Prisão inconstitucional

Supremo confirma liberdade de depositário infiel

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6 de junho de 2007, 0h01

Enquanto o Supremo Tribunal Federal não decide sobre prisão civil do alienante fiduciário e do depositário infiel (RE 466.343), a Corte vem garantindo a liberdade das pessoas que têm decretos de prisão expedidos por este motivo. Foi assim com Marivaldo Adalberto Albuquerque, acusado de ser depositário infiel. A 2ª Turma do STF confirmou, nesta terça-feira (5/6), a liminar que garantiu liberdade ao acusado sob o argumento de que o Supremo caminha para declarar a inconstitucionalidade desse tipo de prisão.

O caso foi relatado pelo ministro Gilmar Mendes que, no mês de dezembro do ano passado, concedeu liminar em Habeas Corpus ao acusado. O empresário paulista teve sua prisão decretada por ter negociado 87 mil quilos de aço que estavam sob sua guarda, como fiel depositário, até que fosse feito o leilão do material.

Depois do pregão, a empresa arrematante exigiu a entrega do total do aço arrematado. O empresário não tinha mais o material. Por isso, foi expedido o mandado de prisão. A decisão de prendê-lo foi mantida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e pelo Superior Tribunal de Justiça.

A defesa apelou ao STF. No exame da liminar, Gilmar Mendes afastou a aplicação da Súmula 691, para evitar constrangimento ilegal. A decisão do ministro assegurou a suspensão imediata do decreto de prisão. A liminar foi confirmada nesta terça-feira pela 2ª Turma. “Considerada a plausibilidade da orientação que está a se firmar perante o Plenário desta Corte – a qual já conta com 7 votos – defiro a ordem para que sejam mantidos os efeitos da medida liminar”, afirmou Gilmar.

A inconstitucionalidade da prisão de depositário infiel está sendo discutida no julgamento do Recurso Extraordinário 466.343. A análise da causa foi interrompida em novembro de 2006, por pedido de vista do ministro Celso de Mello. O recurso questiona a validade da prisão civil por dívida. Sete ministros já votaram no sentido de reconhecer a inconstitucionalidade da prisão civil do alienante fiduciário e do depositário infiel, seguindo o voto do relator do recurso, ministro Cezar Peluso.

Leia o voto

05/06/2007 SEGUNDA TURMA

HABEAS CORPUS 90.172-7 SÃO PAULO

RELATOR : MIN. GILMAR MENDES

PACIENTE(S) : MARIVALDO ADALBERTO ABUQUERQUE OU

MARIVALDO ADALBERTO ALBUQUERQUE

IMPETRANTE(S) : BENEDITO DONIZETH REZENDE CHAVES

COATOR(A/S)(ES) : RELATOR DO HC Nº 68584 DO SUPERIOR

TRIBUNAL DE JUSTIÇA

R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – (Relator):

Trata-se de habeas corpus preventivo, com pedido de medida liminar, impetrado por BENEDITO DONIZETH REZENDE CHAVES, em favor de MARIVALDO ADALBERTO ABUQUERQUE, em que se impugna decisão monocrática proferida pelo Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, do Superior Tribunal de Justiça, no HC nº 68.584/SP (DJ 24.10.2006). Eis o teor do ato decisório ora impugnado:

Habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado pelo advogado Benedito Donizeth Rezende Chaves em favor de Marivaldo Adalberto Albuquerque, buscando o impetrante impedir a prisão do paciente como depositário infiel nos autos da Ação de Execução nº 612/2000, proposta por Dinaço Indústria e Comércio de Ferro e Aço Ltda. contra Grupoaço Comércio de Serviços Ltda. e contra Aparecido Benedito Moreira de Souza, em trâmite junto à Terceira Vara Judicial da Comarca de Santa Bárbara D’oeste/SP.

Aponta como autoridade coatora a Vigésima Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que denegou o HC nº 7070263-5 em acórdão assim ementado:

HABEAS CORPUS – EXECUÇÃO – BEM FUNGÍVEL -PRISÃO CIVIL – POSSIBILIDADE ANTE AS PECULIARIDADES DO CASO – Conquanto tenha o entendimento de que é descabida a prisão civil, quando decretada sem que seja oferecida oportunidade de substituição do bem fungível ou equivalente em dinheiro, a hipótese dos autos não permite a adoção de referido posicionamento, já que o paciente foi nomeado depositário em 24/08/2000, conservou adequadamente os bens até julho de 2002, quando se concretizou a perícia com a juntada de fotografias. Somente após o leilão e arrematação dos bens é que se perdeu o destino dos mesmos.


