Anomalia jurídica

Clamo aos advogados que combatam interrogatório online

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5 de maio de 2007, 0h01

Destoa de todo conteúdo deontológico do Direito a infeliz iniciativa de alguns magistrados criminais em realizar interrogatórios de acusados que estão presos, por meio de vídeo-conferência — internet, valendo-se da frieza de um computador para transmissão de imagens e voz, tudo on-line. Remonta aos tempos bíblicos, aos primórdios, o direito do réu comparecer pessoalmente diante de seu julgador, geralmente o rei, e com ele pessoalmente falar, sem qualquer interferência, expondo tudo o que entendesse necessário expor.

O interrogatório é momento sagrado do réu; não pertence ao juiz, ao promotor, ao advogado de defesa, a ninguém; é, repita-se, momento do réu, tanto que ali poderá ele falar o que quiser, ou até calar-se. Deve ser absolutamente livre! Todo o Livro Velho da Bíblia traz esse espírito de profundo respeito ao acusado. O julgamento de Adão e Eva em que Deus fala com eles diretamente, face a face, a submissão de Noé, a expulsão de Hagar, o subjugamento de Abraão, curvando-se às ordens de Deus para martírio de seu filho Isaac, os dez mandamentos, a Sarça Ardente, Deus e Jó, etc.

Já no livro da “Boa Nova”, o próprio Cristo compareceu, pessoalmente, diante de seus acusadores e julgadores — Anás, Caifás, Pilatos, Herodes. Foi perguntado, falou, respondeu. Quid veris ?

Diz-se até que, neste momento sagrado pertencente unicamente ao réu, ocorre apriorístico julgamento recíproco, em que o juiz avalia o réu sim, mas que o réu também avalia o juiz, especialmente no que pertine a ele “servir” ou não para julgá-lo, podendo daí originar-se a chamada exceção de suspeição, em que o réu dirá que o juiz não serve para julgar o seu caso porque é suspeito, e, é claro, as razões pelas quais chegou a tal conclusão.

Nesse momento do interrogatório – o mais sagrado do processo, o juiz não deve avaliar somente o aspecto objetivo do ato. Porém, avaliará – e deve necessariamente avaliar – todo o componencial subjetivo, levando em conta, sempre, sua impressão pessoal sobre o interrogado, para o que até os odores devem ser sopesados; também o andar do réu, o asseio, a maneira de se sentar (quando lhe é permitido sentar), seu timbre de voz, sua movimentação corporal e eventual gesticulação enquanto fala, a observação se tem sinais de tortura, se está corado ou pálido demonstrando assim boa ou má alimentação, a observação de que está ou não coagido, cuidando para que ele fique absolutamente livre no seu momento sagrado, sem interferências, sem quaisquer terceiras pessoas que possam intimidá-lo, sem aparato policial, e livre, sem algemas.

O interrogatório deve ser momento de liberdade, em que o réu deverá estar realmente livre para dizer o que quiser, o que evidentemente não se coaduna com um interrogatório frio na frente de uma câmera de vídeo, no próprio ambiente prisional como está acontecendo, jogando por terra o superlativo princípio da presunção de inocência.

Além disso, há que se observar o caráter normativo do Direito Público in genere, não havendo em nosso Direito Processual Penal anterior previsão de interrogatório à distância, o que desvirtua o due process of law, ou, na melhor expressão vernacular, o devido processo legal.

Tamanha a importância desse contato pessoal entre juiz e réu no interrogatório, que existe toda uma jurisprudência no sentido de que baldados os ditames do artigo 149 do CPP (exame de insanidade mental), o que verdadeiramente valerá para impor a instauração ou não do incidente será a impressão pessoal do juiz. Tamanha a importância, que o juiz poderá, segundo suas impressões e seu entendimento, colocar prontamente o réu em liberdade concedendo-lhe a liberdade provisória.

Pensa-se, assim, que as forças representativas da classe jurídica deste país, em especial a Ordem dos Advogados do Brasil, devem manifestar seu mais veemente repúdio a esta anomalia, enviando todos os esforços para que ela seja incontinente coibida, até porque fere a própria Constituição Federal no que diz respeito ao livre exercício da mais ampla defesa.

Há projeto, circulante no Congresso Nacional, visante a transformar em lei o interrogatório à distância. Proponho à classe dos advogados que terce lanças para derrubar tal anomalia jurídica. Eu, daqui, continuo colhendo as adesões através do e-mail [email protected].

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