Sem modulação

Supremo confirma retroatividade para IPI com alíquota zero

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25 de junho de 2007, 19h58

O Fisco consolidou nesta segunda-feira (25/6) sua vitória contra os contribuintes de IPI que perderam a possibilidade de usar créditos do imposto na compra de insumos industriais não-tributados ou tributados com alíquota zero. O plenário do Supremo Tribunal Federal rejeitou por maioria a questão de ordem proposta pelo ministro Ricardo Lewandowski para modular os efeitos da decisão que derrubou o crédito em fevereiro deste ano.

Com isso, as empresas que estavam aproveitando o crédito beneficiadas por decisões judiciais, deverão restituir o imposto que não foi pago e, ainda, poderão sofrer ações rescisórias da Fazenda Nacional. A decisão garantirá a recuperação de alguns bilhões de reais ao governo, mas não há estimativa de quanto. De acordo com dados da Receita Federal, o governo passará a arrecadar cerca de R$ 20 bilhões anualmente, que eram deixados com o crédito.

Na questão de ordem, levantada pelo ministro Lewandowski, o plenário foi instado a decidir se a devolução dos créditos tomados pelas empresas deveria ser feita ex nunc (ou seja, a partir da decisão do Supremo, em fevereiro deste ano, que considerou constitucional o impedimento do crédito), ou ex tunc (ou seja, nos últimos cinco anos em que a lei que suspendeu o crédito estava em vigor). Contra o voto de Lewandowski, prevaleceu a tese de que a decisão tem efeito ex tunc.

As empresas esperavam uma resposta positiva da Corte para a modulação no tempo dos efeitos aos quais estariam sujeitas apenas a partir de fevereiro deste ano, quando o Supremo reconheceu a constitucionalidade do impedimento ao crédito. A decisão foi tomada em recurso extraordinário, de forma que só tem efeitos para o caso concreto, mas abrirá precedentes para milhares de outros casos que tramitam na Justiça de todo país.

A impossibilidade de aproveitar créditos de IPI na compra de insumos não tributados ou tributados com alíquota zero foi declarada pelo Supremo em fevereiro deste ano, quando a Corte encerrou o julgamento do recurso extraordinário da União contra acórdão que concedeu o crédito uma madeireira do Paraná. O recurso foi interposto em 2002. A decisão atinge vários setores, principalmente o de produtos não essenciais como os fabricantes de rótulos de bebidas alcoólicas, por exemplo.

No julgamento da questão de ordem, retomado com o voto-vista do ministro Marco Aurélio, a Corte entendeu que, no caso, não havia motivos relevantes para modular efeitos. O ministro Lewandowski levantou a questão de ordem preocupado com o princípio da segurança jurídica, uma vez que em 2002 o Supremo entendeu, por nove votos a um, que as empresas tinham direito de aproveitar o crédito.

De acordo com Lewandowski reconhecida a possibilidade de creditamento do IPI naquela ocasião, o STF tomou outras 60 decisões, sem falar de outras decisões colegiadas no Superior Tribunal de Justiça e nos Tribunais Regionais Federais. As decisões do Supremo, contudo, não transitaram em julgado devido aos seguidos embargos de declaração propostos pela Fazenda Nacional sob alegação de omissão, obscuridade e contrariedade.

Nesta segunda-feira, nenhum ministro votou a favor da modulação de efeitos. Para o ministro Eros Grau não havia neste caso como cogitar declaração de efeitos. Ele afirmou que não havia qualquer ameaça à segurança jurídica porque não houve coisa julgada e o contribuinte não poderia ter computado o benefício. “Capitalismo sem risco não existe. Não há interesse social para aquinhoar empresas que fizeram por sua conta e risco o uso de créditos inexistentes”, disse.

Os ministros também consideraram que a modulação não seria possível no caso por não se tratar de declaração de inconstitucionalidade. “O STF não declarou a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. Afirmou a constitucionalidade da vedação do creditamento do IPI”, ilustrou o ministro Joaquim Barbosa.

Escada da evolução

O julgamento sobre a modulação dos efeitos foi ressaltado pela presidente da Corte, ministra Ellen Gracie. A discussão trouxe importantes evoluções. Uma delas se deu logo no início do julgamento quando a Corte admitiu — vencido o ministro Joaquim Barbosa — sustentação oral das partes.

