Princípio republicano

Pacto federativo precisa ser mudado para garantir Ordem

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18 de junho de 2007, 11h45

As recorrentes crises financeiras pelas quais vem passando o Estado do Piauí, principalmente nos últimos dez anos, extrapolam os limites da tolerância. O percentual das transferências constitucionais obrigatórias retidas pelo Tesouro Nacional, sob o pretexto de pagamento do serviço da dívida estadual junto à União, chegou a atingir neste período 22% de toda a parcela do Fundo de Participação do Estado repassada mensalmente.

Diante dessa situação de desequilíbrio econômico-financeiro, é oportuno questionar se o pacto federativo é algo concreto entre nós. Para responder a pergunta, devemos regredir às origens do pacto federal, nos tempos da proclamação da independência da nação brasileira.

Sem dúvida, a formação da federação brasileira ocorreu num processo[1] gradativo, iniciado ainda antes do Grito da Independência, as margens do riacho Ipiranga, em São Paulo.

Um dos movimentos precursores do pacto federativo foi a Confederação do Equador, a qual, por muitos anos, foi tida pela história oficial como uma revolução de natureza separatista. No entanto, não é essa a conclusão mais razoável quando analisados os escritos de Frei Caneca. No Typhis Pernambucano[2], é possível apreender idéias de cunho libertário e antiabsolutista.

Na obra Constituição Aberta, o pensador político Paulo Bonavides escreveu que a tragédia de Frei Caneca, que principiou em 1822, “foi, em certo sentido, menos um drama pessoal do que o malogro de toda uma cruzada de inspiração liberal-constitucionalista, e, até determinado ponto, federativa, em contradição com os desígnios absolutistas”.

Como se vê, a Confederação do Equador era a manifestação política de parte do Brasil, que lutava pela independência da Metrópole, do poder absoluto e antiliberal.

Já durante o período Imperial, vemos outras manifestações do desejo de independência do Poder absolutista e centralizador, o qual era a representação do período de subserviência colonial vivenciada por séculos.

A nação, embora “desvinculada” do poder político de Portugal, continuava a este ligada de fato, dado o liame familiar do titular do Trono Imperial com o dirigente do povo lusitano, e a centralização do Poder num Estado Unitário. Era como se a independência fosse parcial, ou mesmo inexistente na prática.

Entretanto, dentre os próprios monarquistas via-se a presença do movimento federalista. Nomes consagrados como Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, com o declínio da Monarquia, defendiam a forma federativa de Estado.

Como uma forma de “estancar” as pressões pela descentralização do Poder, o Governo Monárquico, já no Segundo Reinado, expediu ato de criação das Assembléias Provinciais.

Estas, apesar das fragilidades financeira e político-decisória, já constituíam uma manifestação inequívoca dos destinos que o Estado brasileiro tomaria. Se não tiveram a autonomia, porque eram simples delegação de competência da Assembléia Geral (Central), contudo, surgiram por reivindicações das sociedades provinciais, as quais lutavam pela autodeterminação no tocante a questões de peculiar interesse.

Com a Proclamação da República, o Decreto 1, numa revelação evidente de um interesse nacional enclausurado por longos anos, chegou a dispor que as antigas províncias, transmudadas em Estados-Membros, seriam, a partir daquele momento, “soberanas”. O desejo de descentralização do Poder foi além do que a própria teoria federalista clássica autorizava.

Naquela época, os problemas financeiros não eram os mais importantes. As questões controvertidas na relação federativa eram essencialmente políticas. Os Estados-Membros chegaram mesmo a poder contrair empréstimos externos diretamente, sem a interveniência da União.


Tais fatos levaram os Estados ao gradativo endividamento, sem qualquer plano de desenvolvimento econômico que os levasse a condição de poder arcar com as inúmeras responsabilidades outorgadas pela nova forma de Estado adotada a partir de então.

De forma que, numa reação óbvia, o Poder Central foi o ponto de socorro de todos, principalmente dos Estados do Nordeste, os mais pobres e atingidos pelas mais absurdas intempéries.

Nesse sentido, deve-se esclarecer que a seca sempre foi o martírio do povo nordestino, principalmente numa época em que a ciência ainda não era aplicada para a solução do grave problema da irregularidade das chuvas.

Portanto, a União Federal, por sucessivas vezes, socorreu emergencialmente os Estados do semi-árido, levando-os à condição de absoluta dependência do Poder Central.

A partir de 1946, os problemas que eram eminentemente políticos foram agravados, com o enriquecimento progressivo dos Estados do Centro-Sul e o empobrecimento continuado da economia nordestina. A desigualdade econômica entre as Regiões levou o Poder Central a adotar uma política de desenvolvimento, criando órgãos de incentivos aos mercados regionais, como a Sudene.

Tal política foi adotada porque a desigualdade inter-regional causava uma rivalidade entre “Estados irmãos”, membros da mesma Nação. Acontece que, dentro da política desenvolvimentista, surgiu outro problema: a desigualdade intra-regional. Numa mesma região – e observem o nosso triste exemplo – economias estaduais desenvolveram-se, enquanto outras permaneceram num continuado estado de atraso.

