Indício de autoria

Leia a decisão que acolheu denúncia no caso Gol

Autor

7 de junho de 2007, 0h00

Se a aeronave alvo de acidente não estiver vinculada às Forças Armadas, a competência para processar e julgar os responsáveis é da Justiça Federal e não da Justiça Militar. Com esse entendimento, o juiz Murilo Mendes, da Vara Federal Única de Sinop (MT), aceitou a denúncia contra quatro controladores aéreos e dois pilotos do jato Legacy.

Os seis são apontados pelo Ministério Público Federal como responsáveis pelo acidente entre o jato Legacy e o Boeing da Gol, que resultou na morte 154 pessoas, no dia 29 de setembro do ano passado — o maior acidente da história da aviação no país.

A denúncia foi aceita em 1º de junho. Os controladores aéreos Lucivando Tibúrcio de Alencar, Leandro José Santos de Barros e Felipe Santos dos Reis, e os pilotos americanos Joseph Lepore e Jan Paul Paladino foram denunciados pelo artigo 261 do Código Penal — por em perigo embarcação ou aeronave, própria ou alheia, ou praticar qualquer ato tendente e impedir ou dificultar navegação marítima, fluvial ou aérea. A pena é de dois a cinco anos de prisão. Com o agravante das mortes dos passageiros do avião da Gol, a pena pode chegar a seis anos. O crime é culposo.

O sargento da Aeronáutica do Cindacta-1, Jomarcelo Fernandes dos Santos, vai responder por crime doloso e de atentado contra a segurança de aeronaves. O juiz afirma na decisão que ficou comprovada a materialidade do crime (154 pessoas morreram, uma aeronave caiu e outra ficou danificada) e os indícios de autoria.

O juiz ainda determinou que embora estrangeiros, os pilotos Joseph Lepore e Jan Paladino terão de comparecer para o interregatório no Brasil, conforme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

Leia a decisão

PROCESSO Nº: 2006.36.03.006394-2

CLASSE: 15601 – INQUÉRITO POLICIAL

REQUERENTE : JUSTIÇA PÚBLICA

REQUERIDOS: JOMARCELO FERNANDES DOS SANTOS, LUCIVANDO TIBÚRCIO DE ALENCAR, LEANDRO JOSÉ SANTOS DE BARROS, FELIPE SANTOS DOS REIS, JOSEPH LEPORE E JAN PAUL PALADINO

DECISÃO

Trata-se de denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal, tendo como denunciados Jomarcelo Fernandes dos Santos, Lucivando Tibúrcio de Alencar, Leandro José Santos de Barros, Felipe Santos dos Reis (controladores de vôo), Joseph Lepore e Jan Paul Paladino (pilotos norte-americanos), todos qualificados na inicial acusatória, por suposta prática de condutas capituladas nos arts. 261, § 3º, c/c 263, do Código Penal Brasileiro e art. 261, § 1º, c/c art. 263, CP em concurso formal (art. 70 do CP), em relação a Jomarcelo Fernandes dos Santos.

Competência

O Ministério Público Federal, além dos dois pilotos norte- americanos, denunciou na Justiça Federal também os controladores de vôo. Entendeu o órgão ministerial que as condutas descritas na peça acusatória não podem ser enquadradas como crime militar porque a lei exige para tanto (art. 283 do Código Penal Militar) “a incidência de um regime jurídico propriamente militar sobre o veículo, aéreo ou aquático, objeto material da ação”. “Se esse veículo, exposto a perigo, não estiver especialmente vinculado às Forças Armadas”, assinala, “o fato será, sob a perspectiva do preceito em tela, atípico”.

Em primeiro lugar, cumpre fazer uma observação. O Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou, no início do inquérito, sobre a competência. Naquele momento, o procedimento de apuração tramitava na Justiça Estadual de Peixoto de Azevedo/MT. O MPF propôs medida cautelar na Justiça Federal requerendo a apreensão dos passaportes dos pilotos. No âmbito daquela ação, requereu ao Juiz Federal que solicitasse ao Juiz de Direito a remessa do inquérito, uma vez que estava configurada a competência federal. O Juiz Estadual recusou-se a remetê-lo. Instaurou-se, desse modo, um conflito de competência entre ambos, que foi solucionado pelo STJ.