A sustentação oral nestes casos não está prevista expressamente no regimento interno do Supremo. Mas, devido à relevância da matéria, foi admitida. Falou pelos contribuintes o professor Luís Roberto Barroso e pela Fazenda Nacional a procuradora Luciana Moreira Gomes.

Outro avanço, segundo explica o ministro Ricardo Lewandowski, embora a questão de ordem tenha sido rejeitada, o Supremo reconheceu a possibilidade de modulação de efeitos em processos subjetivos — quando caracterizado o excepcional interesse público e razões de segurança jurídica — o que abre um importante precedente na Corte.

Leia os votos dos ministros Eros Grau e Ricardo Lewandowski:

QUEST. ORD. EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO 353.657- 5 PARANÁ


RELATOR : MIN. MARCO AURÉLIO

RECORRENTE(S) : UNIÃO

ADVOGADO(A/S) : PFN – EULER BARROS FERREIRA LOPES

RECORRIDO(A/S) : MADEIRA SANTO ANTÔNIO LTDA ADVOGADO(A/S) : WALTER TOFFOLI E OUTRO(A/S)

ADVOGADO(A/S) : FERNANDA GUIMARÃES HERNANDEZ E OUTRO(A/S)

V O T O

O SENHOR MINISTRO Eros Grau: O artigo 27 da Lei n.9.868/98 estabelece que, “[a]o declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”.

2. O preceito respeita a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, quando se manifestem razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social. Cuida dos efeitos de declaração de inconstitucionalidade. Inconstitucionalidade. Repito: inconstitucionalidade. O preceito visa a minimizar eventuais efeitos perniciosos decorrentes da retroatividade dos efeitos de declaração de inconstitucionalidade. Declarações de constitucionalidade não geram efeitos perniciosos ao operarem retroativamente. Para tanto devem existir. Declarações judiciais de constitucionalidade de qualquer porção do ordenamento apenas o confirmam, positivamente. Não se modulam declarações de constitucionalidade de leis ou atos normativos — toda a gente sabe disso.

3. Pois no caso não houve, em momento nenhum, declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. Esta Corte simplesmente afirmou a correção da interpretação conferida ao princípio da não-cumulatividade do IPI, adversa à postulada por alguns contribuintes do tributo. Não há nenhum sentido, portanto, em neste caso cogitar-se de modulação de efeitos de declaração de inconstitucionalidade. Pois é certo — vou repetir — é certo que aqui não há inconstitucionalidade.

4. Mas não é só. Aqui também não cabe cogitarmos de ameaça de qualquer ordem à segurança jurídica. Recebi em meu gabinete memorial da Procuradoria da Fazenda Nacional no qual se demonstra que nenhuma decisão a respeito do tema, a alíquota zero, transitou em julgado. Como se falar, destarte, em mudança de jurisprudência que jamais foi fixada? Isso consubstanciaria um autêntico non sense. Não se pode alterar o que jamais foi fixado definitivamente por este Tribunal. O argumento de que existiria “jurisprudência pacífica” mesmo quando as decisões não tenham transitado em julgado — e nenhuma delas transitou em julgado! — é quase ingênuo. O que detém força de verdade legal é a coisa julgada, cuja autoridade, quando reiterada, faz jurisprudência. Não houve, no caso, mudança de jurisprudência desta Corte, visto que ela — essa jurisprudência — não fora estabelecida.

5. Além do mais é certo que a incorporação ao balanço de efeitos tributários apenas se pode dar quando consumada a coisa julgada. Até então a pretensão judicial da pessoa jurídica deverá ser nele registrada em conta de provisão não dedutível. Se não há, em situações como a de que se trata, em que o contribuinte vai a Juízo postular benefício ou vantagem tributária, se não há coisa julgada em situações como tais o contribuinte não pode computar resultados e/ou distribuí-los. Dizendo-o na sofisticada linguagem dos economistas, o ambiente institucional que prevalecia quando o agente econômico foi a Juízo pleitear o benefício ou vantagem não a abrangia. Tanto é que foi a Juízo, o agente econômico, pretendendo afirmá-la.

6. Ora, se o resultado desse pleito judicial é adverso ao agente econômico, evidentemente será ele responsável pelos efeitos desse resultado. Não é possível atribuirmos ao Estado [rectius, à sociedade] essa responsabilidade. Fazê-lo, isso equivaleria a instituirmos o capitalismo sem as incertezas inerentes às decisões de produção e de investimento, o capitalismo sem riscos, sem o salto no escuro.