Assim, se em 2004 quando foi impedido o cumprimento da remoção porque os bens não foram localizados, ensejando o pleito do paciente para substituí-los por imóvel que afirmou ser de sua propriedade, porém sem prova ou o parcelamento do valor equivalente em quinze pagamentos mensais, não aceito pelo exeqüente, há de ser denegada a ordem de habeas corpus diante do rompimento da relação de fidelidade que deve existir entre o órgão judicante e o depositário. Ordem denegada” – (fl. 238).

Alega o impetrante que:

‘Em razão de execução forçada movida pela empresa DINAÇO INDÚSTRIA E COMÉRCIO DE FERRO E AÇO LTDA., o paciente aceitou o encargo de depositário de 87.500 (oitenta e sete mil e quinhentos) quilos de aço galvanizado; proposto embargos foram estes julgados improcedentes, havendo recurso, ainda pendente de julgamento; a credora extraiu carta de sentença, levando os bens à praça, sendo estes por ela arrematados; expedido mandado de remoção dos bens – a penhora ocorreu em agosto de 2000 – informou o paciente, por tratar-se de bens fungíveis, parte de seu estoque rotativo, já não mais os possuía, propondo o pagamento do débito em 10 (parcelas) ou a substituição das bobinas por imóvel de sua propriedade; a credora não concordou, requerendo a entrega total dos bens sob pena de prisão; o paciente foi citado por edital, estando na iminência de ser expedido contra ele mandado de prisão; em razão do constrangimento interpôs Habeas Corpus junto ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, sendo a ordem denegada, após parecer favorável da Procuradoria de Justiça’ (fl. 3).

Invoca o impetrante, ainda, o Pacto de São José da Costa Rica e sustenta que a penhora teve origem em contrato particular de composição e dação em pagamento (título executivo) e que descabe a prisão por se cuidar de bens fungíveis.

Decido.

A tese do impetrante não encontra amparo na jurisprudência firme desta Corte, no sentido de ser irrelevante, em depósito judicial, a fungibilidade do bem respectivo.

[…]

Na linha dos precedentes acima, portanto, a prisão civil em hipóteses como a presente, em princípio, não é ilegal. Ante o exposto, indefiro a liminar” – (HC nº 68.584/SP, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, decisão monocrática, DJ 24.10.2006 – fls. 90-94).

Em desfavor do paciente, foi ajuizada ação de execução sob o nº 612/2000 perante a 3ª Vara Cível de Santa Bárbara D’Oeste/SP. O paciente aceitou o encargo de depositário de 87.500 (oitenta e sete mil e quinhentos) quilogramas de aço galvanizado. A credora levou os bens à praça, sendo por ela arrematados em 21 de novembro de 2002 (fl. 28).

A credora requereu a entrega total dos bens sob pena de prisão.

Em 15 de junho de 2005, a Juíza de Direito Eliane da Camara Leite Ferreira, nos autos nº 612/2000 – execução provisória, assim se manifestou:

“Intime-se o depositário Marivaldo, no prazo de 24 horas, com urgência, para que entregue o bem sob sua guarda ou o seu equivalente em dinheiro, sob pena de prisão, facultando os benefícios do art. 172 do CPC” (fl. 43).

Diante da iminência de expedição de mandado de prisão em face do ora paciente, a defesa impetrou habeas corpus perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP).

Em 24 de agosto de 2006, a 24ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP) denegou a ordem nos termos do voto do Relator Walter Fonseca (fls. 67-73), eis o teor da decisão:

“Embora se adote o posicionamento de que é descabida a prisão do depositário de bem fungível, in casu, a análise dos autos demonstra que nenhum reparo merece a decisão da MM. Juíza da 3a Vara Cível da Comarca de Santa Bárbara D’Oeste.


