Protesto e política

Greve também é uma forma de pressão social do trabalhador

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30 de julho de 2007, 16h42

As greves sempre provocam certa comoção social na medida em que fazem emergir ao nível do olhar do observador comum, o vulto ameaçador do conflito entre capital e trabalho que, nos dias normais, fica encerrado nas sombras. Para quem está no andar de cima é muito reconfortante não ver e fazer de conta de não saber o que ocorre no andar de baixo. Na medida em que a tensão aparece à luz do dia, o mundo que parecia pacífico fica parecendo instável e o fenômeno, embora constituindo o regular exercício de um direito constitucionalmente atribuído, adquire a aparência de infração às regras do jogo que regulam a ordem jurídica. Esta sensação que é decorrência de uma visão de mundo conservadora fica ainda mais aguda quando se cuida de uma greve de natureza política.

A inquietação conduz a uma interpretação restritiva da lei, como sugere José Carlos Arouca[1]: “A greve política, finalmente, foge da conceituação tradicional, perdendo a natureza contratual que deva situar-se numa esfera que envolve empresa. Ministério Público do Trabalho e Justiça do Trabalho para contrapor trabalhadores e o Estado, como legítima expressão de um direito coletivo classista. Claro está que a avaliação do acerto ou não da medida sempre dependerá da ideologia dos críticos e da posição assumida à direita ou à esquerda.” Em síntese, sob esta abordagem, a legalidade da greve política dependeria da visão política do intérprete. Sem negar a razoabilidade deste raciocínio, todavia, parece-nos que as restrições a este tipo de prática coletiva constituem resquícios da cultura jurídica anterior à CF-88 e que não se renovam porque a raríssima ocorrência deste tipo de evento, deixa adormecido o debate respectivo.

A reflexão a respeito deste tema anda um tanto esquecida, até porque, na última década, o refluxo do movimento de massas no Brasil implicou na progressiva redução do número de greves. A greve de natureza política que de per si já era uma ave rara, assumiu até a aparência de espécie em extinção. A retomada desta questão, todavia, nos é sugerida por recente ementa do TRT02 (processo 20258200600002005): “O movimento de paralisação dos serviços qualificados no artigo 9º da Constituição Federal tem de estar vinculado à reivindicação contida no contrato de trabalho. Esta é a materialidade necessária, para que se possa falar em greve. Se a paralisação dos serviços ocorreu por motivação política, a “greve”, por mais justa que possa parecer, deve ser considerada materialmente abusiva’’. (AC SDC 00052/2007-9 – PROC 20258200600002005 – Nelson Nazar – Relator. DJ/SP de 02/04/2007).

Para o acórdão respectivo, o nervo da questão repousa em que “o direito de greve não pode ser utilizado como instrumento de manobra para a defesa de posições políticas ou ideológicas”. Sob esta ótica, o interesse a ser defendido por meio da greve, tem que ser contido no contrato de trabalho. Aliás, apesar de que a jurisprudência sobre o tema é bastante escassa, a mesma bate insistentemente sobre esta tecla como se verá no exame dos julgados mais recentes que remontam, por sinal, há uns dez anos atrás. No TRT02, encontramos somente este outro julgado: “O direito de greve é limitado pelo sistema constitucional a questões que tenham relevância para a coletividade dos empregados, em razão dos pleitos que desejam postular do empregador. Motivações de ordem política não devem ensejar paralisações, sob pena de serem elas materialmente abusivas, haja vista que o direito de greve não é ilimitado.”(Processo Nº: 00374/1997-3 ANO: 1997 SDC Relator Juiz Nelson Nazar).

Da mesma época, a seguinte ementa oriunda do TRT15: “Greve política, como forma de pressão ao atendimento de reivindicações junto aos Poderes Legislativo e Executivo do Município. Segundo o disposto no art. 1º da Lei 7.783/89, compete aos trabalhadores decidir sobre os interesses que devam por meio da greve perseguir, existindo limitação somente no que diz respeito a objetivos estranhos à categoria profissional. No caso dos autos, não existe qualquer reivindicação da categoria que possa ser atendida pelo empregador.”(TRT15 Acórdão:000660/1998 de 01/12/1999 Relator: Edison Laércio de Oliveira).

Os pressupostos que dão embasamento a este entendimento pretoriano tão difundido, como se vê, repousavam em dois pontos: a) a greve é um direito que tem caráter contratual e que só pode ser usado como meio de solução de conflito nas relações de trabalho; b) a lei 7783/89 deu respaldo a este pensamento, estipulando em seu artigo 3º que o direito só pode ser exercido para resolver impasse da negociação coletiva (“frustrada a negociação…”).

