Corte política

Tese de doutorado divide história do STF em sete fases

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10 de junho de 2007, 0h00

Uma tese de doutorado apresentada recentemente na Faculdade de Direito da USP divide a história do Supremo Tribunal Federal em sete fases. O trabalho foi feito pelo secretário de previdência complementar do Ministério da Previdência Social, o advogado Leonardo André Paixão.

A dissertação trata da atividade política exercida pelo Supremo de 1891 até a atualidade. Para o autor, o STF não só contribuiu para a definição do que é o interesse público brasileiro, mas também definiu os meios necessários para sua implementação.

Pela tese, a primeira fase do Supremo começou logo após sua instalação, quando a instituição definiu seu espaço no arranjo institucional brasileiro. Depois, veio a segunda fase, de 1897 a 1926, com a interpretação ampliada do Habeas Corpus para suprir a falta de norma processual, em período marcado por grande ativismo.

O terceiro ciclo teria começado a partir da Emenda Constitucional de 1926, período em que o STF passou a viver uma fase de contenção de sua função política, que se estendeu até 1945, durante todo o primeiro governo Vargas. Na avaliação do pesquisador, essa foi a fase em que o Supremo viveu os maiores atentados à sua independência.

O quarto momento se estendeu do final do Estado Novo até o início do regime militar de 1964 “e foi marcado pela sintonia entre as decisões da corte e dos demais órgãos de soberania”.

A partir de 64, teve início uma fase de enfrentamento, “sendo marcada pela resistência do Supremo contra algumas decisões do regime militar”. Essa fase — assegura o pesquisador — terminou com a edição do AI-5, em dezembro de 1968, “porque daí por diante a corte sofreu uma intervenção, com o afastamento de alguns ministros e, em seguida, com o esvaziamento de sua competência”.

Atualmente, o Supremo “vem experimentando a sétima fase no exercício de sua função política. A partir da restauração e ampliação de sua competência, que ocorreu desde a promulgação da Constituição de 1988”.

O estudioso assegura que o “Supremo Tribunal Federal tem legitimidade para exercer função política, legitimidade essa que deriva de diferentes aspectos de sua conformação institucional, como o fato de ser instituído pela Constituição, o modo de escolha de seus membros e a maneira pela qual a corte delibera”.

“O STF, o mais discreto e o menos estudado dos órgãos de cúpula dos Poderes da República, nem por isso foi pouco importante para a vida nacional. Discreto como soem ser os magistrados, mas responsável por decisões fundamentais, como costumam ser os políticos. Não é possível compreender a história republicana brasileira, sem levar em conta o papel desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal”, conclui.

O vice-presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, fez parte da banca examinadora da tese. O paulista Leonardo Paixão, 37 anos, é secretário de previdência complementar do Ministério da Previdência Social. É advogado, doutor em direito de estado pela USP e gestor público do Ministério do Planejamento.

Leia resumo e conclusão da tese de doutorado

RESUMO

Função política do Estado é a atividade que órgãos instituídos pela Constituição exercem no âmbito de sua competência, tendo por objetivo preservar a sociedade política e promover o bem comum, e que consiste em determinar, mediante a livre interpretação de normas constitucionais, o que é o interesse público e quais são os meios necessários à sua implementação. A função política é desempenhada por diversos órgãos e poderes, inclusive pelos tribunais constitucionais. Os tribunais constitucionais exercem função política, basicamente, em relação a quatro grandes temas: separação de poderes, federalismo, direitos fundamentais e funcionamento das instituições democráticas. O exercício da função política pelos tribunais constitucionais possui características específicas. Os tribunais constitucionais têm legitimidade para exercer função política, apesar de seus integrantes normalmente não serem escolhidos pelo voto popular. No desempenho de função política, os tribunais constitucionais devem observar limites. No Brasil, o órgão que exerce o papel de tribunal constitucional é o Supremo Tribunal Federal. O Supremo Tribunal Federal, ao longo de sua história, desde sua instalação, em 1891, até os dias atuais, contribuiu para a definição do que é o interesse público, bem como para a definição dos meios necessários para sua implementação. Portanto, exerceu função política. Foram identificadas sete fases na história do Supremo Tribunal Federal. Em algumas delas, o Supremo Tribunal Federal exerceu função política mais ativamente. Em outras fases, limitou-se a confirmar decisões adotadas por outros órgãos de soberania. O Supremo Tribunal Federal tem legitimidade para exercer função política. Sua jurisprudência demonstra também que, no exercício da função política, o Supremo Tribunal Federal observou limites.

