Desarmamento na medida

Porte ilegal de arma não é mais crime inafiançável, decide STF

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2 de maio de 2007, 20h13

O Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou nesta quarta-feira (2/5) a inconstitucionalidade dos artigos do Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/03) que tornavam crime inafiançável o porte ilegal e disparo de arma de fogo, e o que negava a liberdade provisória para os acusados de posse, porte e comércio ilegal de arma.

A maioria dos ministros acompanhou o relator, ministro Ricardo Lewandowski, que acolheu parecer do Ministério Público Federal, segundo o qual o porte ilegal e o disparo de arma de fogo “constituem crimes de mera conduta que, embora reduzam o nível de segurança coletiva, e não se equiparam aos crimes que acarretam lesão ou ameaça de lesão à vida ou à propriedade”.

O relator considerou inconstitucional os artigos 14 e 15, que proíbem o estabelecimento de fiança para os crimes de “porte ilegal de arma de fogo de uso permitido” e de “disparo de arma de fogo”. Também foram considerados inconstitucionais os dispositivos que negava liberdade provisória aos acusados de posse ou porte ilegal de arma de uso restrito (artigo 16), comércio ilegal de arma (artigo 17) e tráfico internacional de arma (artigo 18). A maioria dos ministros considerou que o dispositivo viola os princípios da presunção de inocência e do devido processo legal, ampla defesa e contraditório.

“Penso que o texto constitucional não autoriza a prisão ex lege, em face do princípio da presunção de inocência (artigo 5º, LVII, da CF), e da obrigatoriedade de fundamentação dos mandados de prisão pela autoridade judiciária competente (artigo 5º, LXI, da CF)”, afirmou o relator. E concluiu: “A prisão obrigatória, de resto, fere os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório (artigo 5º, LV), que abrigam um conjunto de direitos e faculdades, os quais podem ser exercidos em todas as instâncias jurisdicionais, até a sua exausta”.

O artigo 35 da lei, que previu o plebiscito sobre a proibição ou não da comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional foi considerado também inconstitucional, mas o julgamento foi prejudicado já que o referendo já foi feito em outubro de 2005.

Para o relator “o Congresso Nacional não teria competência para deflagrar a realização de referendo, mas apenas para autorizá-lo. (…) Tenho que tais ponderações encontram-se prejudicadas, assim como o argumento de que teria havido violação ao art. 170, caput, e parágrafo único, da Carta Magna, porquanto o referendo em causa, como é sabido, já se realizou, tendo o povo votado no sentido de permitir o comércio de armas, o qual, no entanto, convém sublinhar, como toda e qualquer atividade econômica, sujeita-se ao poder regulamentar do Estado.”

Lewnadowski considerou constitucionais os dispositivos do Estatuto que estabelecem a idade mínima de 25 anos para a concessão do porte de arma (artigo 28), e a exigência de cadastramento do cano da arma, das impressões de raiamento e de microestriamento do projétil disparado, bem como das munições, que deverão trazer marcas identificadoras, além de ser acondicionadas em embalagens dotadas de sistema de código de barras (artigos 2 e 23)

A ADI 3.112 foi proposta em 2004 pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), mas existem outras dez ações contra o estatuto movidas por partidos políticos e entidades civis, que defendem a liberdade de utilização de armas de fogo.

O advogado-geral da União, ministro José Antônio Dias Toffoli, fez sustentação oral no julgamento da ADI. “O Estatuto do Desarmamento é extremamente necessário na medida em que combate a utilização de armas sem registro ou porte e endurece as penas contra os infratores”, avaliou Toffoli.

ADI 3.112

Leia o voto do relator:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.112-1 DISTRITO FEDERAL

V O T O


O Senhor Ministro RICARDO LEWANDOWSKI (Relator): Reconhecendo, desde logo, por cumpridos os requisitos legais, a legitimidade ativa ad causam e o interesse de agir dos autores, permito-me, antes de examinar os argumentos constantes das iniciais destas ações diretas de inconstitucionalidade, tecer algumas considerações introdutórias, de ordem geral, sobre a matéria em discussão.