O IV Plano Diretor da Sudene teve o propósito de diminuir progressivamente as disparidades entre sub-regiões e entre unidades federadas, haja vista que, até dezembro de 1967, 73% dos investimentos aprovados com recursos emanados dos incentivos da autarquia citada se concentravam em apenas dois Estados – Pernambuco e Bahia -, gerando desconfiança e ressentimentos nas Autonomias desfavorecidas.

O IV Plano Diretor de Desenvolvimento Econômico e Social do Nordeste relatou que, “A participação dos diferentes Estados no total dos investimentos aprovados pela SUDENE, até dezembro de 1967, para novas indústrias no Nordeste, permite agrupá-los em três faixas bem distintas. Na primeira situam-se: Bahia (39,4%) e Pernambuco (34,3%); na segunda, Ceará (7,1%), Alagoas (5,8%), Paraíba (5,5%) e Rio Grande do Norte (3,5%); e, na terceira, Sergipe (1,8%), Maranhão (1,3%), área mineira sob jurisdição da SUDENE (1,0%) e Piauí (0,3%). A participação dos Estados da Bahia e Pernambuco ascende a 73,7%, restando 26,3% para os demais”[3].

É óbvio que condutas ilícitas e danosas, observadas ao longo de todo o século XX, devem ser investigadas e punidas. Mas, no caso, não é oportuno discutir se houve ou não desvios, pois, como se observa, os piauienses receberam 131 vezes menos que a Bahia, ou 114 vezes menos que Pernambuco, ou – na melhor das hipóteses – 4 vezes menos que o Maranhão e 3 vezes menos que o Vale do Rio Jequitinhonha, de acordo com o relatório daquela época.

Até hoje, quase 40 anos depois, a realidade não mudou. Na imprensa, em divulgações oficiais, nós sempre vemos outros Estados da Federação sendo agraciados com investimentos muito superiores que os conseguidos pelo Piauí[4][5][6].

A conseqüência desse fato é o agravamento de nossa dependência econômica junto ao Poder Central da União, o qual sempre ignorou os nossos graves problemas. O Piauí nunca recebeu sua cota no espólio do Império, o que, via de regra, justifica a nossa condição de baixo desenvolvimento econômico e social frente ao resto do país.

Por fim, de todo o exposto, apesar da dependência piauiense com respeito aos recursos federais, não podemos concluir que o pacto federativo morreu. Absolutamente não.

O exemplo da história nos mostra que o espírito federativo está no ímpeto democrata do nosso povo. Está na vontade de chamar para si o dever de se auto-organizar, financiar e prestar serviços públicos eficientes e de qualidade.


Nossa conclusão inequívoca é que o pacto federativo está doente, necessitando de uma revisão. Mas uma revisão de cunho político, que considere os erros e os fracassos cometidos no passado, uma revisão que possibilite a eliminação de vez a desigualdade entre irmãos brasileiros do norte e do sul, que têm os mesmos direitos e os mesmos deveres. Tudo isto porque o princípio federativo deve ser encarado como um processo de efetivação do princípio democrático, o mais importante na vida Republicana.


[1] A visão do federalismo como processo pode ser aprofundada na “Teoria Geral do Federalismo”, de José Alfredo de Oliveira Baracho.

[2]Segundo informação contida no site da Fundação Joaquim Nabuco, O Typhis Pernambucano era um jornal político, fundado e redigido por Frei Caneca. Teve seu primeiro número publicado no dia 25 de dezembro de 1823. Respeitando a lei de imprensa vigente, sancionada em 22 de novembro de 1823, Frei Caneca utilizou o jornal para fazer a crítica política do seu tempo e defender a liberdade constitucional. O nome Typhis é uma referência a Tiphis o inventor da navegação e ao piloto do Argos, navio construído para a conquista do velocino de ouro (um carneiro da mitologia grega). Frei Caneca buscava, como o navegador, através do seu jornal, a liberdade constitucional. Usou uma linguagem de argonauta (tripulante lendário da nau mitológica Argos) em todos os números do Typhis Pernambucano.

[3] IV Plano Diretor de Desenvolvimento Econômico e Social do Nordeste, 1963-1973, publicação da SUDENE, Ministério do Interior, Recife, 1968, p. 79

[4] Os últimos investimentos de vulto no Piauí foram a Usina Hidrelétrica de Boa Esperança, construída entre as décadas de 1950 e 1960, e a construção da Cervejaria Antártica, na década de 1980, com o apoio da SUDENE.

[5] Projetos não faltam: a inclusão do Piauí na rota da Ferrovia Trans-nordestina, a conclusão do Porto de Luís Correia-PI, a recuperação do leito e implantação da hidrovia do Rio Parnaíba (o 2º maior do nordeste, depois do “Velho Chico”), a construção de estradas na “região dos cerrados”. Todos esses investimentos têm o objetivo de incentivar o desenvolvimento da última fronteira agrícola do país (os cerrados), onde menos de 5% da área total é aproveitada com a produção de soja, atualmente.

[6] Em virtude da ausência de apoio aos projetos piauienses pelo governo federal, já tramita, há alguns anos, no Congresso Nacional, projeto de decreto legislativo para autorizar a realização de consulta popular sobre o desmembramento da região sul, criando-se o Estado do Gurguéia. Os defensores da idéia vêm no desmembramento do Estado a única forma de aumentar o repasse de verbas federais para o território hoje piauiense, viabilizando a implementação dos projetos de desenvolvimento da região.

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