7. Este Tribunal tem sido rigoroso, algumas vezes impiedoso, com os economicamente frágeis — recordo o caso das pensões por morte. Tenho por inadmissível que não o seja, na proporção adequada, em relação aos demais agentes econômicos.

8. Por fim, nenhuma razão relacionada ao interesse social, menos ainda a “excepcional interesse social”, prospera no sentido de aquinhoarem-se empresas que vieram a Juízo afirmando interpretação que esta Corte entendeu equivocada. Fizeram-no, essas empresas, por sua conta e risco. É seguramente inusitado: o empresário pretende beneficiar-se por créditos aos quais não faz jus; o Judiciário afirma que efetivamente o empresário não é titular de direito a esses mesmos créditos, mas o autoriza a fazer uso deles até certa data… Um “negócio da China” para os contribuintes, ao qual corresponde inimaginável afronta ao interesse social. Um último ponto. Em memorial muito bem elaborado afirma-se que “norma jurídica é norma interpretada”. Na verdade não é bem assim: norma jurídica é texto — e não norma — interpretado. Texto e norma não se superpõem. A norma é produzida pelo intérprete. Talvez a doutrina finalmente desperte para a distinção que há entre a dimensão legislativa e a dimensão normativa do direito, doutrina que tem se limitado a reproduzir, em matéria de interpretação do direito e da Constituição, o que de melhor foi produzido no século XIX. De toda sorte cabe aqui qual u’a luva uma observação de CARLOS ALBERTO DIREITO: “Sempre que aparece uma nova doutrina, logo se multiplicam os seus extremos” (Comentários ao novo Código Civil, volume XIII, Forense, Rio de Janeiro, 2.004, pág.12). O argumento de que a norma — e não a lei — não poderia retroagir ignora que, qual anota PAOLO GROSSI (Assolutismo giuridico e diritto privato, Giuffrè, Milano, 1.998, págs. 358-359), são duas as forças que, em direções opostas, percorrem o direito, uma tendente à rigidez, outra à elasticidade; e duas são as exigências fundamentais que nele se manifestam, a da [i] certeza e liberdade individual garantidas pela lei no sistema do direito burguês e a da sua [ii] contínua adequação ao devir social, garantida pela interpretação. A lei em princípio retroage; isso apenas não ocorre quando de sua retroação advier prejuízo a direito adquirido, a ato jurídico perfeito ou a coisa julgada. A norma, essa se aplica, tal como produzida pelo intérprete autêntico, ao caso. De modo que a menção a uma irretroatividade da norma consubstancia autêntico non sense. Lições de Teoria Geral do Direito não nos fariam mal.


RECURSO EXTRAORDINÁRIO 353.657-5 PARANÁ

RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO

RECORRENTE(S): UNIÃO

ADVOGADO(A/S): PFN – EULER BARROS FERREIRA LOPES

RECORRIDO(A/S): MADEIRA SANTO ANTÔNIO LTDA

ADVOGADO(A/S): WALTER TOFFOLI E OUTRO(A/S)

ADVOGADO(A/S): FERNANDA GUIMARÃES HERNANDEZ E OUTRO(A/S)

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 370.682-9 SANTA CATARINA

RELATOR: MIN. ILMAR GALVÃO

RECORRENTE(S): UNIÃO

ADVOGADO(A/S): PFN – ARTUR ALVES DA MOTTA

RECORRIDO(A/S): INDÚSTRIA DE EMBALAGENS PLÁSTICAS GUARÁ LTDA

ADVOGADO(A/S): FERNANDA GUIMARÃES HERNANDEZ E OUTRO(A/S)

V O T O

(S/ QUESTÃO DE ORDEM)

O Senhor Ministro RICARDO LEWANDOWSKI: — Senhora Presidente, na última Sessão em que os presentes recursos vieram a julgamento, tendo em conta a alteração — pela maioria de um voto apenas — na jurisprudência até agora assentada por esta Corte sobre o direito ao crédito de IPI decorrente da aquisição de matéria-prima cuja entrada é isenta, não tributada ou sobre a qual incide a alíquota zero, submeti questão de ordem a este egrégio Plenário para que ele decidisse sobre a possibilidade de conceder-se efeitos prospectivos às decisões que deram guarida ao inconformismo da Fazenda Pública no tocante à polêmica questão.