Principio afirmando que a análise da higidez constitucional da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003, denominada Estatuto do Desarmamento, deve ter em conta o disposto no art. 5º, caput, da Constituição Federal, que garante aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à segurança, ao lado do direito à vida e à propriedade, quiçá como uma de suas mais importantes pré-condições.

Como desdobramento desse preceito, num outro plano, o art. 144 da Carta Magna, estabelece que a segurança pública constitui dever do Estado e, ao mesmo tempo, direito e responsabilidade de todos, sendo exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Trata-se, pois, de um direito de primeira grandeza, cuja concretização exige constante e eficaz mobilização de recursos humanos e materiais por parte do Estado.

O dever estatal concernente à segurança pública não é exercido de forma aleatória, mas através de instituições permanentes e, idealmente, segundo uma política criminal, com objetivos de curto, médio e longo prazo, suficientemente flexível para responder às circunstâncias cambiantes de cada momento histórico.

Nesse sentido, observo que a edição do Estatuto do Desarmamento, que resultou da conjugação da vontade política do Executivo com a do Legislativo, representou uma resposta do Estado e da sociedade civil à situação de extrema gravidade pela qual passava – e ainda passa – o País, no tocante ao assustador aumento da violência e da criminalidade, notadamente em relação ao dramático incremento do número de mortes por armas de fogo entre os jovens.[1]

A preocupação com tema tão importante encontra repercussão também no âmbito da comunidade internacional, cumprindo destacar que a Organização das Nações Unidas, após conferência realizada em Nova Iorque, entre 9 e 20 de julho de 2001, lançou o “Programa de Ação para Prevenir, Combater e Erradicar o Comércio Ilícito de Armas de Pequeno Porte e Armamentos Leves em todos os seus Aspectos” (UN Document A/CONF, 192/15).[2]

O Brasil vem colaborando com os esforços da ONU nesse campo, lembrando-se que o Congresso Nacional, aprovou, em data recente, por meio do Decreto Legislativo 36, de 2006, o texto do “Protocolo contra a fabricação e o tráfico ilícito de armas de fogo, suas peças e componentes e munições, complementando a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, adotado pela Assembléia-Geral, em 31 de maio de 2001, e assinado pelo Brasil em 11 de julho de 2001. [3]

Como se nota, as ações diretas de inconstitucionalidade ora ajuizadas trazem ao escrutínio desta Suprema Corte tema da maior transcendência e atualidade, seja porque envolve o direito dos cidadãos à segurança pública e o correspondente dever estatal de promovê-la eficazmente, seja porque diz respeito às obrigações internacionais do País na esfera do combate ao crime organizado e ao comércio ilegal de armas.

Dito isso, passo ao exame dos argumentos relativos à inconstitucionalidade formal da Lei 10.826/2003, em virtude da alegada “usurpação de atribuições de competência privativa do Presidente da República”, por violação ao art. 61, § 1º, II, a e e, da Constituição Federal.

Antes, porém, cumpre recordar que o diploma legal em questão resultou de complexo processo legislativo. Com efeito, segundo informa o Senador César Borges, em relatório publicado no Diário do Senado Federal, de 24 de julho de 2003, por meio do Ato Conjunto nº 1, de 2 de julho do mesmo ano, foi criada Comissão Especial Mista, com o objetivo de consolidar os projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional que tratavam do registro, porte e tráfico de armas de fogo e munições, inserindo-se nesse esforço o PL 2.787-A, de 1997, da Câmara dos Deputados, ao qual vieram apensadas setenta proposições, inclusive o PL 1.073, de 1999, encaminhado pelo Executivo ao Legislativo, e os PLs 138, 298, 386 e 614, de 1999, 24, de 2002, 100 e 202, de 2003, originados na Câmara Alta.


Convém lembrar, também, previamente ao exame do alegado vício formal, que esta Suprema Corte, no julgamento da ADI 1.050-MC/RO, Relator o Ministro Celso de Mello, considerou válidas as emendas parlamentares, apostas a projeto de lei de iniciativa exclusiva do Executivo, que: “(a) não importem em aumento de despesa prevista no projeto de lei, (b) guardem afinidade lógica (relação de pertinência) com a proposição original e (c) tratando-se de projetos orçamentários (CF, art. 165, I, II e III), observem as restrições fixadas no art. 166, §§ 3º e 4º, da Carta Política”.

