário, em matéria penal, é um problema cultural?

Luiz Flávio Gomes— Sim. Recente pesquisa do jornal Folha de S. Paulo apontou que 55 % da população brasileira é a favor da pena de morte. Mas esta medida é proibida no país por cláusula pétrea. O problema, então, está na educação. O povo não foi para a escola, por isso, não tem como dialogar nem pensar em uma solução racional para os problemas. Pena de morte é o que existe de mais primitivo no mundo.

ConJur — Mudar a lei adianta no combate à violência?

Luiz Flávio Gomes— Absolutamente não. O seqüestro do empresário Roberto Medina, em 1990, foi um dos responsáveis pela criação da lei dos crimes hediondos. Com a lei, os seqüestros diminuíram? Não. Estupros, latrocínios e crimes econômicos também aumentaram. A violência tem origens muito certas, já diagnosticadas por professores e sociólogos. Não é a miséria que gera o crime. A culpa é da desorganização social e do grande conglomerado de pessoas.

ConJur — O pacote antiviolência que tramita no Congresso Nacional servirá para reduzir a violência?

Luiz Flávio Gomes — Os projetos antiviolência ou pró-segurança aprovados até agora são mera correção de erros anteriores, por exemplo, o que admite a progressão de regime para condenados por crimes hediondos. Outros são inócuos, como a redução da maioridade penal, já que os menores são responsáveis por 1% da criminalidade violenta. O criminoso não olha o Código Penal antes do crime. Ele não trabalha com a relação custo e benefício.

ConJur — Nenhum projeto do pacote se salva?

Luiz Flávio Gomes — Merece ser elogiado o projeto que prevê o uso da pulseira eletrônica. Porém, não previne delinqüência.

ConJur — Como o senhor avalia a legislação penal brasileira atual?

Luiz Flávio Gomes — Há falhas. Não existe, por exemplo, definição do que é terrorismo, nenhuma previsão sobre aborto de feto anencefálico, eutanásia, ortotanásia ou morte assistida. Nada disso está disciplinado no Brasil. E o que existe é pouco aplicado. Apenas 4% dos delitos são julgados.

ConJur — E a reforma processual penal?

Luiz Flávio Gomes — Ela corrige muitos vícios e defeitos. A nova formatação do Tribunal do Júri é um exemplo. A intenção de afunilar os quesitos perguntados aos jurados acabará com uma fonte muito grande de nulidade. É muito mais válido que o Congresso dê atenção para pontos mais técnicos do que se prenda a aspectos ideológicos.

ConJur — A Polícia Federal deflagrou, nas últimas semanas, duas operações para investigar suposto esquema de venda de sentenças judiciais. Foi criticada por advogados, que alegaram cerceamento do direito de defesa. Para combater o crime, a Polícia está atropelando os direitos fundamentais?

Luiz Flávio Gomes — Primeiro, precisamos cumprimentar a Polícia Federal por todo o trabalho desempenhado no Brasil. A PF tem descoberto um mundo de falcatruas sem disparar um tiro. Isso é realmente uma evolução. Mas, ao mesmo tempo, lamentavelmente a Polícia acaba cometendo deslizes que precisam ser corrigidos. Por exemplo, não permitir que advogado tenha acesso aos autos do inquérito é um erro, corrigido sempre pelo Supremo. Todo mundo, inclusive a Polícia, tem de agir de acordo com o que está permitido. Isso é que nós chamamos de Estado de estrita legalidade, que é rigorosamente o que pode e o que não pode fazer. E a Polícia sabe muito bem disso. Sabe que não pode, por exemplo, entrar no escritório de um advogado sem a presença de um representante da OAB.

ConJur — De 0 a 10, que nota o senhor dá para o Estado de estrita legalidade hoje?

Luiz Flávio Gomes — Cinco. Boa parcela do exercício do poder é legitima, mas uma boa parte ainda está corrompida.

ConJur — Na ânsia de combater o crime, mais impunidade é gerada?

Luiz Flávio Gomes — Sim. O caso do PC Farias é um exemplo. Dois agentes da Receita Federal invadiram o escritório dele e encontraram aquele famoso computador que continha todo o esquema de corrupção. Eles esqueceram que escritório tem o mesmo amparo que domicílio, que não pode ser violado sem ordem de juiz. Os dois agentes da Receita Federal não tinham ordem judicial, mas colheram a prova considerada a mais importante dos autos. Mais tarde, essa prova foi excluída dos autos pelo Supremo e nada pôde ser provado.

ConJur — A lentidão do Judiciário contribui para a sensação de impunidade?

Luiz Flávio Gomes — Evidentemente. Mas há solução. Vou propor ao Ministério da Justiça, em junho, o Plea Bargaining, uma espécie de Justiça negociada. Nos Estados Unidos, o Plea Bargaining resolve 92% dos crimes.

ConJur — O que é o Plea Bargaining?

Luiz Flávio Gomes — É um acordo feito com o réu, em que se decide a condenação. Nos Estados Unidos, o acordo é feito ainda na fase policial. Dos crimes, 92% são resolvidos pelo Plea Bargaining. Apenas 8% vão a julgamento. Mas lá quase não há atenção para a defesa. O juiz não preside a audiência. É tudo feito com o promotor. Por isso, o acordo é muito parcial. No Brasil, a idéia é que o acordo seja proposto quando o juiz receber a denúncia, com direito a defesa preliminar e manifestação do Ministério Público. O juiz preside a audiência e o réu decide se aceita ou não. Isso será muito válido em casos de corrupção e quando há muitos réus na ação.

ConJur — É viável no Brasil?

Luiz Flávio Gomes — Será preciso introduzir uma lei. O Brasil precisa do Plea Bargaining. Se continuar vigorando o que temos hoje, ninguém vai ser punido. Faz 13 anos que o Supremo não condena ninguém. A Justiça brasileira é morosa e interminável.

ConJur — O Plea Bargaining resolveria quais tipos de crime?

Luiz Flávio Gomes — Os econômicos e políticos, principalmente. Não pagou tributos? O réu aceita um acordo e devolve o dinheiro ao Estado. No caso do mensalão [esquema de compra de votos de parlamentares], por exemplo, todos os envolvidos, provavelmente, fechariam acordos para não serem processados pelo Supremo.

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