Leão enjaulado

Entrevista: Condorcet Rezende, advogado tributarista

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3 de junho de 2007, 0h00

Condorcet Rezende - por SpaccaSpacca" data-GUID="condorcet_rezende.jpeg">Existe uma arma poderosa no Código Penal que pode ser usada pelo contribuinte ofendido em seu direito. Está no artigo 316, parágrafo 1º, mas quase não é usada, aponta o advogado tributarista Condorcet Rezende. O dispositivo caracteriza como crime a insistência de qualquer funcionário público, seja do alto ou do baixo escalão, de cobrar tributo que já sabe que é indevido. É o chamado crime de excesso de exação e pode dar até oito anos de cadeia.

“O contribuinte tinha de revidar e processar o funcionário que lhe cobra imposto indevido”, diz Condorcet. O advogado defende que, sempre que o Supremo Tribunal Federal declara determinado tributo inconstitucional, o fisco tem de parar de cobrá-lo imediatamente. Senão, cabe processo criminal contra o funcionário que fez a cobrança. “O funcionário do fisco tem obrigação de acompanhar as decisões do Supremo na área tributária.”

Condorcet Rezende tem 77 anos. Há pelo menos 50 anos está envolvido no universo do Direito, que ele chama de atrasado. Enquanto todas outras técnicas e ciências evoluíram, o Direito parou no tempo, diz. “Nós continuamos em Roma, há dois mil anos.” Rezende reconhece a lentidão do Judiciário e a atribui, entre outros fatores, ao excesso de formalismo. “O Judiciário merece o Troféu Talento porque está lento mesmo.”

Suas críticas também são dirigidas ao Legislativo. Para ele, os legisladores trabalham mal. Produzem leis tributárias de mais e todas, muito confusas. Além disso, os legisladores se beneficiam da lentidão da Justiça para fazer leis que já sabem inconstitucionais. Para designar tal atitude, ele empresta expressão do ministro aposentado do STF Octávio Gallotti: inconstitucionalidades úteis. São as normas que, antes mesmo de virarem leis, já são sabidas inconstitucionais. Mesmo assim, o Legislativo às aprova porque irá levar 10 anos para o Judiciário julgar e outros 10 para o contribuinte conseguir reaver o dinheiro pago indevidamente. “Durante 20 anos, então, o governo se beneficia dessa inconstitucionalidade.”

Condorcet é sócio do Ulhôa Canto, Rezende e Guerra Advogados, escritório que tem 45 anos de atividade, sede no Rio de Janeiro e filial em São Paulo. O tributarista mora no Rio. Em seu currículo, traz passagens como professor da Fundação Getúlio Vargas e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Presidiu a Associação Brasileira de Direito Financeiro e o Instituto Latino Americano de Direito Tributário.

Pai do técnico da seleção masculina de vôlei do Brasil, Bernardinho, Condorcet costuma brincar que nos momentos de maior nervosismo do filho durante as partidas, liga para o celular dele e dá a receita da vitória: “Filho, basta fazer a bola cair do lado de lá da rede.” A fórmula parece estar dando certo.

Também participaram da entrevista, feita por videoconferência, os jornalistas Daniel Roncaglia e Rodrigo Haidar.

Leia a entrevista

ConJur — Dá para entender a legislação tributária?

Condorcet Rezende — A lei tributária é confusa. Para entender a fórmula matemática usada para calcular a Cofins, por exemplo, o contribuinte tem de recorrer a um especialista. Não pode ser assim. As regras tributárias são para todos e têm de ser compreendidas por todos. Essa complexidade da lei aumenta muito o custo para as empresas, que têm de contratar especialistas no assunto. Além disso, o governo descumpre o dispositivo da Constituição que manda que todos os impostos que incidem sobre mercadorias e serviços sejam especificados. O consumidor compra um produto e não sabe quanto está pagando de imposto por aquele produto. É isso que o governo quer, a chamada anestesia fiscal. O contribuinte reclama do Imposto de Renda porque vê quanto paga, mas, dos outros impostos, não reclama porque não conhece o valor. Se for somar, os outros impostos são várias vezes o Imposto de Renda.