A ementa do julgado ficou assim redigida:

“CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. MEDIDA CAUTELAR INOMINADA. CRIME COMETIDO A BORDO DE AERONAVE. INFRAÇÃO PENAL PRATICADA EM DETRIMENTO DE BENS, SERVIÇOS OU INTERESSE DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.


Em se tratando de crime praticado a bordo de aeronave ou em detrimento de bens, serviços ou interesse da União, a competência é da Justiça Federal, por força de comando constitucional.

Conflito de competência conhecido para declarar competente o Juízo Federal de Sinop/MT, o suscitante” (CC 72.283/MT, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura).

Em princípio, o problema relacionado com a competência não mais poderia ser reapreciado, sob pena de este Juízo incorrer em desrespeito à decisão da Corte Superior de Justiça que solucionou o conflito. Acontece que o incidente levado ao Superior Tribunal de Justiça tinha por objeto apenas saber se o inquérito deveria tramitar perante o Juízo Federal ou perante a Juízo do Estado. Nele não estava em discussão eventual competência militar. Embora constasse da decisão do Juiz Federal que então oficiava no feito a informação de que o caso envolvia também controladores de vôo, esse dado não foi objeto de deliberação no julgamento. E nem se poderia ter a questão por implicitamente resolvida. Se o STJ não se pronunciou de ofício, talvez foi porque ainda fosse muito cedo para fazê-lo – o inquérito mal acabara de ser instaurado. A solução dada no incidente vincula a primeira instância, portanto, somente no que diz respeito à competência federal – essa já fixada. Quanto à competência militar, está o Juízo livre para se manifestar em primeira mão.

A definição legal do que sejam crimes militares em tempo de paz encontra-se no art. 9º do Código Penal Militar:

“Art. 9º. Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

I – Os crimes de que trata este Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial;

II – Os crimes previstos neste código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:

a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado.

b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado ou civil;

c) por militar em serviço, ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil;

d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob administração militar, ou a ordem administrativa militar;

f) revogado.

III – Os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:

a) contra o patrimônio sob administração militar ou contra a ordem administrativa militar;

b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de ministério militar ou da justiça militar, no exercício de função inerente ao cargo;

c) contra militar em formatura, ou durante o serviço de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;

d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior.”


A técnica utilizada pelo legislador é a seguinte: 1) a aplicação do inciso I exige ou que não exista tipificação equivalente na lei penal comum ou, se existir, que o crime correspondente seja previsto “de modo diverso”; 2) a incidência do inciso II dá-se naquelas situações em que a lei penal comum preveja também o delito inscrito no Código Penal Militar “com igual definição”, sendo exigida, nesse caso, a presença cumulativa das hipóteses arroladas nas alíneas que lhe dizem respeito; 3) pela previsão do inciso III fica reservada a punição pela Justiça Militar daquelas condutas que, estejam ou não contempladas nos dois incisos anteriores, venham a ser praticadas por militar ou civil contra militares ou contras “as instituições militares”.

A incidência do inciso III pode ser descartada de pronto. As condutas que a denúncia reputa praticadas pelos controladores de vôo não se dirigiram contra nenhum militar (nem avião nem pessoas) e nem contra a “instituição militar”.

Quanto ao inciso II, sua inaplicabilidade aos controladores de vôo decorre da constatação de que os crimes praticados por militares – e, nessa hipótese, é só por militares mesmo – devem ser previstos com “igual definição na lei penal comum”. Para que se possa ter a compreensão do alcance do vocábulo (“igual definição”), basta citar como exemplos os crimes de estelionato e roubo, previstos tanto no Código Penal Militar quanto no Código Penal. Eles têm a mesma redação, exceto, quanto ao roubo previsto no CPM, pela utilização de uma variação de frase que altera o estilo mas não a estrutura do tipo.

Não há “igual definição”, entretanto, entre o crime do art. 283 do Código Penal Militar e o crime do art. 261 do Código Penal.

