Obrigação de cuidar

SUS deve pagar tratamento fora do estado, decide juiz

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19 de junho de 2007, 15h43

Se o Sistema Único de Saúde (SUS) não tem meios suficientes para garantir a assistência médica à população de determinada área, deve recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada. Com base na Lei Federal 8.080/90 e na Constituição, a 4ª Vara Especializada de Famílias e Sucessões de Cuiabá determinou que o SUS, em âmbito municipal e estadual, forneça os meios necessários ao internamento e à cirurgia de um recém-nascido em outro estado. A medida serve para garantir a vida da criança.

Segundo o juiz Gilperes Fernandes da Silva, o direito à vida e à saúde é assegurado pela Constituição. “O artigo 197 determina expressamente que as ações e serviços de saúde são de relevância pública e o artigo 198 garante o atendimento integral”, afirmou.

Além disso, o artigo 7º, da Lei 8.069/90, determina que a criança e o adolescente têm direito à proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio, em condições dignas de existência.

Com essas fundamentações, o juiz aceitou o pedido de liminar e determinou que o SUS pague as despesas do tratamento clínico, conforme a necessidade do bebê e a exigência da unidade hospitalar, no caso de internação particular, em hospital credenciado ou não pelo sistema. Além disso, deverá arcar com o custeio do deslocamento do paciente por via aérea. Caso a medida não seja cumprida, foi estabelecida uma multa diária de R$ 4 mil.

De acordo com o processo, o pai do recém-nascido entrou com uma ação contra os gestores do SUS, argumentando que o filho encontrava-se sedado na UTI no Hospital Infantil e Maternidade Femina. O bebê necessita de intervenção cirúrgica, mas o Estado não tem condições de oferecer o serviço sem risco de morte ao menor. Por isso, a necessidade de deslocamento para São Paulo ou Curitiba, onde há centros especializados. Além disso, a família não tem condições financeiras de arcar com o tratamento.

Leia a decisão:

Comarca: Cuiabá Cível

Lotação: Quarta Vara Especializada de Família e Sucessões

Juiz: Gilperes Fernandes da Silva

Processo Código: 293.123.

Ação: Obrigação de Fazer.

Plantão Judiciário.

Vistos, etc…

A. G. C., neste ato representado pelo pai L. C. C., qualificado nos autos, ingressou com a presente Ação de Obrigação de Fazer contra o GESTOR DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, no âmbito Municipal e Estadual na pessoa dos respectivos secretários de saúde, MUNICÍPIO DE CUIABÁ e o ESTADO DE MATO GROSSO, argumentando, em síntese, que o Requerente, menor recém nascido encontra-se sedado na UTI do Hospital Infantil e Maternidade Femina e necessita de imediata intervenção cirúrgica, preferencialmente em outro Estado da Federação (São Paulo-SP e Curitiba-PR), consoante atesta relatório médico, a fim de que não corra risco de morte, tendo em vista que “no Estado de Mato Grosso não tem condições de oferecer o serviço cirúrgico sem risco de morte ao menor”.

Assim, por não ter condições de arcar com o valor do tratamento, pleiteia que os Requeridos forneçam gratuitamente os meios indispensáveis para o tratamento de saúde do Requerente inclusive liminarmente, por entender que se fazem presentes os requisitos necessários à concessão da medida inaudita altera pars.

A fim de sustentar a sua pretensão, aduz a existência no nosso ordenamento, de fundamentos jurídicos de natureza constitucional e infra constitucional a amparar o pedido, transcreve, ainda, entendimentos jurisprudenciais.

É o relatório. Decido.

Antes de tudo observo que no abalizado magistério de José Afonso da Silva, “O sistema único de saúde, integrado de uma rede regionalizada e hierarquizada de ações e serviços de saúde, constitui o meio pelo qual o Poder Público cumpre seu dever na relação jurídica de saúde que tem no pólo ativo qualquer pessoa e a comunidade, já que o direito à promoção e à proteção da saúde é também um direito coletivo.” (“in” “Curso de Direito Constitucional Positivo”, Malheiros Editores, 16ª ed., 1999, p. 805).