Registro, ademais, por oportuno, que a Lei 10.826/2003 foi aprovada depois da entrada em vigor da Emenda Constitucional 32/2001, que suprimiu da iniciativa exclusiva do Presidente da República a estruturação e o estabelecimento de atribuições dos Ministérios e órgãos da administração pública.[4]

Tendo, pois, em consideração tais parâmetros, verifico que os dispositivos do texto legal impugnado não violam o art. 61, § 1º, II, a e e, da Carta Magna, porquanto não versam sobre criação de órgãos, cargos, funções ou empregos públicos, nem sobre a sua extinção, como também não desbordam do poder de apresentar ou emendar projetos de lei, que o texto constitucional atribui aos congressistas, o qual foi qualificado, na mencionada ADI 1.050-MC/RO, de “prerrogativa de ordem político-jurídica inerente ao exercício da atividade parlamentar”.

Com efeito, a maior parte deles constitui mera reprodução de normas constantes da Lei 9.437/1997, de iniciativa do Executivo, revogada pela Lei 10.826/2003, ou são consentâneos com o que nela se dispunha.[5] Quando tal não ocorre, consubstanciam preceitos que guardam afinidade lógica, isto é, mantêm relação de pertinência, com a Lei 9.437/1997 ou com o PL 1.073/1999, ambos encaminhados ao Congresso Nacional pela Presidência da República, no mais das vezes simplesmente explicitando prazos, procedimentos administrativos ou exigências burocráticas.[6] Já outros foram introduzidos no texto por diplomas legais originados fora do âmbito congressual, a saber, as Leis 10.867/2004, 10.884/2004, 11.118/2005 e 11.191/2005.[7] Os que não se encaixam nessas hipóteses, são prescrições normativas que, por seu próprio conteúdo, em nada interferem com a iniciativa do Presidente da República, prevista no art. 61, § 1º, II, a e e, da Constituição Federal.[8]

Ressalto que a iniciativa em matéria criminal, processual e tributária, como se sabe, é de natureza concorrente, salvo, no último caso, quando se tratar de matéria orçamentária, cuja iniciativa é privativa do Executivo.[9] Assim, a criação, modificação ou extensão de tipos penais e das respectivas sanções, bem como o estabelecimento de taxas ou a instituição de isenções pela Lei 10.826/2003, ainda que resultantes de emendas ou projetos de lei parlamentares, não padecem do vício de inconstitucionalidade formal.

Dito isso, procedo, agora, ao exame das alegações de inconstitucionalidade material.

Sustenta-se, no que concerne aos arts. 5º, §§ 1º e 3º, 10 e 29, que houve invasão da competência residual dos Estados para legislar sobre segurança pública e também ofensa ao princípio federativo, “principalmente em relação à emissão de autorização de porte de arma de fogo”.

Contrapondo-se ao argumento, a douta Procuradoria Geral da República defendeu a aplicação à espécie do princípio da predominância do interesse, ponderando que a “União não está invadindo o âmbito de normatividade de índole local, pois a matéria está além do interesse circunscrito de apenas uma unidade federada” (fl. 194).


Considero correto o entendimento do Ministério Público, que se harmoniza com a lição de José Afonso da Silva, para quem a Carta Magna vigente abandonou o conceito de “interesse local”, tradicionalmente abrigado nas constituições brasileiras, de difícil caracterização, substituindo-o pelo princípio da “predominância do interesse”, segundo o qual, na repartição de competências, “à União caberão aquelas matérias e questões de predominante interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e assuntos de predominante interesse regional, e aos Municípios conhecerem os assuntos de interesse local.”[10]

De fato, a competência atribuída aos Estados em matéria de segurança pública não pode sobrepor-se ao interesse mais amplo da União no tocante à formulação de uma política criminal de âmbito nacional, cujo pilar central constitui exatamente o estabelecimento de regras uniformes, em todo o País, para a fabricação, comercialização, circulação e utilização de armas de fogo, competência que, ademais, lhe é assegurada pelo art. 21, XXI, da Constituição Federal.[11]

Parece-me evidente a preponderância do interesse da União nessa matéria, quando confrontado o eventual interesse do Estado-membro em regulamentar e expedir autorização para o porte de arma de fogo, pois as normas em questão afetam a segurança das pessoas como um todo, independentemente do ente federado em que se encontrem.

