Estado policial

Operações mostram que lei dos grampos caiu no esquecimento

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17 de junho de 2007, 0h00

Apesar de o ministro da Justiça, Tarso Genro, ter afirmado que há escutas telefônicas de menos, a realidade é que há escutas telefônicas demais. As investigações policiais atuais se baseiam quase que exclusivamente na bisbilhotice de conversas. Hurricane, Navalha, Têmis e Xeque-Mate estão aí para provar isso. E provam, também, que a lei que regula as escutas telefônicas tem sido reiteradamente desconsiderada.

Diz a Lei 9.296, de julho de 1996, que a interceptação de conversas telefônicas só é permitida quando houver indícios razoáveis de participação em algum crime que possa resultar em pena de reclusão e quando não houver outra maneira de investigar. Ou seja, o grampo é exceção e, para ser usado, tem de haver suspeita fundamentada de envolvimento do alvo grampeado em um crime. Não é o que se observa hoje. As últimas operações da Polícia Federal foram baseadas em grampos telefônicos, cujo conteúdo vazou e foi divulgado pela imprensa.

Não bastassem as evidências, as palavras do presidente da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), Marcos Vinício de Souza Wink, confirmam a regra do grampo para as investigações. “De certa forma, o grampo é a principal maneira de investigação. Escuta virou regra e não tinha como ser diferente”, diz. O advogado criminalista Luís Guilherme Vieira, acostumado a defender clientes alvo de grampos telefônicos, também confirma que a gravação das conversas virou regra. Mais ainda: as escutas perderam o pudor. “Vemos inquéritos que nascem de grampos. Ou seja, começa-se a monitorar conversas sem ao menos ter aberto o inquérito.”

A Polícia Federal não se manifesta sobre o assunto. Sua assessoria de imprensa apenas informa que a gravação de conversas é apenas uma das muitas técnicas usadas pela PF, “que não é obrigada a explicar para a sociedade como investiga”. Segundo a assessoria de imprensa, essa “explicação” poderia prejudicar futuras investigações. Assim, a Polícia Federal arruma a sua saída para não precisar justificar o exagero no uso de grampos e do temido Guardião — equipamento usado pela PF com capacidade para grampear centenas de telefonemas.

A PF tem outro álibi: quem autoriza os grampos é a Justiça, como manda a lei. Mais do que isso. De acordo com o presidente da Fenapef, a Justiça parece não ser tão criteriosa para analisar os pedidos de monitoramento de conversas alheias. “O nível de credibilidade da PF é tão grande que é difícil um juiz negar um pedido de escuta.”

Essa confiança cega dos juízes resulta em erros. O episódio pelo qual passou o advogado Roberto Podval prova a ocorrência de equívocos. Podval responde pela defesa de figurões como o doleiro Hélio Laniado e o empresário Sérgio Gomes da Silva, o Sombra. Recentemente, o celular funcional de um estagiário de seu escritório foi grampeado. “O grampo não tinha nada a ver. Foi um equívoco”, diz o advogado. Segundo ele, quando o grampo foi descoberto, o próprio delegado que solicitou a escuta não soube explicar o que ocorreu. Um engano, sem dúvida.

Roberto Podval conta que não tem porque “criar caso” sobre o episódio. “Se ainda fosse o meu celular, tudo bem. Mas foi o de um estagiário”, justifica. Aos olhos da sociedade, no entanto, o equívoco teria de soar como um alarme. Ele mostra que a Polícia se confunde na hora de pedir autorização para monitorar e que a Justiça dá a autorização.

Em fevereiro de 2004, em artigo publicado na Consultor Jurídico, o delegado de Polícia Federal Antônio Rayol, também fundador do Instituto Brasileiro de Direito e Criminologia, já reconheceu do abuso de grampos nas investigações da famigerada Operação Anaconda. “A pródiga safra relativamente recente de sensacionais escândalos, alguns verdadeiros — outros nem tanto — tem sido possibilitada pelo uso banal de interceptações telefônicas, alçadas à categoria de panacéia milagrosa, ao contrário do que estabelece a Lei 9.296.”

A lei a que se refere o delegado também determina que as gravações durem, no máximo, o período de 15 dias, “renovável por igual tempo uma vez comprovada à sua redução a termo”. No dia a dia, não é isso o que acontece. O monitoramento dura longos meses, até anos. São tantas horas de gravação que outro dispositivo da lei acaba tendo de ser mitigado. É aquele que diz que as gravações têm de ser transcritas e anexadas ao processo. Em 2004, o Supremo Tribunal Federal considerou que a lei não exige a transcrição integral das interceptações telefônicas.