Outrossim, a Constituição da República Federativa do Brasil tem como preceito primordial a ser observado: o fundamento da dignidade da pessoa humana e o direito à vida e à saúde.

O artigo 196 da Constituição Federal dispõe que “A saúde é direito de todos e dever do estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”.

O artigo 197 do texto constitucional determina expressamente que as ações e serviços de saúde são de relevância pública.

O artigo 198 inciso II garante o atendimento integral, na esteira do que dispõe o artigo 194 inciso I, também da Carta Magna, de universalidade do atendimento público de saúde.


A lei 8.069/90:

“Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”.

Assim também o artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei Federal nº. 8.080, de 19/9//90 (Lei Orgânica da Saúde), que estrutura o serviço único de saúde:

O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”.

Neste ponto a mencionada Lei Federal nº. 8.080/90 prescreve em seu artigo 24, caput:

“Art. 24 – Quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde – SUS poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada”.

Outrossim, “o direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida” (STF – 2.ª T. – RE-AgR 393175/RS – Rel. Min. CELSO DE MELLO. J.: 12.12.06, DJ 02.02.07, p. 00140).

Importante frisar, que segundo o: “Art. 23”. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

(…)

II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência.”

Portanto, resulta inquestionável que, “nas causas envolvendo o acesso à saúde dos cidadãos, por meio do Sistema Único de Saúde, os entes federados são solidariamente responsáveis (…)”. (TRF 4ª R. – Al 2003.04.01.041369-9 – SC – 3ª T – Rel. Des. Fed. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz – DJU 21.01.2004 – p. 625).

Da Tutela Específica (Liminar)

Segundo prescrição do § 3º do artigo 461 do Código de Processo Civil “sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada”.

Dito isto chego à conclusão de que o pedido de liminar formulado pela parte autora merece acolhimento, já que encontra guarida na legislação pátria e está de acordo com o entendimento de nossos Tribunais.

Observa-se que o fumus boni iuris se consubstancia nos princípios constitucionais elencados acima e extraídos da Constituição Federal, que impõe ao Poder Público (Executivo) a obrigação de garantir o acesso às necessidades imprescindíveis para a saúde dos cidadãos.

O periculum in mora também resulta evidente, em razão do risco de ineficácia da medida se deferida somente ao final, não surtir nenhum efeito, haja vista que segundo extrai de “Relatório Clínico” juntado aos autos o Requerente, menor recém nascido necessita se submeter com urgência a procedimento cirúrgico.

Além do que, não se pode olvidar que a inércia dos Requeridos poderá causar lesão irreparável ou de difícil reparação, mormente diante do noticiado risco de morte. Assim, presentes estão os requisitos exigidos pela lei para a concessão da medida liminar pleiteada.

Para arrematar transcrevo os seguintes julgado do E. Tribunal de Justiça de Mato Grosso:

“AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER – SAÚDE PÚBLICA – INTERNAÇÃO EM UTI – AUSÊNCIA DE LEITOS – OMISSÃO DO PODER PÚBLICO – REQUISITOS DO ART. 461 CONFIGURADOS – TUTELA ANTECIPATÓRIA CONCEDIDA – ADMISSIBILIDADE – AGRAVO IMPROVIDO – DECISÃO UNÂNIME. Sendo dever do Estado propiciar tratamento médico à população, deve ser mantida a tutela concedida para internação em CTI de qualquer hospital, às expensas do SUS”. (TJMT – 3ª Cam. Civ. AI n. 33867/2003, Capital, Rel. Des. José Jurandir de Lima, j. 18/02/2004).