Ademais, diante do aumento vertiginoso da criminalidade e da mudança qualitativa operada nas transgressões penais, com destaque para o surgimento do fenômeno do crime organizado e dos ilícitos transnacionais, a garantia da segurança pública passou a constituir uma das atribuições prioritárias do Estado brasileiro, cujo enfoque há de ser necessariamente nacional.

Sustenta-se, mais, que haveria ofensa ao direito de propriedade quanto à obrigação de renovar-se periodicamente o registro das armas de fogo, nos termos do art. 5º, §§ 2º e 3º, bem como no tocante ao pagamento da taxa correspondente, instituída no art. 11, II, e explicitada no item II da Tabela de Taxas. Acrescenta-se, ao argumento que “o Estado acabaria por determinar quem pode ou não exercer a legítima defesa, que, pelo ‘caput’ do art. 5º da Constituição Federal, é de todos os cidadãos”.

Faço referência, no ponto, à jurisprudência do Tribunal Constitucional da Alemanha (Bundesverfassungsgericht), para o qual o direito de propriedade corresponde a uma “liberdade cunhada normativamente” (normgeprägte Freiheit), possuindo os bens privados uma face jurídico-objetiva, consubstanciada na garantia de sua instituição (Institutsgarantie), e uma dimensão jurídico-subjetiva, caracterizada por uma garantia de subsistência da propriedade (Bestandsgarantie). [12]

Mas é justamente porque se reconhece ao Poder Público – tal como se dá em nosso ordenamento jurídico – a possibilidade de intervir na esfera dominial privada, que aquela Corte entende que a garantia de subsistência da propriedade (Bestandsgarantie), em determinadas circunstâncias, pode transformar-se em garantia do valor da propriedade (Eigentumswertgarantie).

É dizer, todas as vezes em que a regência normativa do direito de propriedade permitir a invasão da esfera dominial privada pelo Estado, em face do interesse público, esse direito resumir-se-á à percepção de justa e adequada indenização pelo proprietário. Como esse direito encontra-se expressamente previsto no art. 31 do Estatuto do Desarmamento, não há que se cogitar de violação ao art. 5º, XXII, da Constituição Federal.

O mesmo raciocínio aplica-se, mutatis mutandis, às alegações de ofensa ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido.

Alega-se, ainda, que são inconstitucionais, no aspecto substantivo, os parágrafos únicos dos arts. 14 e 15, que proíbem o estabelecimento de fiança para os crimes de “porte ilegal de arma de fogo de uso permitido” e de “disparo de arma de fogo”.


Quanto a esses delitos, acolho o entendimento esposado pelo Ministério Público, segundo o qual se trata de uma vedação dezarrazoada, “porquanto não podem estes ser equiparados a terrorismo, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes ou crimes hediondos (art. 5º, XLIII, da Constituição Federal).”

Ademais, como bem assentado na manifestação da PGR, cuida-se, em verdade, de crimes de mera conduta que, “embora reduzam o nível de segurança coletiva, não se equiparam aos crimes que acarretam lesão ou ameaça de lesão à vida ou à propriedade.

Aponta-se igualmente para a ocorrência de lesão aos princípios constitucionais da presunção de inocência e do devido processo legal no concernente ao art. 21, segundo o qual os delitos capitulados nos arts. 16, 17 e 18 são insuscetíveis de liberdade provisória.

Entendo que, também nesse aspecto, os argumentos constantes das iniciais merecem acolhida, em que pese o substancioso parecer em contrário da Procuradoria-Geral da República, para a qual a “proibição de concessão de liberdade provisória não representa afronta ao princípio da não-culpabilidade”, ao argumento de que esta Corte já se teria pronunciado sobre o tema no RHC 75.917/RS.