O paciente, na condição de representante legal da empresa co-executada Grupoaço Comércio de Serviços Ltda., assumiu o encargo de depositário de 87.500 quilos de aço galvanizado, acondicionados em bobinas revestimento ‘B’, material novo (fls. 38). Referidos bens foram mantidos em perfeito estado de guarda e conservação até julho de 2002, quando foi produzida prova pericial com a juntada aos autos de fotografia pelo Expert. Efetivado o leilão e lavrado o auto de arrematação em 21/11/2002 (fls. 102/103), não mais se teve notícias dos bens depositados. Em 29/01/2004, houve deferimento de remoção dos bens (fls. 122), sem êxito, porque o sr. Oficial de Justiça não localizou as bobinas de aço (fls. 135).

Em razão disso, a MM. Juíza de 1° grau, em 21/10/2004, determinou a intimação do depositário para apresentação dos bens ou seu equivalente em dinheiro, sob pena de prisão (fls. 137/138), ensejando o pedido do paciente, formulado em 17/11/2004, no sentido da substituição dos bens, ante a fundamentação de que ‘os mesmos, além de perecíveis, trata-se de bens fungíveis, do ativo rotativo da empresa executado, não possuindo neste momento em seu estoque o montante exigido. De outro lado não tinha como manter o depósito dos bens, pois com o passar do tempo perdem sua utilidade, pelo desgaste natural, principalmente a ferrugem’. (fls. 140). Este pedido não contou com a anuência do exeqüente, o qual, em 26/04/2005, pugnou pelo pagamento do equivalente em dinheiro ou a prisão do depositário infiel, manifestação acolhida pela MM. Juíza em 15/06/2005 (fls. 176).

Desde logo, percebe-se que a cronologia depõe contra a alegação de que os bens depositados se degeneraram, pois por quase dois anos permaneceram intangíveis à ação da natureza e não foi apresentada a razão que teria determinado a deterioração após o lapso apontado.

Além disso, depende de comprovação o alicerce apresentado pelo impetrante do habeas corpus, inadmissível na via de cognição sumária, a teor do decidido pelo C. Superior Tribunal de Justiça: ‘A via do writ não permite o aprofundado exame do material cognitivo. Writ denegado’ (HC n. 20.908-RO, DJ 01/07/2004, rel. Min. Félix Fischer).

Com a não localização dos bens pelo Sr. Oficial de Justiça, determinou-se a sua apresentação, abrindo ao paciente, dada a natureza fungível, a oportunidade de substituir os 87.500 quilos de aço galvanizado por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade. Todavia, ao invés de providenciar a troca, propôs em juízo a substituição por imóvel, sem provar a propriedade, ou o pagamento em dinheiro do valor penhorado em quinze parcelas iguais, condicionada à concordância da exeqüente.

Desse modo, vê-se que o paciente já teve a ocasião para a substituição do bem ou o pagamento do equivalente em dinheiro, restando prejudicada a anotação da C. Procuradoria Geral de Justiça de que ‘A prisão é injustificada e indevida. Há possibilidade de apresentação do bem, a respeito de parte do estoque rotativo da empresa (…) O Juízo deveria ter determinado a substituição do bem penhorado e/ou reforço de penhora, com eventual necessidade de remoção do bem móvel. Não deveria simplesmente decretar a prisão do depositário que deu sinais de sua responsabilidade’ (fls. 272).

Ademais, não seria razoável exigir-se do exeqüente a substituição da garantia por imóvel do qual não se tem comprovação de propriedade ou tampouco o parcelamento em quinze vezes de débito de execução iniciada em 2000.

(…)

Dessa forma, caracterizado o rompimento da relação de fidelidade que deve existir entre o órgão judicante e o depositário, denega-se a ordem de habeas corpus” – (fls. 69-73).

Posteriormente, a defesa impetrou habeas corpus junto ao Superior Tribunal de Justiça. O Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, indeferiu a medida liminar em 19 e outubro de 2006 (DJ 24.10.2006).


No caso em análise, o impetrante alega existência de suposto constrangimento ilegal “tendo em vista que a qualquer momento poderá ser expedido contra o paciente mandado de prisão” (fl. 17).

Em decisão de 19 de dezembro de 2006 (DJ 1º.2.2007 – fls. 98-104), deferi o pedido de medida liminar, em ordem a assegurar, ao paciente, o direito de permanecer em liberdade até a apreciação do mérito do HC nº 68.584/SP pelo Superior Tribunal de Justiça.