Conclusão

O tema das funções do Estado é bastante antigo, remontando à obra de pensadores da Antiguidade, como Aristóteles, Políbio e Cícero. No século XVII a questão das funções do Estado foi abordada por Locke. Posteriormente, chegou a seu desenho mais conhecido na obra de Montesquieu, de meados do século XVIII. Contudo, a tripartição do poder nos ramos Legislativo, Executivo e Judiciário jamais foi aplicada nos exatos termos em que foi formulada. A primeira aplicação prática dessa doutrina se deu na Constituição norte-americana de 1787. E nela já foram inseridas modificações significativas da doutrina de Montesquieu para adaptá-la à realidade dos Estados Unidos, como a substituição do monarca pelo Presidente da República.

Ao longo do século XX, diversos pensadores se debruçaram sobre o tema das funções estatais, apresentando novas abordagens do tema em razão das novas realidades políticas e constitucionais vivenciadas desde a elaboração do texto de Montesquieu.

Passando ao largo da controvérsia sobre qual vem a ser a formulação da doutrina da separação de poderes que melhor reflete os arranjos político-institucionais atuais, pode-se afirmar com segurança que existe uma função do Estado – denominada função política – que consiste basicamente em optar para preservar a existência do Estado, no plano externo, bem como promover o bem comum, no plano interno, através da definição do interesse público e dos meios para atingi-lo, mediante a concretização das disposições fundamentais da Constituição.

A função política é exercida não apenas pelos órgãos imediatamente representativos da vontade popular, como Congresso Nacional, Parlamento e Presidência da República, mas também pelas cortes constitucionais. De um modo geral, os órgãos de soberania encarregados do exercício de função política são instituídos pela Constituição, que também define sua competência. Também são indicados na Constituição os procedimentos por meio dos quais ocorre o exercício da função política. Quanto ao seu conteúdo, a função política é exercida em relação a temas fundamentais para a preservação do Estado e a promoção do bem comum. Seu desempenho deve se dar em campo delimitado pela Constituição, mas normalmente não é sujeito a prazos.

No caso da função política exercida por tribunais constitucionais – seja por aqueles inseridos na estrutura do Poder Judiciário, como seu órgão de cúpula, seja por aqueles colocados estruturalmente fora do Poder Judiciário, como órgão de soberania autônomo – normalmente a atuação depende de provocação pelos interessados, e as decisões precisam ser públicas e motivadas.

O exercício da função política, pelos tribunais constitucionais, está especialmente concentrado em alguns temas de grande relevância para a conformação das instituições políticas e jurídicas da sociedade. Assim, essa função é exercida, sobretudo, em relação à separação de poderes, ao federalismo, aos direitos fundamentais e ao funcionamento das instituições democráticas.

Embora os integrantes dos tribunais constitucionais não sejam eleitos, o exercício da função política não implica violação ao princípio democrático. De fato, a legitimidade decorre de outras características dos tribunais constitucionais, como seu modo de decidir, o modo de escolha de seus integrantes e o perfil dos escolhidos.

Ainda que tenham legitimidade para exercer função política, os tribunais constitucionais devem respeitar limites no exercício dessa competência. De um lado, limites que eles mesmos se impõem, como, por exemplo, a não deliberação a respeito de questões consideradas meramente políticas e a auto-contenção diante de questões decididas por outros órgãos com intensa participação da sociedade na questão debatida. De outro lado, limites que são impostos ao tribunal constitucional por outros órgãos e instituições, como é o caso daqueles limites decorrentes da visão de mundo predominante na sociedade, de normas constitucionais cujo conteúdo é incompatível com o exercício de função política e de matérias que a Constituição expressamente exclui da competência do tribunal constitucional.

No Brasil, desde a proclamação da República, o órgão encarregado de desempenhar o papel de tribunal constitucional é o Supremo Tribunal Federal.