Com efeito, embora a interdição à liberdade provisória tenha sido estabelecida para crimes de suma gravidade, com elevado potencial de risco para a sociedade, quais sejam, a “posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito”, o “comércio ilegal de arma de fogo” e o “tráfico internacional de arma de fogo”, liberando-se a franquia para os demais delitos, penso que o texto constitucional não autoriza a prisão ex lege, em face do princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CF), e da obrigatoriedade de fundamentação dos mandados de prisão pela autoridade judiciária competente (art. 5º, LXI, da CF).

A prisão obrigatória, de resto, fere os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, LV), que abrigam um conjunto de direitos e faculdades, os quais podem ser exercidos em todas as instâncias jurisdicionais, até a sua exaustão.

Esses argumentos, no entanto, não afastam a possibilidade de o juiz, presentes os motivos que recomendem a prisão ante tempus, decretar justificadamente a custódia cautelar. O que não se admite, repita-se é uma prisão ex lege, automática, sem motivação.

Em outras palavras, o magistrado pode, fundamentadamente, decretar a prisão cautelar, antes do trânsito em julgado da condenação, se presentes os pressupostos autorizadores, que são basicamente aqueles da prisão preventiva, previstos no art. 312 do Código de Processo Penal. É dizer, cumpre que o juiz demonstre, como em toda cautelar, a presença do fumus boni iuris, e do periculum in mora ou, no caso, do periculum libertatis.

Aponta-se, também, a inconstitucionalidade material, por afronta ao princípio da razoabilidade, dos arts. 2º, X, e 23, §§ 1º, 2º e 3º, os quais dispõem sobre o cadastramento do cano da arma, das impressões de raiamento e de microestriamento do projétil disparado, bem como das munições, que deverão trazer marcas identificadoras, além de ser acondicionadas em embalagens dotadas de sistema de código de barras.

Tais exigências não me parecem irrazoáveis, visto que se resumem à identificação das armas e munições, mediante técnicas amplamente difundidas, de modo a permitir o rastreamento, se necessário, dos respectivos fabricantes e adquirentes.

De igual modo, alega-se que o art. 28 vulnera o princípio da razoabilidade, porquanto fixou a idade mínima para a aquisição de arma de fogo em 25 anos de idade.

Também não reconheço, aqui, qualquer ofensa ao referido princípio, pois, além de ser lícito à lei ordinária prever a idade mínima para a prática de determinados atos, [13] a norma impugnada, a meu ver, tem por escopo evitar que sejam adquiridas armas de fogo por pessoas menos amadurecidas psicologicamente ou que se mostrem, do ponto de vista estatístico, mais vulneráveis ao seu potencial ofensivo.


Reporto-me, nesse aspecto, aos índices de mortalidade entre a população jovem, mencionados no início de meu voto, os quais demonstram que as mortes causadas por armas de fogo cresceram exponencialmente no grupo etário situado entre 20 e 24 anos, sobretudo quanto ao sexo masculino. [14]

No tocante ao art. 35, sustentou-se não apenas a inconstitucionalidade material do dispositivo como também a formal. Esta por ofensa ao art. 49, XV, da Constituição, porque o Congresso Nacional não teria competência para deflagrar a realização de referendo, mas apenas para autorizá-lo; aquela por violar o art. 5º, caput, do mesmo diploma, nos tópicos em que garante o direito individual à segurança e à propriedade.

Tenho que tais ponderações encontram-se prejudicadas, assim como o argumento de que teria havido violação ao art. 170, caput, e parágrafo único, da Carta Magna, porquanto o referendo em causa, como é sabido, já se realizou, tendo o povo votado no sentido de permitir o comércio de armas, o qual, no entanto, convém sublinhar, como toda e qualquer atividade econômica, sujeita-se ao poder regulamentar do Estado.

Concluo, então, o meu voto, Senhora Presidente.

A partir das considerações iniciais que expendi, e com fundamento nas razões de direito que formulei, julgo procedentes, em parte, as presentes ações diretas, apenas para declarar a inconstitucionalidade dos parágrafos únicos dos arts. 14 e 15, os quais vedaram o estabelecimento de fiança para os delitos de “porte ilegal de arma de fogo de uso permitido” e de “disparo de arma de fogo”, e do art. 21, que proibiu a liberdade provisória no caso dos crimes de “posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito”, “comércio ilegal de arma de fogo” e “tráfico internacional de arma de fogo”, todos da Lei 10.826/2003.