Recentemente, os ministros do Supremo tiveram de analisar a mesma questão. O desembargador Carreira Alvim, acusado de participar do esquema de venda de sentenças para beneficiar caça-níqueis, investigado durante a Operação Hurricane, pediu ao Supremo Habeas Corpus com a alegação de que a denúncia contra ele não trazia a transcrição das escutas, apenas trechos selecionados pelo Ministério Público.

A discussão provocou um racha na corte e foi definida — em caráter provisório — pelo voto de desempate da presidente do tribunal, ministra Ellen Gracie. O ministro Marco Aurélio, relator e um dos votos vencidos, reafirmou o que já está escrito na lei: grampo é exceção, e não regra. Ele enfatizou que a transcrição tem de ocorrer, já que as possíveis provas obtidas com as escutas têm de valer para as duas partes, e não apenas para a acusação. “Vale dizer que o conteúdo da fita magnética há de ser degravado, há de ser passado para o papel, viabilizando-se, com isso, a visão conjunta, a visão do grande todo, no que envolvido diálogo, seguindo-se o auto circunstanciado.”

Marco Aurélio também reafirmou outro aspecto da lei que estaria sendo desrespeitado: o monitoramento de conversas telefônicas pode durar 15 dias, prorrogáveis por mais 15 e só. Nada além disso. Não é o que aconteceu, por exemplo, na Operação Hurricane, alvo das críticas do ministro. “Em vez de haver autorização de escuta pelo prazo de quinze dias, ‘renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova’ — é o texto legal —, projetou-se a extravagante forma de levantamento de dados de modo praticamente indeterminado.”

As horas de gravação feita por tempo indeterminado tornam, sem dúvida, a sua transcrição quase que inviável. Um ano de monitoramente de conversas demoraria, na melhor das hipóteses, outro para ser transcrito.

A pergunta que surge com uma olhadela na legislação e outra nas operações da Polícia Federal é: os juízes, responsáveis por fazer cumprir a lei, autorizam o seu descumprimento? Afinal, se há abusos nos grampos, até que se prove o contrário, todos foram autorizados pela Justiça.

A resposta das associações de classe é que não há desrespeito algum. O monitoramento de conversas telefônicas é muito — e devidamente — usado porque os crimes hoje estão cada vez mais sofisticados. Crime organizado, corrupção, lavagem de dinheiro. Tudo isso, dizem as entidades, não existia antes. Com a evolução desses crimes, não há mais que se falar na visão romântica da Polícia que dá a cara à tapa e sai às ruas nas escuras em busca de suspeitos.

“Há crimes, como a corrupção, que são difíceis de obter provas. Não há recibos nesses crimes”, diz Walter Nunes, presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe). “Sou juiz e conheço juiz. Há uma extrema cautela para determinar a gravação”, completa. “Hoje, é praticamente impossível investigar sem o grampo de telefone. A criminalidade se sofisticou. É um fenômeno da modernidade”, corrobora Rodrigo Collaço, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).

Ambos reagem às críticas de que a Polícia Federal não investiga mais, apenas monitora conversas. A Federação dos Polícias Federais, Fenapef, também rebate as acusações. A Polícia Federal continua, sim, investigando. O grampo apenas orienta o que, onde e como investigar. Ou seja, primeiro, grava-se a conversa. A partir de então, pode-se descobrir quais lugares o interlocutor freqüenta e eventualmente acompanhar uma reunião sua com seus “parceiros criminosos”. Tudo isso sem o risco de se perder no caminho. Basta seguir as coordenadas da conversa gravada.

Recentemente, o ministro Tarso Genro — que disse que há escutas de menos — desengavetou um anteprojeto de lei que endurece a atual lei das escutas. O texto foi escrito por uma comissão durante a gestão do então ministro Márcio Thomaz Bastos. O advogado Luís Guilherme Vieira, que fez parte dessa comissão, aponta as falhas da legislação atual, que ele considera permissiva demais. A lei atual não diz, por exemplo, em quais crimes a escuta pode ser usada. Diz apenas que, se a pena for de reclusão, cabe o grampo.

O anteprojeto de lei engavetado é bem mais extenso que a lei atual. Mais específico, também. Lista, por exemplo, todos os crimes cuja investigação pode ser valer de escutas telefônicas. Tarso Genro encomendou uma nova versão desse texto que deve, agora, ser enviada ao Congresso Nacional. Uma vez aprovado, resta esperar que seja cumprido. A legislação em vigor não é.

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