Encontramos no episódio, portanto, uma boa oportunidade para avaliar esta tendência jurisprudencial que reflete à reflexão acumulada no período anterior à Assembléia Nacional Constituinte de 1988. No ordenamento jurídico implantado pela CF-88, o cenário sofreu radical reviravolta em termos de direito positivo. A ordem jurídica que chegava a definir como crime a greve política optou por reger-se pela norma liberal estabelecida no artigo 9º da carta política: “É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”. A partir de tal redação, podemos perceber os seguintes pontos centrais: a) os trabalhadores tem direito de greve para defender interesses; b) a eles incumbe decidir quais interesses devem ser objeto do exercício de tal direito.


O interesse é um desejo do sujeito jurídico. Não é aquilo que lhe é devido por lei ou por contrato mas, aquilo que o agente pretende obter em razão de considerar justa a sua pretensão. Esta nova redação tem provocado a revisão de conceitos. Veja-se, por exemplo, a clássica obra de Orlando Gomes e Élson Gottschalk[2], na versão atualizada por José Augusto Rodrigues Pinto: “pelo texto amplo acima resumido, não há como proibir greves atípicas como a de protesto, solidariedade, geral, tartaruga, etc., sendo duvidosa a constitucionalidade da greve política de interesses não profissionais e…”.

Veja-se nas entrelinhas a lucidez em relação à clareza do comando contido na nova redação constitucional, em conflito com a restrição arraigada às greves políticas. Torna-se evidente se atentarmos que admite a greve geral mas vê como duvidosa a greve política. Esta reticência vai sendo abandonada em obras mais recentes. Na mesma direção, Amauri Mascaro Nascimento [3] :”Quanto aos fins, a motivação da greve é confiada aos próprios trabalhadores, cabendo-lhes definir a oportunidade e os interesses a defender através do exercício do direito de greve. Porem, as greves de política pura, que são as insurrecionais, contrariam o princípio do artigo 136 da Constituição que dispõe sobre a defesa do Estado. Não é semelhante o que ocorre com as greves de política trabalhista, como aquelas que se destinam a reivindicar a adoção de uma política salarial favorável aos assalariados. As greves de solidariedade, a rigor, não são proibidas pela Constituição. São aquelas em que os trabalhadores paralisam os serviços não porque tenham um pleito próprio, mas em apoio a reivindicação de terceiros”.

Pessoalmente, nós já havíamos escrito há uma década no sentido de acolher a ampliação trazida pela CF-88[4] “A doutrina, todavia, aponta que “o art. 3º da atual lei de greve é inconstitucional porque faz restrições à greve de solidariedade e à greve política, ao mesmo tempo em que se choca contra a disposição da constituição que confere aos próprios trabalhadores a competência para decidir sobre a oportunidade (momento ou conveniência) do exercício do direito da greve”. Parece-nos que tais vozes apontam para a solução correta, na medida qm que a Carta Magna deixou ao alvedrio dos obreiros a escolha dos interesses que haverão de defender por meio da greve. Assim, não poderia o legislador infraconstitucional recortar a amplitude de tal disposição, imputando como pressupostos necessários à preexistência de uma negociação coletiva.”

Mais recentemente, veja-se o raciocínio de Maurício Coutinho Delgado[5]: “sob o ponto de vista constitucional, as greves não precisam circunscrever-se a interesses estritamente contratuais trabalhistas (embora tal restrição seja recomendável, do ponto de vista político-prático, em vista do risco à banalização do instituto – aspecto a ser avaliado pelos trabalhadores). Isso significa que, a teor do comando constitucional, não são, em princípio, inválidos movimentos paredistas que defendam interesses que não sejam rigorosamente contratuais – como as greves de solidariedade e as chamadas políticas. A validade desses movimentos será inquestionável, em especial se a solidariedade ou a motivação política vincularem-se a fatores e significativa repercussão na vida e trabalho dos grevistas”.

A restrição que se coloca à greve de natureza política, portanto, veio se reduzindo, no campo doutrinário até cingir-se à mencionada “greve insurrecional”. No entanto, como definir o que seja esta figura tão atípica? A maioria dos autores reporta-se a Carlos Monis Lopes[6] : “Entende-se por greve política, em sentido amplo, a dirigida contra os poderes públicos para conseguir determinadas reivindicações não susceptíveis de negociação coletiva. Ou, mais genericamente ainda, a digerida contra os poderes públicos nacionais ou estrangeiros. Dentro deste amplo conceito de greve política estão incluídas: a) as greves revolucionárias ou insurrecionais que, necessariamente, são gerais; b) as greves políticas puras, não insurrecionais. Estas, por sua vez, podem ser gerais ou parciais. Podem ir contra o Parlamento, o Governo (nacional ou estrangeiro), uma autoridade pública (nacional ou estrangeira) ou os tribunais. Podem consistir, finalmente, em simples greves de protestos, de certa duração e com finalidade demonstrativa ou em greves de luta de maior duração; e c) as greves de imposição econômico-política ou mistas, nas quais aparecem mesclados claramente os motivos profissionais e os políticos. Típicas greves mistas seriam aquelas dirigidas contra a política econômica do governo (políticas de rendimentos e salários, política de emprego, etc…..), as greves político-sindicais (garantias de atuação sindical) ou, num outro extremo, as greves motivadas pela luta por reforma (habitações adequadas, sistema fiscal redistributivo, dotação devida ao sistema educacional, transportes coletivos suficientes, etc…).”


