Evento ético

Financiar congressos para juízes pode ser admissível

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

18 de junho de 2007, 17h50

A imprensa, vez por outra, noticia o financiamento de encontros, seminários ou congressos de magistrados, deixando um rastro de descrédito no Poder Judiciário. O assunto é relevante, complexo e tem várias facetas. Todavia, nunca é enfrentado. Passa-se ao largo. Até que, meses depois, uma nova reportagem surja. A análise deste tema, que é parte da política judiciária e administração da Justiça, obriga a algumas perguntas clássicas: 1) quem financia? 2) o que se financia? 3) por que se financia? Vejamos, pela ordem.

Quem financia

A primeira é fácil. Quem financia são bancos, grandes corporações, poderosas entidades de classe, organismos internacionais, ora como promotores únicos e exclusivos do evento, ora como parceiros (apoios). Não se veja nisto, de forma genérica, algo reprovável ou suspeito. É preciso distinguir as situações.

Os financiamentos, seja qual for a origem (lícita, evidentemente), não são, por si sós, condenáveis. Podem fazer parte da política institucional da pessoa jurídica doadora. Suponha-se, por exemplo, que entre as suas metas se encontre a da responsabilidade social. Não haverá nada de errado em que venha a auxiliar na realização de um seminário sobre este tema.

Não será reprovável, da mesma forma, o financiamento como recompensa por lucros obtidos na própria atividade do empreendedor. Por exemplo, um tribunal seleciona determinado banco como destinatário dos depósitos judiciais. Os lucros do estabelecimento bancário são fabulosos. Ora, nada mais natural do que, em contrapartida, o banco colaborar em iniciativas do Poder Judiciário, como a realização de cursos, congressos ou construção de fóruns. Nisto não há nada de errado. O banco procura o lucro e, para alcançá-lo, oferece recompensas ao concedente do serviço. Por sua vez, o tribunal é recompensado com verbas destinadas que, aplicadas, servirão ao público.

Em casos como este, não haverá nenhum comprometimento pessoal de magistrados com o financiador. Nenhum juiz ficará suspeito para julgar uma ação entre o banco e um terceiro. Não existe, no caso, suspeição, da mesma forma que ela inexiste quando um juiz julga uma ação contra o Estado que, em última análise, lhe paga todo mês os vencimentos.

Em um passo seguinte, ainda respondendo à primeira indagação, quem financia pode ser um doador sozinho ou vários. Na primeira hipótese, é preciso avaliar a situação com maior cautela. Imagine-se que uma associação de locadores ofereça-se para financiar um congresso de magistrados estaduais, que são os competentes para julgar seus litígios. Há aí uma situação que entra na zona cinzenta de ser ou não ética a conduta de quem aceita o auxílio. A meu ver, em princípio, ele deve ser rejeitado, pois é flagrante o interesse ou, pelo menos, a suposição de interesse (o que basta para macular o Judiciário) do doador.

Imagine-se outra hipótese. Uma poderosa entidade empresarial, com vultosos interesses tributários em discussão na Justiça Federal, convida seus juízes e desembargadores para um seminário em um sofisticado resort na praia, suportando todas as despesas decorrentes. É evidente que a oferta foge do razoável e deve ser repelida. Ninguém acreditará que o interesse é acadêmico, científico.

O que se financia

Normalmente, o doador  ou os doadores  arca com as despesas do evento. Mas aqui, novamente, há situações diferentes. Nada há a criticar sobre apoios institucionais razoáveis como, por exemplo, a doação de passagem a um palestrante por uma companhia aérea, a impressão de cartazes por uma editora, a dispensa de pagamento de diárias de um ou dois apartamentos pelo hotel em que se dará o encontro, o pagamento do coquetel de abertura por uma entidade de classe ou a doação de pastas com material do congresso por uma gráfica. Em todos estes exemplos, está-se diante da normalidade do mundo dos negócios. Afinal, vivemos em um sistema capitalista, baseado na livre concorrência (Constituição, artigo 170, inciso IV).

Bem diversa será a doação de verba para pagamento de transporte aéreo de todos os participantes, incluindo acompanhantes, acrescido de hospedagem, alimentação e despesas de telefone, bebidas e alimentos que se encontrem na geladeira do apartamento. Em poucas palavras: tudo é para duas ou mais pessoas. Estas são dádivas que extrapolam os limites da razoabilidade. O interesse do doador não é simplesmente o de colaborar com um evento e receber, em contrapartida, referência nos folders ou cartazes, o que resulta em divulgação positiva de seu nome. Não. Seu escopo é conquistar a simpatia dos beneficiários, na esperança de que isto acabe por influenciar os julgamentos.

É impossível elencar as inúmeras situações em que os limites ficam bem ou mal definidos. Todavia, é possível afirmar que algumas situações revelam, à evidência, o objetivo de favorecimento. Por exemplo, aquele que financia algo que esteja fora do bom senso, com certeza espera alguma coisa em troca. E nesta área de contornos imprecisos e indefinidos, em que inexistem códigos ou normas administrativas, a opinião de uma pessoa experiente e de boa índole pode ser mais importante que as mais complexas e teóricas discussões acadêmicas.

