Um passo a frente

Investigação da PF não se baseia em grampos apenas

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22 de junho de 2007, 14h03

Especial para a ConJur — As 26 recentes prisões no Rio de Janeiro, no que está sendo chamado de Operação Hurricane 2, mostram que a investigação de policiais federais e procuradores da República neste caso, ao contrário do que se afirma, não foi calcada apenas em escutas telefônicas. Na quinta-feira (21/6), por exemplo, foi preso o delegado federal Eduardo Fonte, da cidade de Macaé, que não tinha o hábito de falar ao celular. De acordo com o diretor-geral da Polícia Federal, Paulo Lacerda, a PF inovou, inclusive importando métodos utilizados no exterior.

A investigação da Operação Hurricane mostrou que a máfia fluminense dos jogos continuava atuando do mesmo modo que agia em 1994, quando da apreensão da contabilidade dos bicheiros na fortaleza de Castor de Andrade, em Bangu, pela equipe do então procurador de Justiça Antônio Carlos Biscaia. O escândalo da contabilidade, entretanto, não gerou punições judiciais à maioria dos envolvidos — bicheiros, policiais e políticos — e a atuação dos contraventores continuou como sempre.

“Ao que me lembre nenhum dos muitos acusados nos três processos abertos a partir daquela apreensão cumpriu pena. E tínhamos provas documentais. Na época, não tivemos nenhum apoio na investigação, jamais contamos com a ajuda da escuta telefônica, que considero um avanço”, diz Biscaia, atual secretário nacional de Justiça que, nesta sexta-feira (22), ocupa interinamente o cargo de ministro na ausência do titular Tarso Genro.

A organização criminosa continuou a mesma, como se constata pela definição da juíza Ana Paula Vieira de Carvalho, da 6ª Vara Federal do Rio, a quem o caso está entregue. Segundo ela, a Operação Hurricane “trouxe fortes indícios de que os denunciados operacionalizam sofisticada organização criminosa, que movimenta elevadíssimas somas de dinheiro, com infiltração nas mais altas esferas do aparelho estatal”. Tudo igual ao que ocorria há 13 anos.

Se os crimes continuaram os mesmos — exploração de jogo ilegal, corrupção, descaminho de peças para máquinas e formação de quadrilha — a forma de atuação se sofisticou. No descrever do procurador da República Marcelo Freire, “é uma organização muito complexa, dividida em hierarquia. Não era possível o contato direto com uma gama tão grande de pessoas. Havia uma divisão de tarefas baseada na hierarquia”.

O procurador descreve o funcionamento da quadrilha em três níveis. “Temos um grupo de hierarquia maior, dos três primeiros denunciados (os bicheiros Aníz Abrahão David, o “Anísio da Beija Flor”; Ailton Guimarães Jorge, o “Capitão Guimarães”; e Antonio Petrus Kalil, o “Turcão”). Tem um nível de comando de operacionalidade maior, que é a Aberj (Associação dos Bingos do Estado do Rio de Janeiro), que a primeira denúncia aponta como uma instituição voltada à arrecadação de recursos ilegais para aqueles que têm interesse na exploração do jogo. A Aberj é tida como uma instituição de fachada. Junto a eles haviam intermediários, pessoas que faziam o intercâmbio de informações entre os policiais e aqueles que detinham o poder de mando na organização”.

Para conseguir desbaratar essa “organização”, a Polícia e o Ministério Público desenvolveram uma investigação que, na verdade, começou em dezembro de 2005 e ainda não terminou. Há notícias de crimes ainda por serem apurados.

O que poucos sabem — com exceção dos advogados que compulsaram os autos em segredo de Justiça — é que a denúncia não tinha nenhuma relação com a exploração de jogo. Provavelmente seu autor jamais imaginou que sua queixa fosse resultar na descoberta de uma quadrilha com a qual estaria envolvido até o ministro do Superior Tribunal de Justiça Paulo Medina.

Foi a partir da reclamação de um advogado não especializado em Direito Criminal que o furacão começou a se formar. Ele se queixou de um pedido de propina feito por um delegado. “Vamos resolver isto aí, o pessoal de cima mandou cobrar bem baratinho”, expôs o policial ao advogado que o via pela primeira vez. O “baratinho” eram R$ 100 mil para arquivar um inquérito em que um cliente estaria envolvido, sem que houvesse indícios suficientes de sua culpa. Estupefato, o advogado tomou uma iniciativa rara: foi à Procuradoria e prestou queixa formalmente, em depoimento a um delegado federal da Diretoria de Inteligência Policial (DIP) e ao procurador Orlando Monteiro da Cunha, do Grupo de Controle Externo da Polícia.