ConJur — O senhor defende a reação do contribuinte contra o fisco, com o uso de processos por crime de excesso de exação. Como é isso?

Condorcet — Quase ninguém fala disso, mas é importante. O Código Penal, no artigo 316, parágrafo 1º, diz que é crime o funcionário exigir o tributo que sabe ou deveria saber que é indevido. Ou seja, aquele que exige um tributo que sabe que não é devido comete o crime de excesso de exação. A pena é de até oito anos. O fisco processa os contribuintes pelos crimes contra a ordem tributária. O contribuinte tinha de revidar e processar o funcionário que lhe cobra imposto indevido.

ConJur — O senhor pode dar um exemplo de quando o funcionário pode ser processado por excesso de exação?

Condorcet — O Supremo Tribunal Federal declara a inconstitucionalidade de determinada cobrança tributária. Não tem sentido dizer que aquela decisão só vale para as partes. Se o tributo é inconstitucional para um, é para todos também. Não é racional querer que todo mundo vá ao Supremo para conseguir se livrar de cobrança já considerada inconstitucional. Nesses casos, a insistência do poder público de continuar cobrando tem de ser enfrentada com uma queixa-crime por excesso de exação. O funcionário do fisco tem obrigação de acompanhar as decisões do Supremo na área tributária.


ConJur — O mau legislador, aquele que faz um tributo que já sabe que é inconstitucional, também pode ser acusado de crime de excesso de exação?

Condorcet — No discurso de posse na presidência do Supremo Tribunal Federal, em 1993, o então ministro Luiz Octávio Gallotti disse: “É preciso acabar com as inconstitucionalidades úteis”. O Poder Legislativo aprova um tributo que sabe que é inconstitucional, mas também sabe que vai demorar 10 anos até que o Supremo declare a sua inconstitucionalidade. Depois, vão demorar outros 10 anos até que o contribuinte consiga recuperar o que pagou indevidamente. Durante 20 anos, então, o governo se beneficia dessa inconstitucionalidade.

ConJur — Como vigiar o Poder Legislativo para acabar com as inconstitucionalidade úteis?

Condorcet — Precisamos introduzir o voto distrital. Do jeito que é hoje, o povo não sente que tem um representante no Congresso Nacional. Os parlamentares são mandatários do povo e têm de obedecer suas ordens, senão, viram mandatários infiéis e têm de ter o mandato cassado. Com o voto distrital, a população do distrito vai conseguir vigiar melhor o trabalho do seu mandatário. Este teria de se reunir com seus eleitores do distrito para discutir projetos importantes e agir de acordo com a opinião da maioria. O voto secreto no Congresso tem de ser eliminado. O eleitor tem de saber como seu mandatário vota.

ConJur — O Judiciário contribui para perpetuar as inconstitucionalidades feitas pelo Legislativo?

Condorcet — Todo mundo reclama que o Judiciário está lento. Eu costumo dizer que o Judiciário merece o Troféu Talento, porque está lento mesmo. Um amigo meu contou que seu advogado teve de apresentar Agravo de Instrumento no tribunal porque, no cartório, na hora de preencher o mandado de levantamento de uma causa que ele já tinha ganhado, o cartorário errou e colocou o nome do procurador do município, que era a outra parte, como advogado. Ao invés de simplesmente passar a borracha e corrigir o equívoco, o advogado tem de recorrer ao tribunal e esperar um mês para corrigir uma bobagem. É um excesso de formalismo.

ConJur — E isso abarrota os tribunais de processo.