[1] SZWARCWALD, Leal. “Sobrevivência ameaçada dos jovens brasileiros: a Dimensão da Mortalidade por Armas de Fogo”. In: Revista da Comissão Nacional de População e Desenvolvimento, 1998, p. 368. Segundo esse estudo, em 1980, ocorriam 30 mortes para cada 100.000 jovens brasileiros do sexo masculino, entre 20 e 24 anos, por armas de fogo, tendo esse número aumentado para 73,4, em 1995. Registrou-se, portanto, no período, um incremento de mais de 100% (cem por cento) na taxa de mortalidade. O mesmo fenômeno deu-se entre as jovens brasileiras de 20 a 24 anos. Nesse grupo, registraram-se, em 1980, 2,4 mortes para cada 100.000 indivíduos, com um aumento para 4,8, em 1995. Como se vê, também aqui o aumento foi da ordem de 100% (cem por cento). Com relação às demais causas de morte, ou seja, aquelas não relacionadas às armas de fogo, o crescimento foi inferior a 10% (dez por cento) em ambos os grupos.

[2] No original Programme of Action to Prevent, Combat and Eradicate the Illicit Trade in Small Arms and Light Weapons in All Its Aspects; http://disarmament2.un.org/cab/poa.html. Em 27/09/2006.

[3] DOU de 23.02.2006.

[4] Ver, sobre o tema, a ADI 2.734-MC/ES, Rel. Min. Moreira Alves.

[5] Art. 1º, art. 2º, caput, incs. I, II, IV, V, VI, VII, e parágrafo único, art. 3º, caput e parágrafo único, art. 5º, caput, § 1º, art. 10, caput e § 2º, art. 11, § 1º, art. 23, caput, art. 26, caput e parágrafo único, e art. 27, caput e parágrafo único.

[6] Art. 2º, incs. III, VIII, IX, X e XI, art. 4º, caput, incs. I, II, III, e §§ 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, e 7º, art. 5º, §§ 2º e 3º, 6º, caput, incs. I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, §§ 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, art. 7º, caput e §§ 1º, 2º e 3º, art. 8º, art. 9º, art. 10, § 1º, art. 22, art. 23, §§ 1º, 2º e 3º, art. 24, art. 25, caput e parágrafo único, art. 29, caput e parágrafo único, art. 30, art. 32, caput e parágrafo único, art. 33, caput e incs. I e II, art. 34, caput e parágrafo único, e art. 35, caput e §§ 1º e 2º.

[7] O art. 6º, inc. X, e §§ 1º-A e 6º.

[8] Art. 11, caput e incisos I, II, III, IV, V, VI, §§ 1º e 2º, art. 12, art. 13, caput e parágrafo único, art. 14, caput e parágrafo único, art. 15, caput e parágrafo único, art. 16, caput e parágrafo único, art. 17, caput e parágrafo único, art. 18, art. 19, art. 20, art. 21, art. 28, art. 31, art. 36, art. 37 e a Tabela de Taxas.

[9] Nesse sentido, ADI 724-MC/RS, Rel. Min. Celso de Mello; ADI 2.304/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; ADI 2.392/ES, Rel. Min. Moreira Alves; ADI 2.599-MC/MT, Rel. Min. Moreira Alves; e ADI 2.659/SC, Rel. Min. Nelson Jobim.

[10] Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 9ª ed. 1993, p. 418.

[11] Inclui-se aí a competência de legislar sobre armas de fogo e munições, segundo o AR em AI 189.433/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio.

[12] SCHWABE, Jürgen. Cinqüenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Berlin: Kontad-Adenauer Stiftung, 2005, pp. 01-03.

[13] Tal entendimento decorre, a contrario sensu, dos RE-AgR 307.112/DF, Rel. Min. Cezar Peluso e o AI-AgR 523.254/DF, Rel. Min. Carlos Velloso.

[14] Veja-se nota de rodapé nº 1.

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