Na Petição nº 76.491/2007 (fls. 199-217), o Ministro Castro Filho, Presidente da Terceira Turma, do Superior Tribunal de Justiça, asseverou:

“em complementação ao ofício nº 261/2007 – CD3T, de 23.03.2007, informo a Vossa Excelência que o HC nº 68.584/SP foi julgado na sessão de 17.04.2007, sendo proferida a seguinte decisão: ‘A Turma, por unanimidade, denegou a ordem, nos termos do voto do Senhor Ministro Relator” – (fl.199).

A inicial requer, por fim:

“o deferimento liminar da ordem, determinando seja expedido em seu favor contra-mandado de prisão. Ao final seja a ordem concedida mantendo-se a liminar, com medida de inteira justiça” – (fl. 17).

O Ministério Público Federal, em parecer da lavra do Subprocurador-Geral da República, Dr. Edson Oliveira de Almeida, manifestou-se pela confirmação da liminar para que, sem prejuízo do julgamento do mérito do HC nº 68.584/SP pelo STJ, seus efeitos perdurem até decisão final do Plenário do Supremo Tribunal Federal no RE 466.343/SP, de relatoria do Ministro Cezar Peluso.

É o relatório.

HABEAS CORPUS 90.172-7 SÃO PAULO

V O T O

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – (Relator):

Emparecer de fls. 192-196, o Ministério Público Federal, pelo Subprocurador-Geral da República, Dr. Edson Oliveira de Almeida, manifestou-se nos seguintes termos:

“1. Eis a decisão que deferiu a liminar (fls. 98/104):

‘DECISÃO:

[…]

Preliminarmente, a jurisprudência desta Corte é no sentido da inadmissibilidade da impetração de habeas corpus, nas causas de sua competência originária, contra decisão denegatória de liminar em ação de mesma natureza articulada perante tribunal superior, antes do julgamento definitivo do writ. Nesse particular, cito os seguintes julgados: HC(QO) nº 76.347/MS, Rel. Min. Moreira Alves, 1ª Turma, unânime, DJ de 08.05.1998; HC nº 79.238/RS, Rel. Min. Moreira Alves, 1ª Turma, unânime, DJ de 06.08.1999; HC nº 79.776/RS, Rel. Min. Moreira Alves, 1ª Turma, unânime, DJ de 03.03.2000; HC nº 79.775/AP, Rel. Min. Maurício Corrêa, 2ª Turma, maioria, DJ de 17.03.2000; e

HC nº 79.748/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, maioria, DJ de 23.06.2000.

Esse entendimento está representado na Súmula nº 691/STF, verbis: ‘Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar’.

É bem verdade que o rigor na aplicação da Súmula nº 691/STF tem sido abrandado por julgados desta Corte em hipóteses excepcionais em que: a) seja premente a necessidade de concessão do provimento cautelar para evitar flagrante constrangimento ilegal; ou b) a negativa de decisão concessiva de medida liminar pelo tribunal superior apontado como coator importe a caracterização ou a manutenção de situação que seja manifestamente contrária à jurisprudência do STF. Para maiores detalhes, enumero as decisões colegiadas: HC nº 84.014/MG, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 25.06.2004; HC nº 85.185/SP, Pleno, por maioria, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ de 1º.09.2006; e HC nº 88.229/SE, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, maioria, julgado em 10.10.2006; e as seguintes decisões monocráticas: HC nº 85.826/SP (MC), de minha relatoria, DJ de 03.05.2005; e HC nº 86.213/ES (MC), Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 1º.08.2005.


Para fins de apreciação do pedido de medida liminar, porém, é necessário, no caso em exame, avaliar se há ou não patente constrangimento ilegal apto a superar a aplicação da Súmula nº 691/STF e a ensejar o cabimento deste habeas corpus.

Preliminarmente, invoco precedente deste STF, apontado pelo impetrante, no qual o Min. Joaquim Barbosa deferiu pedido de liminar para suspender a ordem da prisão civil, até o final do julgamento do referido writ (HC nº 88.173/SC, Rel. Min. Joaquim Barbosa, decisão liminar, DJ de 15.03.2006).

No caso invocado como precedente, porém, constou como razão de decidir do Em. Min. Relator, a afirmação de que: ‘O impetrante trouxe a cópia integral dos autos das três execuções fiscais, no bojo das quais o paciente foi nomeado depositário dos bens penhorados e decretada a sua prisão civil em razão da infidelidade. Da análise de tais documentos, bem como dos argumentos articulados na inicial, vislumbro, pelo menos neste primeiro exame superficial, a presença dos requisitos essenciais ao deferimento da liminar’ (HC no 88.173/SC, Rel. Min. Joaquim Barbosa, decisão liminar, DJ de 15.03.2006).