Condorcet — O Supremo julga, em média, 100mil processos por ano. A Suprema Corte dos Estados Unidos, quando julga muito, julga 200 processos por ano. Se contarmos para os americanos quantos processos a corte máxima julga aqui, vão achar que estamos brincando. Fui a um gabinete de um ministro em Brasília e ele teve de tirar pilhas de processos das poltronas para eu poder sentar. Como esperar que alguém julgue nessas condições? Só mesmo fazendo cara ou coroa para dar conta de tudo.

ConJur — Apenas acabar com o excesso de formalismo resolve o problema?

Condorcet — A lei norte-americana permite que o cidadão chore antes de sentir dor. Ou seja, o norte-americano pode buscar a proteção judicial antes de sofrer o constrangimento ilegal. No Brasil, temos de adotar a mesma flexibilidade de lá. O excesso de formalismo tem de ser eliminado. Senão, vamos voltar para os tempos romanos, quando tudo era formal. Estou com vontade de escrever um artigo com o título “Dois mil anos de atraso”, mostrando que, a partir de do Século XVIII, todas as ciências e as técnicas correspondentes, tais como Biologia, Medicina, Matemática, Física e Engenharia evoluíram de maneira extraordinária. Só uma área continua agarrada a Roma, que é o Direito. Nós continuamos em Roma, há dois mil anos. Simplesmente, não pode continuar desse jeito.

ConJur — Quando o Supremo considera uma lei inconstitucional em Ação Direta de Inconstitucionalidade, a lei perde sua eficácia. Mas quando essa declaração é feita em outros recursos, como Habeas Corpus e Recurso Extraordinário, depende da chancela do Senado para suspender a lei. Esse formalismo é prejudicial também?

Condorcet — Sim. O Senado chancela a declaração do Supremo, ou seja, manda suspender a lei, quando acha conveniente, porque ele não se sente obrigado a fazer isso. Assim, acredito que estamos criando um controle do Senado sobre o Supremo Tribunal Federal. E sou contra isso. A Constituição estabelece a necessidade dessa chancela, mas tem de ser mudada, como propôs o ministro Gilmar Mendes. O STF diz que a lei é inconstitucional e ela tem de ser suspensa imediatamente. Para mim, o Legislativo funciona apenas para fazer a lei.

ConJur — Na opinião do senhor, a decisão do Supremo que declara uma lei inconstitucional deve retroagir ou não?

Condorcet — Quando o STF declara a inconstitucionalidade de uma lei, essa decisão tem de valer para antes e depois, e para todos, salvo para aqueles que estão protegidos por liminares. Por exemplo, o Supremo vai decidir se sociedades de profissionais liberais têm de pagar Cofins. Se decidir que sim, todas as sociedades que deixaram de pagar terão de pagar o corresponder aos últimos cinco anos, exceto aquelas que conseguiram liminares judiciais para não pagar. Para estas, começa a valer a cobrança a partir da decisão do Supremo. Os ministros estão discutindo a questão da modulação do tempo de suas declarações de inconstitucionalidade. Dizem por lá que a inconstitucionalidade não precisa valer para sempre, mas pode ser modulada no tempo porque é assim que é feito na Alemanha. Não sei qual com que freqüência são feitas leis inconstitucionais na Alemanha, mas acredito que seja bem menor do que no Brasil. Não vejo motivo para trazer doutrina alemã para cá, porque nós não somos alemães. Fazer isso corresponde a levar uma vítima de tiros e facadas do Brasil para ser tratada em uma clínica da Suíça, onde os médicos não estão acostumados a atender casos de extrema violência.


ConJur — Qual a qualidade da lei tributária produzida no Congresso brasileiro?