A análise da jurisprudência centenária do Supremo Tribunal Federal demonstra que ele sempre exerceu função política. Ao lado dos demais órgãos de soberania, contribuiu para a preservação da sociedade política e para a promoção do bem comum. Colaborou para definir, em cada situação, o que é o interesse público, bem como para determinar quais são os meios necessários para sua implementação.

A análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal permitiu identificar sete fases na sua atuação. Uma fase inicial, abrangendo os primeiros anos do Tribunal, desde sua instalação, que foi marcada pela procura de seu espaço no arranjo institucional brasileiro. Em seguida, uma fase de ampliação de seu papel institucional, que se estendeu aproximadamente de 1897 a 1926, durante a qual o Supremo interpretou ampliativamente o instituto do habeas corpus para suprir a falta de norma processual, em período marcado por grande ativismo. A partir de Emenda Constitucional de 1926 à Constituição de 1891, o Tribunal passou a viver uma fase de contenção de sua função política, que se estendeu por todo o período do primeiro governo Vargas, até 1945. Durante esta fase, sobretudo entre 1930 e 1931, a Corte viveu o período em que sofreu os maiores atentados à sua independência. A quarta fase do Supremo Tribunal Federal, quanto ao exercício de função política, se estendeu do final do Estado Novo até o início do regime militar de 1964, e foi marcada pela sintonia entre as decisões da Corte e dos demais órgãos de soberania. A partir de 1964, pelo contrário, teve início uma nova fase de enfrentamento, sendo marcada pela resistência do Supremo Tribunal Federal contra algumas decisões do regime militar. Esta fase terminou com a edição do AI-5, em dezembro de 1968, porque daí por diante a Corte sofreu uma intervenção, com o afastamento de alguns ministros e, em seguida, o esvaziamento de sua competência. Por fim, o Supremo Tribunal Federal vem experimentando a sétima fase no exercício de sua função política, a partir da restauração (e ampliação) de sua competência, que ocorreu desde a promulgação da Constituição de 1988.

Vista no seu conjunto, a análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal também revelou que a Corte alternou períodos em que foi um empecilho para propósitos autoritários de governantes, e períodos em que agiu de forma sintonizada com os poderes eleitos. Na maior parte do tempo, assumiu a parte que lhe coube no exercício da função política, embora possa até ser acusada de omissão em alguns momentos importantes da história brasileira, e certamente tenha sido impotente para preservar o Direito em outros.

Nos períodos de autoritarismo, durante o primeiro governo Vargas e durante o regime militar iniciado em 1964, houve uma grande pressão sobre o Supremo Tribunal Federal. Em ambos os casos, a Corte resistiu o quanto pôde. Já nos períodos de pujança democrática, o Supremo Tribunal Federal, reconhecendo a legitimidade dos representantes eleitos para definir o interesse público e para selecionar os meios adequados para sua implementação, portou-se, em geral, de modo contido, no que se refere ao exercício de função política. Deste modo, foi conservador em períodos de mudanças levadas a efeito por um grupo dominante, mas em geral aceitou as deliberações dos demais órgãos de soberania nos períodos de mudanças marcadamente democráticas.

O exame da função política exercida pelo Supremo Tribunal Federal ao longo da história republicana demonstra que sua atuação não constitui exceção ou aberração. Faz parte das atribuições da Corte a tarefa de contribuir, ao lado dos demais órgãos de soberania, para definição do interesse público e a escolha dos meios para implementá-lo.

O Supremo Tribunal Federal tem legitimidade para exercer a função política, legitimidade essa que deriva de diferentes aspectos de sua conformação institucional, como o fato de ser instituído pela Constituição, o modo de escolha de seus membros, a maneira pela qual a Corte delibera.

Por fim, o Supremo Tribunal Federal, apesar de ter legitimidade para exercer função política, está sujeito à Constituição e aos mecanismos de contenção do poder que ela contém. O Supremo observa limites no desempenho de sua atividade, como demonstra, por exemplo, a sua auto-contenção diante de determinadas questões políticas ou atos interna corporis.

O Supremo Tribunal Federal, o mais discreto e o menos estudado dos órgãos de cúpula dos Poderes da República, nem por isso foi pouco importante para a vida nacional. Discreto, como soem ser os magistrados, mas responsável por decisões fundamentais, como costumam ser os políticos. Não é possível compreender a história republicana brasileira sem levar em conta o papel desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal.

Leonardo André Paixão

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