Para tanto, permito-me tecer algumas considerações iniciais, de cunho doutrinário, antes de ingressar no mérito propriamente dito do tema.

A Constituição, segundo a lição clássica de Kelsen, é a norma fundamental que empresta validade a todas as demais normas de um sistema jurídico.[1] Por essa razão, a compatibilidade destas com aquela configura verdadeiro imperativo categórico, na acepção kantiana da expressão.[2] Dito de outra maneira, a incompatibilidade de uma norma qualquer com o texto magno faz desaparecer o fundamento que permite que ela exista validamente em um dado ordenamento legal. Daí falar-se no princípio da supremacia das normas constitucionais, sobretudo em se tratando de constituições escritas e rígidas.

Para preservar essa supremacia, existem mecanismos de defesa, preventivos e repressivos, destinados a salvaguardar a higidez do sistema jurídico, mediante a neutralização das normas incompatíveis com o texto constitucional. Entre nós, o controle repressivo, cometido ao Poder Judiciário, é de natureza híbrida, visto que pode ser realizado tanto pelo Supremo Tribunal Federal, como por qualquer outro órgão judicante, singular ou coletivo. No primeiro caso, tem-se o controle concentrado de constitucionalidade e, no segundo, o incidental ou difuso.

Embora a Constituição não explicite qual a pena cominada à norma inconstitucional, ela decorre do princípio da supremacia, correspondendo à sanção de nulidade ou anulabilidade, com efeitos, respectivamente, ex tunc ou ex nunc. No controle difuso de constitucionalidade, a nulidade, como regra, é reconhecida ipso iure, operando ab initio, ou seja, retroativamente;[3] no controle concentrado, também se declara a nulidade do ato normativo, geralmente com eficácia ex tunc, podendo, todavia, ser ele apenas anulado, estabelecendo-se que a decisão que reconhece a inconstitucionalidade opera ex nunc ou pro futuro.

Apesar de suscitar controvérsias na doutrina, por entenderem certos teóricos – ainda jungidos a uma visão mais ortodoxa acerca do tema – que a norma inconstitucional, ao menos em nosso sistema, é sempre nula, cabendo ao Judiciário simplesmente declarar tal condição, quando instado a fazê-lo, a pena de anulabilidade encontra, atualmente, previsão expressa em ordenamentos jurídicos de vários países,[4] inclusive na legislação ordinária brasileira.[5]

Como a inconstitucionalidade pode ser argüida a qualquer tempo, não é difícil imaginar que a adoção sistemática da sanção de nulidade acarretaria graves transtornos às relações sociais, visto que a própria certeza do direito poderia ser colocada em xeque. A anulação da norma inconstitucional, com a modulação dos efeitos temporais da decisão, surge assim como precioso instrumento que permite temperar o princípio da supremacia constitucional com outros valores socialmente relevantes, em especial o da segurança jurídica.

A necessidade de preservar-se a estabilidade de relações jurídicas pré-existentes, levou o legislador pátrio, inspirado nos modelos alemão e português, a permitir, nas Leis 9.868, de 10 de novembro de 1999, e 9.882, de 3 de dezembro de 1999, que o Supremo Tribunal Federal regule, ao seu prudente arbítrio, os efeitos das decisões proferidas nas ações declaratórias de constitucionalidade, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas argüições de descumprimento de preceito fundamental.

Nesse sentido, o art. 27 da Lei 9.869/1999 estabelece que o Supremo, por maioria de dois terços de seus membros, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, pode restringir os efeitos de decisão que, nas ações diretas ou declaratórias, reconheça a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, estabelecendo que ela só tenha eficácia a partir do trânsito em julgado ou de outro momento. O art. 11 da Lei 9.882/1999 estende essa possibilidade às ações de argüição de descumprimento de preceito fundamental.

As referidas disposições afastam, pois, a imposição obrigatória da sanção de nulidade, com efeitos ex tunc, visto que autorizaram o STF a estabelecer, discricionariamente, tendo como balisas os conceitos indeterminados de “segurança jurídica” ou de “excepcional interesse social”, que sua decisão, em certos casos, tenha eficácia em momento posterior à vigência da norma declarada inconstitucional.