Condorcet — Desde a promulgação da Constituição de 1988 até 2006, em 18 anos, foram feitos mais de 226 mil atos tributários. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Pesquisas Tributárias, os atos tributários correspondem a 10% do total de atos produzidos nesses 18 anos. No início, usei o exemplo da Cofins. E é exatamente isso que acontece. A população não entende a legislação, portanto, digo que a qualidade da legislação não é boa. A Constituição Federal tem de ser mudada para dizer que todo tributo federal tem de ser repartido com estados e municípios. Hoje, a Constituição diz que as contribuições sociais estão livres dessa repartição. Assim, o governo federal pega o adjetivo social e sai criando contribuições para resolver os seus problemas financeiros. Quanto mais complexa a legislação e quanto maior o número de tributos, o contribuinte se sente mais impelido a jogar tudo para o alto e resolver não pagar mais nada. O economista Marcos Cintra fala que a carga tributária corresponde hoje a 40% do PIB. Eu somo a isso mais 4% de custo indireto, ou seja, aquele gasto pelo contribuinte para cumprir a obrigação tributária. Portanto, a carga tributária chega a 44% do PIB.

ConJur — Com essa alta carga tributária, o brasileiro deveria ter um excelente serviço público como contrapartida.

Condorcet — Pela história, o tributo era uma forma de servidão. O povo vencido era obrigado a pagar tributo ao povo vencedor. Hoje, nós estamos voltando para a servidão. A tributação é necessária para o governo manter o funcionamento da máquina pública e dar ao cidadão serviços básicos para ele viver. No Brasil, não temos escola pública, serviços de saúde, nem segurança pública de qualidade. O contribuinte paga o tributo e também paga convênio médico, escola particular e tem de mandar blindar seu carro. É uma duplicidade de custos que não devia haver. Nos países desenvolvidos, como a Suécia, a carga tributária é altíssima, mas os serviços públicos são ótimos.

ConJur — A complexidade do sistema tributário brasileiro interessa ao advogado tributarista?

Condorcet — Não. Da mesma maneira que epidemia de doença não é interessante para o médico. A complexidade também afeta o advogado como cidadão. Assim como o médico pode prestar serviços prevenindo para que o paciente não fique doente, o advogado pode assessorar seu cliente, por exemplo, a pagar menos imposto sem cometer nenhuma infração.

ConJur — E planejar para pagar menos imposto não significa sonegar, certo?

Condorcet — Nem todo planejamento visa à sonegação. Existe diferença. Uma coisa é o contribuinte não querer pagar Imposto de Renda no mês de dezembro porque não trabalhou e, portanto, o fato gerador não ocorreu. Outra coisa é ele dizer que não trabalhou para se livrar do imposto. Eu posso orientar um cliente, por exemplo, a não voar de São Paulo para Miami direto porque terá de pagar um imposto alto sobre essa passagem. Posso orientá-lo a ir até Belém do Pará e voar de lá para Miami. Ele paga menos imposto e isso não é sonegação. O imposto é devido depois que ocorre o fato gerador. Podemos impedir que esse fato gerador ocorra sem violar nenhuma lei. Um trabalhador que paga 15% de imposto, por exemplo, pode se recusar a ganhar mais porque, se seu salário for aumentado, terá de pagar 27,5% de imposto. Há a liberdade de planejar a vida fiscal sem violar nenhuma lei. Uma empresa pode se mudar para outra cidade onde o ISS é mais barato. Isso não é ilegal. O que ela não pode é simular essa mudança para pagar menos.

ConJur — O Brasil tem uma legislação complicada e, ao mesmo tempo, um Judiciário que muitas vezes revê seu próprio entendimento. Nesse cenário, é possível falar em segurança jurídica?

Condorcet — Não. Esse vai-e-vem do Judiciário cria insegurança. A segurança jurídica vem da certeza de que o tribunal vai julgar determinada matéria de certa forma. O tribunal cria uma jurisprudência e daí nasce a certeza jurídica de que ele pensa dessa maneira. Quando começa a haver variações desse pensamento, nasce a insegurança jurídica.

ConJur — O senhor sente que, com essas constantes operações da Polícia Federal, os empresários estão mais preocupados em andar dentro da lei?

Condorcet — Não. Eu não vejo ninguém que mereça a qualificação de empresário preocupado com as operação da PF. Bicheiros que se dizem empresários são simplesmente bicheiros, e não empresários.

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