Por que se financia

Como sempre, duas são as formas de encarar a questão. Ambas revelam algum tipo de interesse, mas este não é, necessariamente, mal. A razão de financiar pode ser incensurável e estar dentro de padrões éticos.

A primeira hipótese é a de um interesse legítimo. O doador considera importante um bom relacionamento institucional com as autoridades em geral e se dispõe a colaborar com elas. Portanto, participa de alguma forma sem que, com isto, pretenda ou tenha a ilusão de receber algo em troca, a não ser o respeito recíproco. Por exemplo, ninguém presumirá que um banco público, que recebe depósitos no Judiciário, espere vencer as ações porque promoveu ou apoiou um evento. Aliás, se alguém for examinar as estatísticas judiciárias de ações dos bancos públicos, verá que eles saem vencidos na grande maioria.

A segunda hipótese, ainda dentro de um interesse legítimo, é a de um determinado grupo ou organização que crê estar do lado do bom Direito e, por isso, deseja expor sua tese a quem decidirá suas causas. Isto é mais comum do que se imagina. A complexidade da vida moderna faz com que os juízes tenham que decidir questões cada vez mais complexas. Não é censurável a conduta de quem pretenda levar aos julgadores a opinião de técnicos ou juristas capacitados. Isto pode ocorrer, por exemplo, em litígios envolvendo economia, tema a cada dia mais importante no Poder Judiciário. Mas, neste caso, deve ser possibilitada a presença de doutrinador que adote posição contrária, estabelecendo-se a mais ampla discussão.

Em síntese, o porquê do financiamento está diretamente ligado ao interesse de convencer aqueles que têm poder de decisão. Este financiamento não deve, todavia, fugir dos padrões éticos e constituir-se em dádiva sem causa, hipótese em que estará evidenciado o objetivo de favorecimento a ensejar legítima repulsa social, além de responsabilidade administrativa do beneficiário.

Situações inadmissíveis

Neste campo de ação tão pobre de estudos, lembrado apenas, vez por outra, por notícias de jornais, inexistente um Código de Ética da magistratura a aclarar eventuais dúvidas (o Conselho Nacional de Justiça, em boa hora, está normatizando a matéria, conforme sítio www.cnj.gov.br), é mais fácil apontar o que é ou não razoável a fornecer conceitos e análises teóricas. Assim, é possível concluir que:

a) Não é admissível que uma entidade, com interesse direto no desfecho de ações sobre certa matéria, promova o financiamento de congressos, cursos ou seminários em que os participantes serão aqueles que julgarão as causas, inviabilizando a discussão da tese oposta;

b) Não é admissível que o patrocinador de um congresso suporte despesas de familiares ou acompanhantes, já que um evento deste tipo tem a presunção de ser profissional e não de lazer;

c) É admissível que tal tipo de evento de realize em um hotel típico de lazer, porém, em tal hipótese, ficará sempre a dúvida sobre estarem ou não os presentes a participar de uma atividade de interesse público ou a aproveitar para participar de uma atividade turística;

d) Realizando-se o evento em local turístico de qualquer natureza, nada recomenda a exibição de veículos oficiais a levar e a trazer participantes, fazendo crer aos demais hóspedes que se trata de puro abuso do dinheiro público. Recorde-se o sucedido em Florianópolis, nos anos 80, quando a população atacou uma alta personalidade de um tribunal superior de Brasília, que utilizava veículo oficial no seu veraneio. Carros oficiais, em tais locais, só se justificam para levar as mais altas autoridades ou um convidado especial.

e) O local onde se realiza o evento deve ser antes investigado, não sendo aconselhável que seus diretores sejam réus de ações penais ou mesmo que a pessoa jurídica, que participa do evento, seja alvo de ações na Justiça.

f) Não é raro que, em tais eventos, promovam-se sorteios de brindes. Todavia, foge totalmente do razoável que se façam sorteios de bens de valor, como televisões ou aparelhos eletrônicos;

g) Juízes no Brasil têm todas as garantias constitucionais para bem exercer suas funções e, em contrapartida, sofrem um controle cada vez mais rígido da sociedade, razão pela qual se revela inadequado compará-los com outras carreiras ou profissões (médicos, por exemplo), por mais importantes que sejam, que recebam benefícios para promover seus congressos.

Conclusão

Nada impede que entidades públicas ou particulares financiem cursos, congressos, seminários, estágios e outras formas de comprovado crescimento profissional de magistrados ou de servidores públicos. Ao inverso, elas devem ser estimuladas como forma de capacitação e aprimoramento.

Todavia, os responsáveis pela organização devem ter em mente que o menor desvio na zona cinzenta entre o correto e o incorreto pode gerar revolta social, críticas através dos meios de comunicação e até responsabilidade administrativa (Lei Complementar 35, de 14/3/1979, artigo 44), com sérios danos à imagem do Poder Judiciário, hoje, mais desgastada do que nunca.

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