É dizer, o direito positivo, agora, consagra a tese, já defendida por alguns no passado, em sede doutrinária,[6] segundo a qual a decisão de inconstitucionalidade tem natureza constitutivo-negativa, e não apenas declaratória, como se entendia tradicionalmente, a partir de uma interpretação clássica do princípio da supremacia, combinada com uma leitura mais estrita dos dispositivos constitucionais que tratam da matéria.[7]

O efeito pro futuro, previsto nas Leis 9.868/1999 e 9.882/1999, convém registrar, difere do efeito ex nunc: este opera desde a decisão de inconstitucionalidade, ao passo que aquele atua a partir do momento escolhido pelo Supremo. Embora o efeito prospectivo variável possa causar certa espécie, seja por seu aspecto inovador, seja por não encontrar previsão constitucional expressa, quando compreendido sob uma ótica teleológica, não é difícil constatar que ele que encontra fundamento no princípio da razoabilidade, porquanto objetiva não apenas minimizar o impacto das decisões do Supremo sobre relações jurídicas já consolidadas, como também evitar a ocorrência de um vácuo legislativo, em tese mais gravoso para o ordenamento legal do que a subsistência temporária da norma declarada inconstitucional.

É bem de ver, por outro lado, que os arts. 27 da Lei 9.868/1999 e 11 da Lei 9.882/1999, na medida em que simplesmente autorizam o Supremo a “restringir os efeitos” da declaração de inconstitucionalidade, sem qualquer outra limitação expressa, a rigor não excluem a modulação da própria eficácia subjetiva da decisão, de maneira a permitir que se circunscreva o seu alcance – em geral erga omnes — a um universo determinado de pessoas. A redação também não afasta a possibilidade, em tese, de desconsiderar-se o efeito repristinatório da decisão de inconstitucionalidade sobre o ato revogado.

Não impressiona, data venia, o argumento segundo o qual o poder atribuído ao Supremo Tribunal Federal de regular os efeitos das decisões proferidas no bojo de ações de natureza objetiva, em particular quanto ao seu aspecto temporal, não se encontra previsto em nenhum dispositivo do texto constitucional. É que o Supremo, segundo o art. 102, caput, da Carta Magna, exerce o relevante papel de “guarda da Constituição”. Trata-se de um múnus de matiz político, cujo exercício comporta considerável margem de discricionariedade, exatamente para que a Corte possa dar efetividade ao princípio da supremacia constitucional.

Recorde-se, ademais, que o STF ao proceder, em casos excepcionais, à modulação dos efeitos de suas decisões, por motivos de segurança jurídica ou de relevante interesse social, estará realizando a ponderação de valores e princípios abrigados na própria Constituição.

Ora, esses fundamentos que autorizam a modulação dos efeitos nas decisões proferidas nos processos de índole objetiva, também se aplicam, mutatis mutandis, aos processos de natureza subjetiva. Nesse sentido, existem precedentes nesta Corte, dentre os quais sobressai o acórdão prolatado, em 06.06.2002, no paradigmático RE 197.917/SP, cujo relator foi o Ministro Maurício Corrêa.

Naquele julgamento, o Ministro Gilmar Mendes, em erudito voto-vista assentou não haver dúvida de que “a limitação de efeito é um apanágio do controle judicial de constitucionalidade, podendo ser aplicado tanto no controle direto quanto no controle incidental”, sobretudo quando, à luz “de um severo juízo de ponderação que, tendo em vista análise fundada no princípio da proporcionalidade, faça prevalecer a idéia de segurança jurídica ou outro princípio constitucionalmente relevante”.

De fato, embora estejamos tratando, aqui, de processos subjetivos, a verdade é que, quando a matéria é afetada ao Plenário, a decisão resultante, na prática, surtirá efeitos erga omnes. Nessa linha, o Ministro Gilmar Mendes, chamou atenção, no citado pronunciamento, para a circunstância de que, “se o STF declarar a inconstitucionalidade restrita, sem qualquer ressalva, essa decisão afeta os demais processos com pedidos idênticos pendentes de decisão nas diversas instâncias.”