Veja-se:

Artigo 283 do CPM:

“Expor a perigo aeronave, ou navio próprio ou alheio, sob guarda, proteção ou requisição militar emanada de ordem legal, ou em lugar sujeito à administração militar, bem como praticar qualquer ato tendente a impedir ou dificultar a navegação aérea, marítima, fluvial ou lacustre sob administração, guarda ou proteção militar.

Pena – Reclusão, de dois a cinco anos.

§ 1º Se do fato resulta naufrágio, submersão ou encalhe do navio, ou a queda ou destruição da aeronave.

Pena – Reclusão, de quatro a doze anos”.

§ 2º. No caso de culpa, se ocorre o sinistro:

Pena – Detenção, de seis meses a dois anos.”

Artigo 261 do CP:

“Expor a perigo embarcação ou aeronave, própria ou alheia, ou praticar qualquer ato tendente e impedir ou dificultar navegação marítima, fluvial ou aérea.

Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.

§ 1º Se do fato resulta naufrágio, submersão ou encalhe de embarcação ou a queda ou destruição da aeronave:

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos”.

§ 2º Aplica-se, também, a pena de multa, se o agente pratica o crime com o intuito de obter vantagem econômica, para si ou para outrem.

§ 3º No caso de culpa, se ocorre sinistro:

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos.”

Os tipos penais são parecidos, mas não são iguais. O crime militar, por conter elementos normativos não existentes no crime comum, dele se diferencia não apenas de modo circunstancial. Cuida-se, ao contrário, de diferença substancial.


Damásio de Jesus, ao discorrer sobre a “análise e elementos do tipo”, diz o seguinte: “os elementos do tipo podem ser: a) objetivos – referentes ao aspecto material do fato; b) subjetivos – concernentes ao estado anímico ou psicológico do agente; c) normativos – referentes à regra de antijuricidade”. Em seguida, explica o que vêm a ser os elementos normativos: “Os elementos normativos do tipo podem apresentar-se sob a forma de franca referência ao injusto (“indevidamente”, “sem justa causa”, “sem as formalidades legais”), sob a forma de termos jurídicos (“documento”, função pública”, “funcionário”) ou extrajurídicas (“mulher honesta”, “dignidade”, “decoro”, “saúde”, “moléstia”) (in Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1993, pp. 239/240).

A mesma idéia de que os elementos normativos do tipo compõem a estrutura do delito pode ser encontrada em Cézar Roberto Bittencourt. “Como o tipo penal abrange todos os elementos que fundamentam o injusto”, observa, “na descrição típica está implícito em juízo de valor. Assim o tipo penal não se compõe somente de elementos puramente objetivos, mas é integrado, por vezes, também de elementos normativos e subjetivos” (in Manual da Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2002, pp. 202/3).

Já seria suficiente para a defesa do argumento de que os crimes não são iguais – não têm, segundo a lei militar, “a mesma definição legal” – a circunstância de que a doutrina trata os elementos normativos (de que são exemplos as expressões “sob guarda, proteção ou requisição militar”, ou “lugar sujeito à administração militar”) quando aborda os “elementos do crime” – elementos substanciais dos delitos, que os fazem diferentes entre si, não meros aspectos circunstanciais e secundários.

Mas não é só isso. O legislador do Código Penal Militar, quando pretendeu cumprir a cláusula da “mesma definição legal” exigida no inciso II do art. 9º, cuidou de reproduzir a redação das figuras delitivas constantes do Código Penal, apenas com eventuais modificações de linguagem em um ou outro delito, que não comprometem, contudo, porque inalterada a estrutura típica, o critério de fixação da competência militar. Ninguém diria, por exemplo, que o crime de roubo não encontra “a mesma definição legal” na lei penal comum só porque no CPM consta “mediante emprego ou ameaça de emprego de violência contra pessoa”, enquanto que no Código Penal está escrito “mediante grave ameaça ou violência a pessoa”.