“Trabalho de FBI”

Apesar do papel importante da escuta telefônica, a Operação Hurricane ficou longe de se limitar à produção de provas por meio das gravações. Pelo contrário, como lembra Paulo Lacerda, a PF inovou com métodos como o da “exploração ambiental”.

Com autorização do ministro Peluso, policiais visitaram o escritório comercial de Virgilio Medina, irmão do ministro Medina, numa noite. Sem deixar vestígio, fizeram uma vistoria fotografando, inclusive, papéis onde alguns números rabiscados indicavam valores de propinas que tinham sido discutidos em um telefonema grampeado. Foi a primeira vez que a Polícia recorreu a esse método. Segundo Lacerda, em outros países ele já é mais rotineiro, feito até mesmo sem necessidade de autorização judicial em casos de suspeita de terrorismo.


O envolvimento do desembargador federal José Ricardo Siqueira Regueira, por exemplo, não surgiu da escuta telefônica, já que ele utiliza até aparelhagem anti-grampo, como ficou constatado. Ele entrou no caso quando os agentes federais foram acompanhar uma reunião de advogados da Associação de Bingos no complexo hoteleiro Tio Sam, no bairro de Camboinhas, em Niterói, de propriedade do bicheiro Turcão. Os policiais anotaram as placas dos carros, descobrindo a Mercedes Benz do desembargador.

Num outro caso, um rastreador colocado em um dos carros da Polícia utilizado pelo delegado federal de Niterói, Carlos Pereira, permitiu aos investigadores acompanhar seus deslocamentos, em especial no dia em que saiu de Niterói e foi ao bairro do Recreio dos Bandeirantes para encontrar-se com o delegado aposentado Luiz Paulo Dias de Matos. Este, pela denúncia, era responsável pelo pagamento de propina a seus colegas da Federal e naquele dia teria recebido pacotes do policial civil Marcos Bretas, outro que foi denunciado, preso e é apontado como o pagador das propinas policiais. O encontro de Bretas e Matos também foi devidamente monitorado.

Houve também acompanhamento de perto de outros suspeitos. Muitos encontros em restaurantes foram fotografados por agentes federais disfarçados. O deslocamento dos envolvidos para Brasília, por exemplo, permitiu descobrir as ligações de alguns deles com suspeitos em outros casos, como um lobista do Congresso Nacional, fotografado recebendo dinheiro no aeroporto de Brasília.

As buscas e apreensões feitas no dia 13 de abril em 68 locais mostraram que a Polícia sabia bem o que estava buscando e que havia suspeitos que ainda não tinham sido denunciados. Na casa de Luciano Andrade do Nascimento, o Bola — que só foi denunciado esta semana, na segunda fase da operação — foram localizados documentos que provam não apenas a existência da quadrilha como a infiltração dela nos poderes públicos.

Achou-se, por exemplo, papel assinado por Kalil, com firma reconhecida, declarando que em caso de morte ou invalidez “os meus negócios de jogo em geral (numéricos e eletrônicos) passarão a ser administrados por meu filho, Marcelo Kalil Petrus” — denunciado que se encontra foragido — “a quem caberá decidir sobre os negócios”. Ou seja, um testamento dirigido à cúpula da máfia do jogo, o que provou que Bola guardava documentos dos chefões da máfia.

Na mesma casa estavam folhas de caderno com anotações das “despesas pagas com as receitas de jogo e máquinas e os gastos fixos que são destinados a Polícia Civil (R$ 848.600,00) Polícia Militar (R$ 51.500,00), Polícia Federal (R$ 240.000,00) Políticos (R$ 23.000,00), Escritório (R$ 45.000,00), Folha de Pagamento de Funcionários (R$ 61.300,00)”, como consta dos relatórios policiais.

Como destacou a juíza Ana Paula, o trabalho dos investigadores em cima do material apreendido — que embasou a segunda denúncia, apresentada esta semana — permitiu identificar “através do cruzamento de dados obtidos em apreensões distintas e áudios interceptados, a codificação utilizada na contabilidade desses pagamentos, constatando-se que os algarismos 1,2,3,4,5,6,7,8,9,0 correspondiam a letras na seqüência da palavra “MOSQUEIRAL”, descobrindo por conseqüência os valores pagos pela quadrilha. Com esse dado é possível comprovar que diversos agentes públicos (federais e estaduais) recebem rotineiramente quantias que variam de 2 mil até 30 mil individuais”.

O que se depreende da leitura dos autos da Operação Hurricane é que ele se transformou num exemplo claro de investigação que permitirá à Justiça apreciar as denúncias, com respaldo de um conjunto robusto de provas, diferentemente do que ocorre em muitas investigações policiais arquivadas por terem sido mal feitas.