Em julgado mais recente, datado de 03.02.2005, a saber, na ação cautelar, autuada sob o número 2.859-7, com pedido liminar, para a concessão de efeito suspensivo em recurso extraordinário, interposto pelo Município de São Paulo, contra acórdão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça proferido em ação direta de inconstitucionalidade, o Plenário desta Corte referendou a cautelar concedida pelo Relator, Ministro Gilmar Mendes, com eficácia ex nunc, perfilhando a técnica, explicitada no voto condutor, da modulação dos efeitos de decisões proferidas no âmbito do controle difuso.

Acrescente-se aos argumentos acima expendidos que o legislador pátrio, ao dispor sobre a edição de súmulas vinculantes pelo Supremo Tribunal Federal, previu, de forma expressa, no art. 4º da Lei 11.417, de 19 de dezembro de 2006, recentemente promulgada, a possibilidade de modulação de seus efeitos, verbis:

“Art. 4º. A súmula com efeito vinculante tem eficácia imediata, mas o Supremo Tribunal Federal, por decisão de 2/3 (dois terços) dos seus membros, poderá restringir os efeitos vinculantes ou decidir que só tenha eficácia a partir de outro momento, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse público.”

Percebe-se que o novo diploma legal apenas positivou uma lógica decisória inerente à própria função político-jurídica da Suprema Corte, tal qual o fez a Lei 9.868/1999, conforme procurei demonstrar. A modulação dos efeitos vinculantes das súmulas, pois, seja quanto à sua abrangência, seja quanto aos seus efeitos temporais, tendo em mira a salvaguarda de valores ou princípios constitucionais relevantes, sobre decorrer da própria sistemática de controle de constitucionalidade adotada pela Carta Magna, encontra amparo explícito na lei ordinária que lhe delineou os contornos.

Como o enunciado das súmulas vinculantes poderá ser — e, em regra será — deduzido a partir de decisões reiteradamente prolatadas no âmbito do controle difuso de constitucionalidade, não há negar que, por via de conseqüência, mostra-se também perfeitamente possível a modulação dos efeitos das decisões proferidas nos processos de índole subjetiva, mormente quando resultantes de julgamentos do Plenário do Supremo Tribunal Federal.

Bem, como é do conhecimento de todos, em duas ocasiões anteriores, a última em 18.12.2002, o Plenário desta Suprema Corte manifestou-se favoravelmente, por ampla maioria, ao creditamento do IPI nas operações de que tratam os recursos sob exame. [8] E com base nessas decisões foram tomadas várias outras, de caráter monocrático, neste Tribunal,[9] e de natureza coletiva, no Superior Tribunal de Justiça e nos Tribunais Regionais Federais.

Em pesquisa que realizei, pude perceber que, não obstante a tendência que aqui se manifestava acerca da mudança do entendimento sobre a matéria, praticamente todos os Tribunais Regionais Federais e mesmo os magistrados de primeira instância da Justiça Federal continuaram a prestigiar a jurisprudência predominante na Corte.

Não é por outra razão que Karl Larenz, ao tratar da importância dos precedentes pretorianos e da construção daquilo que denomina de “Direito judicial”, lembra que:

“(…) existe uma grande possibilidade no plano dos factos de que os tribunais inferiores sigam os precedentes dos tribunais superiores e estes geralmente se atenham à sua jurisprudência, os consultores jurídicos das partes litigantes, das firmas e das associações contam com isto e nisto confiam. A conseqüência é que os precedentes, sobretudo os dos tribunais superiores, pelo menos quando não deparam com uma contradição demasiado grande, serão considerados, decorrido largo tempo, Direito vigente. Disto se forma em crescente medida, como complemento e desenvolvimento do Direito legal, um Direito judicial (…).”[10]

Foi exatamente o que ocorreu na situação em apreço: os contribuintes, fiados em entendimento pacificado na Suprema Corte do País, por quase uma década, visto que as primeiras decisões datam do final dos anos 90,[11] passaram a creditar-se, de forma rotineira, do IPI decorrente das operações que envolviam a entrada de insumos isentos, tributados com alíquota zero ou não tributados.

Por tal motivo, e considerando que não houve modificação no contexto fático e nem mudança legislativa, mas sobreveio uma alteração substancial no entendimento do STF sobre a matéria, possivelmente em face de sua nova composição, entendo ser conveniente evitar que um câmbio abrupto de rumos acarrete prejuízos aos jurisdicionados que pautaram suas ações pelo entendimento pretoriano até agora dominante.