E a diferença entre os dois tipos penais fica ainda mais compreensível quando se constata que a inclusão daquelas “cláusulas normativas” (sob proteção, sob guarda etc.) no crime do art. 283 do CPM tem o sentido inequívoco de fixar-lhe a natureza militar. Essa conclusão é respaldada pela doutrina especializada. Jorge César de Assis, quando analisa o peculato do CPM, diz que o delito está “previsto tanto no Código Penal comum quanto no militar”; quando comenta a calúnia militar, observa que ela “encontra identidade com o art. 138 do CP comum; quando discorre sobre a difamação, faz uso da mesma locução – encontra identidade; quando interpreta o art. 283 do Código Militar – que interessa ao caso – observa que ele é previsto “em termos semelhantes” no Código Penal. Semelhante não é igual.

Embora não se pudesse, em princípio, dar maior relevância ao que viesse a ser talvez apenas uma imprecisão lingüística, o fato é que o doutrinador afirma que o sujeito ativo “pode ser qualquer pessoa, incluindo-se o proprietário da embarcação ou aeronave. Não se exige a condição de militar do agente, que pode, lógico, ser civil” (in Comentários ao Código Penal Militar. Curitiba: Juruá, 2007, p. 621). Se assim é; se o delito pode ser praticado por militar ou civil, então já se pode descartar as hipóteses previstas no art. 9º, II, do CPM, uma vez que elas contemplam apenas delitos praticados “por militar”.

Não há, portanto, como se acolher a tese – sustentada no inquérito pelo ilustre Delegado da Polícia Federal que esteve à frente das investigações – de que o julgamento dos controladores de vôo pela Justiça Militar estaria autorizado pela inscrita no art. 9º, II, b, do CPM (“Os crimes previstos neste código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados: …b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado ou civil”). Embora ali se confira natureza de crime militar inclusive ao fato delituoso que tem civil como sujeito passivo, ao estabelecimento da competência militar não basta a mera correspondência entre os dois crimes, exigindo a lei, ao contrário, a “mesma definição legal”, hipótese inocorrente.


Admita-se, no entanto, em consideração ao fato de que matéria aqui tratada é inédita e que sobre ela não há precedente, que se pudesse utilizar a regra do art. 9º, II, b, para a fixação da competência da Justiça Castrense. Admita-se que os crimes são iguais – têm “a mesma definição legal”. A conduta dos militares, nesse caso, encontraria adequação típica no art. 283 do CPM, com a qualificadora do art. 277 – prevista para a hipótese em que do desastre ou sinistro resulte morte a alguém (art. 285).

Os fatos descritos na peça acusatória, todavia, não se subsumem àquele tipo penal. Ali fala-se em “expor a perigo aeronave sob guarda, proteção ou requisição militar, ou em lugar sujeito à administração militar. Sob guarda não estavam os aviões. Guarda é “ato ou efeito de guardar; vigilância, cuidado, guardamento” (Aurélio). Também não estavam sob proteção militar. Tampouco há notícia de que estivessem sob requisição militar. Além do mais, essas três espécies de restrições administrativas devem estar embasadas em “ordem legal” – ordem legal específica evidentemente. Alguém hierarquicamente competente deve dizer claramente que esta ou aquela aeronave encontra-se, por alguma circunstância qualquer, guarnecida pela autoridade militar brasileira, por ela protegida ou requisitada. Nada disso encontra-se no processo. Os aviões estavam livres da incidência desses gravames administrativos.

A única possibilidade plausível em favor do enquadramento típico como crime militar seria a alegação de que as aeronaves estavam “em lugar sujeito à administração militar”.

O Código Brasileiro de Aeronáutica – Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986, diz, em seu art. 12, que, com ressalva de atribuições específicas, fixadas em lei, “submetem-se às normas (art. 1º, § 3º), orientação, coordenação, controle e fiscalização do Ministério da Aeronáutica: I) a navegação aérea; 2) o tráfego aéreo…”. A Lei Complementar nº 97/99, “que dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas”, afirma, de sua vez, competir à Aeronáutica “orientar, coordenar e controlar as atividades de Aviação Civil.”