A legitimidade da prisão civil do depositário infiel, ressalvada a hipótese excepcional do devedor de alimentos, está em plena discussão no Plenário deste Supremo Tribunal Federal. No julgamento do RE no 466.343/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, que se iniciou na sessão de 22.11.2006, esta Corte, por maioria que já conta com sete votos, acenou para a possibilidade do reconhecimento da inconstitucionalidade da prisão civil do alienante fiduciário e do depositário infiel.

O julgamento desse recurso foi suspenso em razão de pedido de vista formulado pelo Eminente Min. Celso de Mello. Conforme registra o recente Informativo no 450/STF, verbis:

‘O Tribunal iniciou julgamento de recurso extraordinário no qual se discute a constitucionalidade da prisão civil nos casos de alienação fiduciária em garantia (DL 911/69: <Art. 4º Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, o credor poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmos autos, em ação de depósito, na forma prevista no Capítulo II, do Título I, do Livro IV, do Código de Processo Civil.”). O Min. Cezar Peluso, relator, negou provimento ao recurso, por entender que o art. 4º do DL 911/69 não pode ser aplicado em todo o seu alcance, por inconstitucionalidade manifesta.

Afirmou, inicialmente, que entre os contratos de depósito e de alienação fiduciária em garantia não há afinidade, conexão teórica entre dois modelos jurídicos, que permita sua equiparação. Asseverou, também, não ser cabível interpretação extensiva à norma do art. 153, § 17, da EC 1/69 — que exclui da vedação da prisão civil por dívida os casos de depositário infiel e do responsável por inadimplemento de obrigação alimentar — nem analogia, sob pena de se aniquilar o direito de liberdade que se ordena proteger sob o comando excepcional.

Ressaltou que, à lei, só é possível equiparar pessoas ao depositário com o fim de lhes autorizar a prisão civil como meio de compelilas ao adimplemento de obrigação, quando não se deforme nem deturpe, na situação equiparada, o arquétipo do depósito convencional, em que o sujeito contrai obrigação de custodiar e devolver’.

Considerada a plausibilidade da tese do impetrante no caso concreto ora em apreço, creio ser o caso de deferir a medida liminar. Concedo aplicabilidade à jurisprudência firmada por este Supremo Tribunal Federal no sentido de que a concessão de medida cautelar, em sede de habeas corpus, somente é possível em hipóteses excepcionais nas quais seja patente o constrangimento

ilegal alegado.

Ressalvado melhor juízo quando da apreciação de mérito, constato a existência dos requisitos autorizadores da concessão da liminar pleiteada (fumus boni juris e periculum in mora).


Ante os fundamentos expostos, defiro o pedido de medida liminar, em ordem a assegurar, ao paciente, o direito de permanecer em liberdade até a apreciação do mérito do HC nº 68.584/SP pelo Superior Tribunal de Justiça. Caso o paciente já se encontre preso em decorrência de eventual decisão proferida na origem (Autos no 612/00), deverá ser posto, imediatamente, em liberdade, nos termos e na extensão acima especificados.

Expeça-se salvo-conduto, em favor do ora paciente, nos termos e para os fins a que se refere o art. 660, § 4º do CPP, de cujo teor deverá constar a parte dispositiva mencionada no parágrafo anterior”.

2. Opino por que seja confirmada a liminar acima transcrita para que, sem prejuízo do julgamento do mérito do HC 68.584-SP pelo Superior Tribunal de Justiça, seus efeitos perdurem até decisão final do Plenário do Supremo Tribunal Federal no RE 466.343-SP” – (fl. 196).

A propósito da manifestação do Parquet, creio ser pertinente reiterar alguns dos argumentos que expendi em meu voto, proferido em sessão do Plenário de 22.11.2006, no RE nº 466.343/SP, de relatoria do Ministro Cezar Peluso, verbis:

“Entendo que, desde a ratificação, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, dessa forma, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei nº 911/1969, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei nº 10.406/2002).