Isso, sobretudo, em respeito ao princípio da segurança jurídica que, no dizer de Celso Antonio Bandeira de Mello, tem por escopo “evitar alterações surpreendentes que instabilizem a situação dos administrados”, bem como “minorar os efeitos traumáticos que resultam de novas disposições jurídicas que alcançaram situações em curso”.[12]

Não se propugna com isso, é evidente, a cristalização da jurisprudência ou a paralisia da atividade legislativa, pois as decisões judiciais e as leis não podem ficar alheias à evolução social e ao devir histórico. Não se pode olvidar, contudo, que cumpre, como sabiamente apontou a Ministra Cármen Lúcia, em magistral estudo que integra coletânea de artigos em homenagem ao Ministro Sepúlveda Pertence, conferir “segurança” ao processo de transformação.[13]

Por essas razões entendo que convém emprestar-se efeitos prospectivos às decisões em tela, sob pena de impor-se pesados ônus aos contribuintes que se fiaram na tendência jurisprudencial indicada nas decisões anteriores desta Corte sobre o tema, com todas as conseqüências negativas que isso acarretará nos planos econômico e social.

Para se ter uma idéia do gravame que uma decisão ex tunc representaria para os jurisdicionados, registro que a União, antes mesmo da consolidação da nova maioria no Plenário, já vinha ingressando com ações rescisórias perante o Tribunal Federal da 4ª Região contra contribuintes que, com fundamento nos julgados anteriores do STF, obtiveram o direito de creditar-se do IPI nas operações isentas, não tributadas ou taxadas com alíquota zero.[14]

Isso, é claro, sem mencionar as incontáveis execuções fiscais que serão ajuizadas, dentro do prazo prescricional, contra os contribuintes que se valeram dos créditos escriturais, em conformidade com a jurisprudência desta Corte e demais tribunais.

Assim, Senhora Presidente, ante as peculiaridades do caso, e em homenagem não apenas ao princípio da segurança jurídica, mas também aos postulados da lealdade, da boa-fé e da confiança legítima, sobre os quais se assenta o próprio Estado Democrático de Direito, proponho que se confira efeitos ex nunc as decisões proferidas nos REs 353.657 e 370.682.


[1] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Coimbra: Armênio Amado, 3ª ed., 1974, p. 280.

[2] Sobretudo no que respeita à incorporação dos fundamentos axiológicos da constituição ao processo hermenêutico.

[3] No controle difuso, o órgão julgador, como regra, restringe-se a reconhecer a nulidade pré-existente do ato normativo, segundo ensina CANOTILHO, J.J., Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 7ª ed., s.d., p. 904.

[4] Portugal (art. 282, 2 e 4, da Constituição), México (art. 105, I, da Constituição), Polônia (art. 190, 3,da Constituição, Alemanha (art. 79, 2, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional).

[5] Leis 9.868, de 10 de novembro de 1999, e 9.882, de 3 de dezembro de 1999.

[6] Por exemplo, Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda nº 1, de 1969, tomo III. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970, pp. 615/626.

[7] Arts. 52, X, 97, 102, III, b, da CF, dentre outros.

[8] RE 212.484/RS, Rel. para o acórdão Min. Nelson Jobim, DJ 27.11.1998, e RE 350.446/PR, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ 06.6.2003, no qual se reconheceu o direito ao creditamento do IPI na hipótese de incidência de alíquota zero tal como se fez nos casos de isenção.

[9] RE 363.777/RS, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 03.02.2002; RE 371.848/RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27.03.2003; RE 370.230/SC, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 08.04.2003, entre outros, somando mais de sessenta decisões.

[10] Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 5ª ed., 1983, pp. 521/522.

[11] Cumpre notar que a ausência do trânsito em julgado deveu-se apenas à interposição de agravos regimentais e embargos de declaração.

[12] Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 19ª ed., 2005, pp. 75/76.

[13] “O princípio da coisa julgada e o vício de inconstitucionalidade”. In: ANTUNES ROCHA, Cármen Lúcia (org.). Constituição e Segurança Jurídica: Direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 168.

[14] AR 2006.04.00.022579-6/SC; AR 2004.04.01.030618-8/SC; AR 2002.04.01.042894-7/SC; AR 2001.04.01.079200-8/PR, por exemplo.

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