O espaço aéreo, cujo controle é atribuído à aeronáutica não apenas para a preservação da soberania nacional mas também para a fiscalização das atividades da aviação civil de um modo geral, é, portanto, um espaço aéreo militarizado. Isso, aliás, não é mais novidade para ninguém. Desde a ocorrência do grave e trágico acontecimento de que agora se cuida nesta instância criminal, a sociedade brasileira acompanha intenso debate que se trava a respeito da conveniência de se transferir para os civis a incumbência de fiscalizar e controlar a navegação aérea. “Mais do que questões de momento”, diz matéria veiculada pela internet, “fica latente na longa exposição (exposição que não interessa ao exame do problema jurídico aqui enfrentado), a preocupação da FAB com a preservação do sistema de controle integrado”. “O controle do espaço aéreo brasileiro”, assinala o texto, “é militarizado desde sua criação, em 1946 (clipping. Planejamento. gov.br. Cláudio Dantas Sequeira e Sandro Lima. Correio Brasiliense). Uma das conseqüências imediatas da instituição do controle civil da aviação seria que os controladores passariam a ser subordinados “ao Ministério da defesa e deixariam, portanto, de responder ao comando militar” (www.estadao. com.br) “Contrariada, Aeronáutica deixa controle aéreo a órgão civil”).

A circunstância de estar o espaço aéreo brasileiro sujeito à fiscalização e controle da administração militar poderia levar à conclusão de que a conduta se adaptaria perfeitamente à exigência do tipo penal – que refere-se, como já afirmado, a “lugar sujeito à administração militar”. Seria apenas um problema de lógica elementar: “se os aviões estavam no espaço aéreo; se o espaço aéreo é controlado pela Aeronáutica; se o controle é uma forma de administração; então, está preenchido o requisito normativo inscrito no art. 283 do CPM”.

Essa espécie de interpretação tem o inconveniente de se apegar exclusivamente ao sentido literal do elemento normativo contido na norma penal (“lugar sujeito à administração militar”) e deve, por esse motivo, ser substituída por uma outra que tome em consideração critérios de natureza sistemática e teleológica. “Nada de exclusivo apelo aos vocábulos”, é a advertência (muito antiga mas plenamente válida) de Carlos Maximiliano. “O dever do juiz não é aplicar os parágrafos isolados e, sim, os princípios jurídicos em boa hora cristalizados em normas positivas” (in Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1988, p. 119).


Qual o sentido, então, que se poderia conferir à expressão “lugar sujeito à administração militar” sem esvaziar a sua significação como parâmetro de atração da competência militar? O sentido correto, capaz de preservar-lhe a integridade e de não lhe retirar completamente a eficácia, é aquele resultante de um critério de interpretação restritiva. A expressão “lugar sujeito à administração” deve ser compreensiva não dessa atividade genérica de controle que a Aeronáutica exerce sobre o espaço aéreo.

Para que haja incidência da norma de competência militar, a expressão deve compreender apenas aquelas situações em que o espaço aéreo porventura esteja, por motivos circunstanciais de tempo, modo ou lugar, sujeito à disciplina de alguma limitação administrativa específica de origem militar. Seria o caso, por exemplo, em que determinada parte do espaço aéreo estivesse momentaneamente interditado. Ou em uma hipótese em que todo ele sofresse uma interdição temporária. Quando se instaurasse um regime de administração especial dessa natureza, aí já não se poderia negar a competência militar.

Acaso não adotada a interpretação restrita, não se compreenderia a razão pela qual teria o legislador feito incluir no art. 283 do CPM as expressões “sob guarda, proteção ou requisição militar”. Se a redação do tipo inicia-se com três termos restritivos (“sob guarda, proteção e requisição militar”), aos quais depois se acrescenta uma cláusula de abertura, essa cláusula final (“lugar sujeito à administração militar”) deve ser interpretada em conformidade com as antecedentes, sob pena de torná-las completamente destituídas de significado. Se eu digo que o “lugar sujeito à administração militar” é todo o espaço aéreo nacional, não preciso dizer que o crime é de competência militar quando determinada aeronave esteja, por exemplo, sob guarda militar. Nem preciso dizer o mesmo no caso em que esteja sob proteção. Nem em outro em que estivesse sob requisição.