A prisão civil do devedor-fiduciante no âmbito do contrato de alienação fiduciária em garantia viola o princípio da proporcionalidade, visto que:

a) o ordenamento jurídico prevê outros meios processuais-executórios postos à disposição do credorfiduciário para a garantia do crédito, de forma que a prisão civil, como medida extrema de coerção do devedor inadimplente, não passa no exame da proporcionalidade como proibição de excesso (Übermassverbot), em sua tríplice configuração: adequação (Geeingnetheit), necessidade (Erforderlichkeit) e proporcionalidade em sentido estrito; e

b) o Decreto-Lei nº 911/1969, ao instituir uma ficção jurídica, equiparando o devedor-fiduciante ao depositário, para todos os efeitos previstos nas leis civis e penais, criou uma figura atípica de depósito, transbordando os limites do conteúdo semântico da expressão ‘depositário infiel’ insculpida no art. 5º, inciso LXVII, da Constituição e, dessa forma, desfigurando o instituto do depósito em sua conformação constitucional, o que perfaz a violação ao princípio da reserva legal proporcional (Vorbehalt des verhältnismässigen Gesetzes).

Lembro, mais uma vez, que o Decreto-Lei nº 911/1969 foi editado sob a égide do regime ditatorial instituído pelo Ato Institucional n° 5, de 1968. Assinam o decreto as três autoridades militares que estavam no comando do país na época. Certamente – e nesse ponto não tenho qualquer dúvida –, tal ato normativo não passaria sob o crivo do Congresso Nacional no contexto atual do Estado constitucional, em que são assegurados direitos e garantias fundamentais a todos os cidadãos.

Deixo acentuado, também, que a evolução jurisprudencial sempre foi uma marca de qualquer jurisdição de perfil constitucional. A afirmação da mutação constitucional não implica o reconhecimento, por parte da Corte, de erro ou equívoco interpretativo do texto constitucional em julgados pretéritos. Ela reconhece e reafirma, ao contrário, a necessidade da contínua e paulatina adaptação dos sentidos possíveis da letra da Constituição aos câmbios observados numa sociedade que, como a atual, está marcada pela complexidade e pelo pluralismo.

A prisão civil do depositário infiel não mais se compatibiliza com os valores supremos assegurados pelo Estado Constitucional, que não está mais voltado apenas para si mesmo, mas compartilha com as demais entidades soberanas, em contextos internacionais e supranacionais, o dever de efetiva proteção dos direitos humanos” – (Voto por mim proferido em 22.11.2006 no RE nº 466.343/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Pleno).

No Informativo nº 450/STF, verifica-se que:

“O Tribunal iniciou julgamento de recurso extraordinário no qual se discute a constitucionalidade da prisão civil nos casos de alienação fiduciária em garantia (DL 911/69: ‘Art. 4º Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, o credor poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmos autos, em ação de depósito, na forma prevista no Capítulo II, do Título I, do Livro IV, do Código de Processo Civil.’). O Min. Cezar Peluso, relator, negou provimento ao recurso, por entender que o art. 4º do DL 911/69 não pode ser aplicado em todo o seu alcance, por inconstitucionalidade manifesta. Afirmou, inicialmente, que entre os contratos de depósito e de alienação fiduciária em garantia não há afinidade, conexão teórica entre dois modelos jurídicos, que permita sua equiparação. Asseverou, também, não ser cabível interpretação extensiva à norma do art. 153, § 17, da EC 1/69 — que exclui da vedação da prisão civil por dívida os casos de depositário infiel e do responsável por inadimplemento de obrigação alimentar — nem analogia, sob pena de se aniquilar o direito de liberdade que se ordena proteger sob o comando excepcional. Ressaltou que, à lei, só é possível equiparar pessoas ao depositário com o fim de lhes autorizar a prisão civil como meio de compeli-las ao adimplemento de obrigação, quando não se deforme nem deturpe, na situação equiparada, o arquétipo do depósito convencional, em que o sujeito contrai obrigação de custodiar e devolver. RE 466343/SP, rel. Min. Cezar Peluso, 22.11.2006” – (Informativo nº 450/STF).

Considerada a plausibilidade da orientação que está a se firmar perante o Plenário desta Corte – a qual já conta com 7 votos – defiro a ordem para que sejam mantidos os efeitos da medida liminar de fls. 98-104 (DJ 1º.2.2007).

É como voto.

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