O pensamento vislumbrado neste texto consiste em enxergar como insurrecional somente aquela greve de caráter geral que pretende a derrubada do Estado, ou seja, das instituições democráticas republicanas. Nota-se aí, a distinção bem clara entre a greve política pura, aceita pela doutrina e a greve política insurrecional. Na Doutrina italiana, encontramos bem nítida esta distinção, a começar pelo pensamento de Luisa Galantino[7]:”Sulla base di tale línea interpretativa, devono ritenersi ligittimi gli scioperi effettuati per sollecitare da parte della pubblica autoritá provvedimenti Che hanno implicazioni econômico-sociali. Fra quaeti si possono citare ad esempio, gli scioperi intesi a suscitare interventi a sostegno dell’occupazione o misure in tema di sicurezza sociale o riforme dei servizi sociale o riforme dei servizi sociali (trasporti, casa, scuola, assistenza sanitária …)”.

Na mesma tecla, bate Gino Giugni[8]: “Constituem, portanto, legítimo exercício do direito também aquelas greves – normalmente decorrentes da prática sindical – que são realizadas para solicitar intervenções para a ocupação, ou aquelas que são declaradas para sustentar reformas sociais como as reformas da casa, dos transportes, da saúde etc.; todas estas greves são caracterizadas com o fim de tutelas interesses que podem ser satisfeitos somente por atos legislativos ou de governo central ou local; portanto, substanciam pressão realizada em relação ao poder político.”

A greve “política” de confronto a uma decisão da Administração Pública já teve ao menos um encontro com os nossos tribunais do Trabalho após o advento da nova Carta. No caso de greve dos empregados de uma estatal, voltada para opor-se à iminente estatização, o Tribunal Superior do Trabalho entendeu que não se poderia considerar como política a paraalização em tais circunstâncias, porque, ainda que, indiretamente, seria uma greve trabalhista: “Em tal contexto, é óbvio que a mudança na estrutura do Banco interessa e muito aos empregados, pois não se cuidará de uma mera troca de empregadores, mas de alteração da própria natureza jurídica do Banco, tendo em vista que o empregado deixará de fazer parte da administração pública indireta para se vincular a um empregador privado, cuja política de pessoal costuma ser menos favorável ao trabalhador. Tais fatos demonstram o legítimo interesse dos empregados em discutir esse processo e procurar formular reivindicações para protegê-los. Nesse contexto, a greve deflagrada não tem nenhum caráter político, e sim trabalhista, estando autorizada, em conseqüência, pelo art. 14, parágrafo único, II, da Lei de Greve” (TST-RODC 781712 DJ – 23/04/2004 Relator José Luciano Castilho Pereira).

A verdade é que este ligeiro entreabrir das cortinas nos traz, apenas, um primeiro esboço de luz nestas compactas sombras pretorianas. Muito embora a Doutrina já tenha acumulado reflexão sobre os efeitos da nova redação constitucional e venha reconstruindo seu pensamento, nos tribunais, este recente julgado que mencionamos no começo inspira somente preocupação.

A visão da greve exclusivamente como uma forma de desdobramento da negociação coletiva esbarra frontalmente com a atual redação da Carta Magna e, portanto, não pode subsistir. É preciso aceitar, de vez, que a Assembléia Nacional Constituinte de 1988 deliberou que a greve é uma forma de pressão social que os trabalhadores dispõem para defender seus interesses e eles é que decidem quais são os seus interesses. O despertar para a Constituição, muitas vezes, é lento, mas, confiamos em que tal compreensão terminará por impregnar, também, o entendimento pretoriano, da mesma forma em que foi se difundindo nos campos doutrinários.

[1] AROUCA José Carlos, REPENSANSO O SINDICATO, Editora LTR – 1998

[2] GOMES, Orlando e GOTTSCHALK, Élson “Curso de Direito do Trabalho”, Editora Forense, 16ª edição, 2001, página 597

[3] NASCIMENTO, Amauri Mascaro “Curso de Direito do Trabalho”, Editora Saraiva, 19ª edição 2004, página 1101

[4] SADY João José, CURSO DE DIREITO SINDICAL, Editora LTR – 1998

[5] DELGADO, Maurício Coutinho “Curso de Direito do Trabalho”, Editora LTr 6ª edição, 2007, página 1423

[6] MONÍS LÓPEZ Carlos, O DIREITO DE GREVE Exporiências Internacionais e Doutrina da OIT, Editora LTR – 1986

[7] GALANTINO Luisa, DIRITTO SINDACALE , G. Giappichelli Editore – Torino – 1994

[8] GIUGNI Gino, DIREITO SINDICAL, Editora LTR – 1991

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