O simples fato de um determinado avião estar no céu já seria suficiente, por si só, sem necessidade de auxílio aos outros elementos normativos do art. 283 do CPM, para a fixação da competência militar. A interpretação abrangente, portanto, porque torna completamente inúteis as expressões iniciais, não se presta à solução do problema. Cumpre, a propósito, invocar mais uma vez o ensinamento de Carlos Maximiliano, perfeitamente aplicável ao caso: “Presume-se que a lei não contenha palavras supérfluas; devem todas ser entendidas como escritas adrede para influir no sentido da frase respectiva” (op. cit. p. 110). É da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, aliás, o entendimento de que os “crimes militares situam-se no campo da exceção. As normas em que previstos são exaustivas. Jungidos ao princípio constitucional da reserva legal – inc. XXXIX do art. 5º da Carta de 1988. Hão de estar tipificados em dispositivo próprio, a merecer interpretação restrita” (HC nº 72.022-6-PR, relator Ministro Marco Aurélio). Entendimento em tudo condizente, de resto, com a doutrina mais que autorizada: “Quando uma norma atribui competência excepcional ou especialíssima, interpreta-se estritamente; opta-se, na dúvida, pela competência ordinária” (op. cit., p. 265).

Não fosse suficiente a argumentação até aqui desenvolvida, a alegação de que o elemento normativo em questão não pode sofrer interpretação extensiva pode ser demonstrada por meio de um outro raciocínio. O art. 109, IX, da Constituição Federal atribui competência à Justiça Federal para processar e julgar “os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar”. A prevalecer o entendimento de que o crime do art. 283 do CPM é previsto de modo diverso na lei penal comum (tese que encontra amparo na doutrina, conforme já assinalado), chega-se então à conclusão de que a competência seria militar inclusive para processamento e julgamento dos pilotos denunciados, pois o inciso I do art. 9º do Código Militar admite que o sujeito ativo seja civil – “qualquer que seja o agente” – e o texto constitucional, quando dá competência federal aos delitos cometidos a bordo de aeronaves, excepciona aqueles sujeitos à jurisdição militar. Quer dizer: qualquer acidente aéreo seria processado e julgado na Justiça Militar, não importando a qualidade do agente, se militar ou civil!

Há uma consideração final a ser feita. “O Código Penal Militar foi instituído por Decreto, pela Junta Militar que exercia a Chefia do Poder Executivo no Brasil, visto que o A-I 16, de 14.10.1969, declarou vagos os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República. Por sua vez, o AI 5 assegurava que, decretado o recesso Parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica autorizado a legislar em todos as matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios” (César de Assis. Jorge. Comentários ao Código Penal Militar. Curitiba: Juruá, p. 17).


Assim nascido o Código, em momento histórico em que o poder político de comando da nação estava entregue aos militares, não seria sem sentido sustentar, com fundamento em uma exegese histórica, que o legislador de então pretendeu, ao incluir aquela cláusula aberta, transformar as questões criminais de aviação civil em um problema da Justiça Militar. Acontece que em Direito – e essa também é uma regra de hermenêutica – vale mais a intenção da lei do que a intenção do legislador. A lei, depois de editada, ganha autonomia, desvincula-se do seu criador e passa a ser interpretada com os critérios usuais oferecidos pela doutrina, pela jurisprudência ou por outra lei – a chamada interpretação autêntica. Essa eventual alegação, portanto, não resistiria também ela a um exame mais atento.

Ademais – e isso parece por demais evidente – se o legislador houvesse pretendido mesmo que a expressão “lugar sujeito a administração militar” fosse entendida como abrangente de todo o espaço aéreo, bastaria que a isso fizesse expressa referência. Em lugar daquelas quatro expressões que inscreveu no art. 283 do CPM, teria dito simplesmente que o militar que expusesse a perigo alguma espécie de aeronave localizada “no espaço aéreo nacional” seria julgado pela Justiça Militar. Só isso.