A Polícia certamente cometeu erros. Esta semana mesmo, qualificou como policial o filho do ex-apresentador de TV Abelardo Barbosa, o Chacrinha. José Renato Barbosa jamais foi policial. Também houve certa demora em recolher os aparelhos de escuta instalados no gabinete de trabalho do desembargador Carreira Alvim, que podem ter sido usados para escutas ilegais feitas sem o conhecimento da Polícia.

Mas, independentemente destas falhas, o resultado apresentado é surpreendente. Como já admitiu, em absoluto sigilo, o advogado de um dos réus do caso, “foi um trabalho de Polícia do primeiro mundo, comparável com o que se conhece do FBI”.

E o caso não deve parar por aí. O procurador da República Orlando Monteiro da Cunha já garantiu que as investigações produziram muitas informações ainda não trabalhadas. “Cada situação tem que ser analisada no momento adequado. Há toda uma situação de lavagem de dinheiro que não foi aprofundada porque o momento ainda não é oportuno. Temos um processo com 24 pessoas presas, com prazos para obedecer. Obviamente que todos os fatos que foram colacionados pela Polícia serão investigados pelo Ministério Público no seu momento oportuno”.


Duração dos grampos

A investigação começou, sim, com uma escuta telefônica, pedida pela Polícia, referendada pelo Ministério Público e concedida pela juíza Ana Paula. Como lembra Paulo Lacerda, nas investigações feitas pela corporação todo pedido de escuta passa pelo Ministério Público antes da autorização Judicial. “Só conheço um caso em que, diante da demora no pronunciamento do MP, o juiz autorizou a escuta antes do aval dos procuradores. Mas ele depois foi dado”, diz Lacerda.

No caso da Hurricane, a escuta durou muito mais que os 15 dias prorrogáveis por mais 15, como fala a legislação e muitos defendem que esse limite seja inflexível. Mas ela jamais pode ser classificada de ilegal, pois obedeceu sempre a ordens judiciais, inicialmente da juíza Ana Paula e, a partir de setembro passado, do ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal. A extensão do prazo de 30 dias, aliás, é admitida pelo Supremo quando há fundadas razões para isso.

As prorrogações extraordinárias contaram com o respaldo do MP mediante pedido fundamentado e relatório do que se apurou nos 15 dias anteriores de escuta. As interceptações de linhas que não demonstraram uso por participantes da quadrilha foram logo suspensas.

A discussão sobre a duração das escutas telefônicas dificilmente leva em conta o que está sendo apurado. Paulo Lacerda lembra, por exemplo, casos de tráfico internacional quando as encomendas das drogas são feitas com certa antecedência aos produtores. “Se estivermos já no final do prazo da prorrogação e soubermos de uma encomenda para ser entregue dentro de 15 ou 20 dias, devemos parar o caso? Deixar que a entrega se efetue? Ou vamos prosseguir na investigação com acompanhamento do Ministério Público e autorização judicial?”, questiona.

Na Operação Hurricane, o simples fato de já terem sido expedidos mandados de prisão contra 56 pessoas e duas denúncias (alguns dos réus foram denunciados duas vezes e têm dois mandados de prisão nos dois processos) demonstra a extensão da investigação. Mas ela ganha importância maior quando se constata a qualificação dos seus réus: um ministro do STJ, dois desembargadores federais do TRF da 2ª Região, um juiz do TRT de Campinas, um procurador regional da República, três delegados federais e dois da Polícia Civil do Rio, já presos, mais de 20 agentes federais e inspetores de Polícia também no xadrez, além de contraventores conhecidos e polêmicos, como os bicheiros do Rio de Janeiro.

Caso a investigação se limitasse à escuta telefônica de 30 dias, dificilmente o resultado do trabalho teria essa extensão. Ficaria no caso do pedido de propina do delegado. Basta constatar que o envolvimento do desembargador federal José Eduardo Carreira Alvim e de seu genro, Silvério Nery Cabral Filho, só foi descoberto em junho. O do ministro Paulo Medina, em agosto.

As escutas em cima do delegado pedinte mostraram que a corrupção não era um fato isolado na sua delegacia. As “extorsões” envolviam outros policiais em diversos casos e acabaram trazendo à investigação advogados e lobistas envolvidos com a chamada máfia do jogo. Caíram na rede os advogados Sérgio Luzio Marques Araújo e Jaime Dias, este último mais lobista do que advogado, que atuavam defendendo os interesses dos “bingueiros”.

A partir do grampo nos advogados, a investigação atravessou a Baía de Guanabara indo bater no gabinete do delegado federal de Niterói, Carlos Pereira, atingindo também o delegado de Macaé, preso ontem.

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