Ordem econômica

A inconstitucionalidade do acordo de leniência

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1 de junho de 2007, 15h50

A Secretaria de Direito Econômico (SDE) confere enorme importância ao acordo de leniência, classificando-o como “pilar fundamental da Política Nacional da Ordem Econômica”. Num breve resumo, este instituto permite que o autor de uma infração à ordem econômica procure a SDE e faça uma auto-denúncia, apresentando provas e delatando seus co-autores. Em troca, recebe a isenção total ou parcial da penalidade administrativa e a extinção da punibilidade na esfera criminal.

O acordo de leniência começou a ser utilizado no Brasil a partir de 2003, notadamente nos casos de crime de formação de cartel. Por se tratar de um instituto relativamente novo, ainda não sofreu análise mais incisiva do Poder Judiciário, o que certamente desnudaria sua patente inconstitucionalidade.

A constatação de que o acordo de leniência é inconstitucional surge com a leitura dos artigos que disciplinam suas regras e efeitos (artigos 35-B e 35-C da Lei 8.884/94). De acordo com o artigo 35-B, cabe a SDE analisar os critérios objetivos e subjetivos que norteiam o acordo, como, por exemplo, se o beneficiário cooperou plenamente com a investigação, se foi o primeiro a noticiar a existência da infração ou era um dos líderes da ação criminosa. Ao final, a SDE deve remeter o processo administrativo ao Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), que, por sua vez, dará a palavra final sobre o pleno cumprimento do acordo.

São os efeitos deste julgamento do Cade que escancaram o descompasso com a Constituição Federal, pois o artigo 35-C determina que, cumprido o acordo de leniência pelo agente, “extingue-se automaticamente a punibilidade dos crimes” contra a ordem econômica. É fundamental notar o uso do vocábulo “automaticamente”, evidenciando que é o Cade, diante do procedimento da SDE, quem decidirá se o cidadão terá ou não a sua punibilidade criminal extinta, sem a necessidade de qualquer intervenção judicial.

A inconstitucionalidade reside no fato de que são os órgãos administrativos que tomam as mais importantes decisões em matéria criminal, de forma isolada e automática. Analisam as provas apresentadas, definem qual crime foi cometido, ponderam se a identificação dos co-autores foi adequada, e, por fim, extinguem a punibilidade do ilícito penal. A ilegalidade é evidente, pois a SDE e o Cade não integram o Poder Judiciário e, logicamente, não podem julgar questões penais.

Permitir que um órgão administrativo julgue um caso criminal implica em grave ofensa ao princípio da reserva de jurisdição, previsto no artigo 5º da nossa Constituição. Este princípio garante o monopólio do Poder Judiciário em decidir determinadas questões, notadamente as criminais. É em razão da reserva de jurisdição, por exemplo, que não se permite que uma lei outorgue poderes ao Ibama, Receita Federal ou Banco Central para decidirem o destino de acusados por crimes ambientais, tributários ou financeiros.

A conseqüência desta inconstitucionalidade certamente não será a subtração dos benefícios penais do agente que, crendo na validade da lei, confessou seu crime e delatou seus co-autores. A repercussão é muito maior, fulminando o acordo como um todo, uma vez que a inexeqüível imunidade penal concedida pelo Cade não é um mero efeito do acordo de leniência, mas sim um de seus mais sólidos alicerces.

Aplica-se, nesta análise, a doutrina da divisibilidade das leis, reconhecida e utilizada pelo Supremo Tribunal Federal. Por esta teoria, também devem ser declarados inconstitucionais os artigos que, embora isoladamente possam ser válidos, são conexos ao trecho ofensivo à Constituição. Esta conexão se manifesta quando os dispositivos legais se mostram perfeitamente integrados, concorrendo para a mesma finalidade e que, ademais, não teriam sido criados separadamente pelo legislador. Diante deste quadro, não só o artigo eivado de inconstitucionalidade deve ser tido como inaplicável, mas também as demais partes da lei que com ele mantém integração.

Analisando a estrutura jurídica do acordo de leniência, não há como negar a umbilical relação entre o artigo 35-B, que disciplina suas regras gerais, e o artigo 35-C, que prevê a extinção da punibilidade criminal de seus participantes. Concebidos pelo Poder Legislativo para juntos alcançarem um idêntico propósito, ambos os artigos padecem de inconstitucionalidade.

Os dispositivos que disciplinam o acordo de leniência podem ter a sua inconstitucionalidade declarada por meio do controle de constitucionalidade por via de exceção. Esta argüição é permitida em qualquer juízo e espécie de processo (criminal ou administrativo), gerando efeitos retroativos, anulando-se toda a relação jurídica desenvolvida a partir da lei inconstitucional.

Diante de sua incompatibilidade com a Constituição Federal, não se deve admitir nenhum efeito advindo do acordo de leniência, impondo-se, inclusive, o desentranhamento e inutilização de todas as provas obtidas por sua conta. Da mesma forma, deve ser anulado o procedimento ou processo judicial que tenha sido promovido contra aqueles que foram delatados como co-autores da infração, já que, como qualquer cidadão, devem ser protegidos de atos gerados por fontes inconstitucionais.

Portanto, é imprescindível que as recentes propostas de alteração da lei concorrencial corrijam esta grave inconstitucionalidade, de modo a compatibilizar a integração das esferas administrativa e penal no combate aos cartéis e demais infrações à ordem econômica.

Artigo publicado originalmente no jornal Valor Econômico

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