Recebimento da denúncia

É “assente a jurisprudência do STF em que, regra geral, o despacho que recebe a denúncia ou queixa, embora tenha também conteúdo decisório, não se encarta no conceito de “decisão”, como previsto no art. 93, IX, da Constituição, não sendo exigida a sua fundamentação; a fundamentação é exigida, apenas, quando juiz rejeita a denúncia ou queixa” (HC 86248, relator Ministro Sepúlveda Pertence, 08/11/2005). Caminha na mesma direção a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: “O despacho que receba a denúncia prescinde de fundamentação. Precedentes do STJ e do STF” (HC 39360/MG, relator Ministro Gilson Dipp, 28/03/2005). “Segundo se tem entendido pacificamente nos tribunais, não há necessidade de fundamentação do despacho de recebimento da denúncia ou queixa. Segundo esse entendimento, o juiz não pode antecipar o julgamento, cumprindo-lhe restringir-se a analisar as condições da ação e a existência, em tese, da infração penal” (Mirabete. Júlio Fabbrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, p. 140).

Estando mais que comprovada a materialidade (154 pessoas morreram, uma aeronave caiu e a outra, seriamente danificada, a muito custo conseguiu pousar), sendo suficientes os indícios de autoria, havendo a existência, em tese, de crime capitulado no Código Penal e estando cumpridas as exigências do art. 41 do CPP, recebo a denúncia e determino a citação dos acusados.

Redistribua-se como ação penal.

Designo os interrogatórios para as seguintes datas: dia 27 de agosto de 2007, às 14:00 horas, para os acusados JOSEPH LEPORE e JAN PAUL PALADINO; dia 28 de agosto de 2007, para os acusados JOMARCELO FERNANDES DOS SANTOS, LUCIVANDO TIBÚRCIO DE ALENCAR, LEANDRO JOSÉ SANTOS DE BARROS e FELIPE SANTOS DOS REIS.

A citação e a intimação dos pilotos norte-americanos devem ser realizadas em conformidade com as normas previstas no Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal (MLAT), assinado pelos Governos do Brasil e dos EUA, promulgado pelo Decreto nº 3.810/2001.

Embora estrangeiros, os acusados JOSEPH LEPORE e JAN PAUL PALADINO devem comparecer para o interrogatório no Brasil, não sendo admitida que o ato se dê no seu país de origem (EUA). Essa a orientação que se extrai de precedente do STJ em caso semelhante: “O Acordo Internacional do qual se cuida objetiva facilitar a cooperação e o combate a delitos por Brasil e Estados Unidos da América, quando necessária a prática de atos por um deles no interesse do outro. Não pretende, contudo, alterar a forma como os atos processuais são praticados no território do Estado, tanto que a legislação que pratica o ato sempre deverá ser respeitada. A citação e a intimação serão realizadas, no território estrangeiro, segundo a legislação daquele Estado; mas o interrogatório, se determinado que dever ser realizado no Brasil, seguirá as normas brasileiras” (HC 63.350, relator Ministro Félix Fischer).

Nomeio para traduzir as peças necessárias (denúncia e despacho de recebimento) o Dr. José Carlos Gallas, tradutor juramentado residente em Cuiabá/MT, que deverá realizar o trabalho no prazo de 07 dias.

Após a chegada da tradução, comunique-se, com a remessa dos documentos necessários, ao Excelentíssimo Sr. Ministro da Justiça do Brasil, para as providências necessárias à citação dos estrangeiros, uma vez que para “a República Federativa do Brasil, a Autoridade Central será o Ministério da Justiça” (Art. II, 2, do Decreto nº 3.810/2001).

Defiro o requerimento dos documentos solicitados pelo MPF.

Dada e repercussão do caso e considerando os incessantes pedidos que informação que, por isso mesmo, chegam diariamente a esta a Vara Federal, autorizo o Diretor de Secretaria a dar ciência da decisão –se preciso for, com o auxílio do setor de comunicação de Cuiabá – aos principais veículos de comunicação do país – televisões, jornais, revistas e portais da internet etc. Antes, porém, deve entrar em contato com os advogados dos acusados e com o representante do Ministério Público Federal.

Intimem-se e publique-se.

Sinop/MT, 1º de junho de 2007.

MURILO MENDES

Juiz Federal Substituto, com jurisdição plena na

Vara Única de Sinop-MT

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!