“Em se tratando de questão ligada à prestação saúde, é admissível a antecipação de tutela contra o Poder Público. Correta a decisão que concedeu antecipação de tutela para internação de pessoa com grave problema de saúde em hospital particular, sob a responsabilidade do Estado, quando inexistente, na rede pública, clínica médica especializada para o tratamento, posto que a saúde é direito de todos e dever do Estado”. (TJMT – 2ª Cam. Civ. – AI n. 34943/2003, Capital, Rel. Des. José Silvério Gomes, j. 08-06-2004) (grifei)

Transcrevo ainda por oportuno os seguintes julgados:

“DIREITO PUBLICO NAO ESPECIFICADO. PACIENTE COM LESAO CEREBRAL CRONICA. PASSAGENS PARA EXAME EM BRASILIA, NO HOSPITAL SARAH KUBITSCHEK QUE DEVEM SER CUSTEADAS PELO SISTEMA UNICO DE SAUDE. DIREITO A SAUDE E A VIDA QUE E DEVER DO MUNICIPIO PORQUE INTEGRADO AO SUS. PRELIMINARES REJEITADAS. APELACAO IMPROVIDA. SENTENCA CONFIRMADA EM REEXAME”. (Apelação Cível Nº 70001104090, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nelson Antônio Monteiro Pacheco, Julgado em 31/08/2000) (negritei e grifei).


E mais:

“PROCESSO CIVIL E ADMINISTRATIVO – TUTELA ANTECIPADA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA – SERVIÇO ÚNICO DE SAÚDE – SISTEMÁTICA DE ATENDIMENTO (LEI 8.080/90) (…) 2. Paciente tetraplégico, com possibilidade de bem sucedido tratamento em hospitais da rede do SUS, fora do seu domicílio, tem direito à realização por conta do Estado.3. A CF, no art. 196, e a Lei 8.0680/90 estabelecem um sistema integrado entre todas as pessoas jurídicas de Direito Público Interno, União, Estados e Municípios, responsabilizando-os em solidariedade pelos serviços de saúde, o chamado SUS. A divisão de atribuições não pode ser argüida em desfavor do cidadão, pois só tem validade internamente entre eles. 4. Recurso especial improvido.(STJ – REsp 661.821/RS, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 12.05.2005, DJ 13.06.2005 p. 258)(negritei e grifei).

Pelo exposto, defiro a medida pleiteada liminarmente nos termos desta decisão e em conseqüência, determino que os Requeridos, solidariamente responsáveis, forneçam gratuitamente ao Requerente os meios necessários ao seu internamento e tratamento (intervenção cirúrgica), com observância dos centros especializados indicados no tópico “DO PEDIDO” letra “d”, providenciando e colocando a sua disposição, de molde a preservar a vida do Requerente, toda a estrutura necessária para o atendimento da presente decisão, no prazo de 24 horas, inclusive quanto ao deslocamento do Requerente por via aérea. Incumbindo ainda aos Requeridos a responsabilidade de efetuar(em) o pagamento das despesas do tratamento clínico (médico hospitalares) periodicamente, conforme a necessidade do Requerente e exigência da unidade hospitalar, no caso de internação particular, em hospital credenciado ou não pelo SUS, com observância do preço das tabelas de honorários médicos da AMB/CIEFAS (Tabela de Convênio) e de serviços hospitalares proposto pelo SINDESSMAT.

Para o caso de eventual descumprimento da ordem, fixo multa diária em R$ 4.000,00 (quatro mil reais), nos termos do artigo 461, § 5º, do Código de Processo Civil.

Outrossim, determino desde já, havendo notícia de descumprimento desta ordem judicial, que se extraia cópia a partir desta decisão liminar e encaminhe-a ao Ministério Público para adoção das providências legais pertinentes, no que tange à responsabilização civil e/ou criminal da autoridade descumpridora.

Frise-se que, no caso de desobediência, poderão ser determinadas outras medidas para a obtenção da tutela específica (art. 461, § 5º, CPC).

Citem-se os Requeridos, nas pessoas de seus representantes legais, conforme postulado, para, querendo, contestar(em) a presente ação, no prazo legal, fazendo constar as advertências legais dos artigos 285 e 319 do Código de Processo Civil.

Ciência ao Ministério Público.

Intimem-se. Cumpra-se.

Cuiabá, 16 de junho de 2007.

Gilperes Fernandes da Silva

Juiz de Direito-Plantão Judiciário

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